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interview ISSN 2175-6708

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Isa Clara Neves entrevistou Eduardo Souto de Moura no ano de 2012, um ano depois de ter ganho o Prêmio Pritzker. A conversa ocorreu no ateliê do arquiteto, na cidade do Porto, Portugal.

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NEVES, Isa Clara. Entrevista com Eduardo Souto de Moura. Entrevista, São Paulo, ano 16, n. 063.03, Vitruvius, jul. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/16.063/5603>.


Conversão em Pousada do Monastério Cistercuense de Santa Maria do Bouro, 1989-1997. Arquiteto Eduardo Souto de Moura
Foto Leon (Taipei, Taiwan) [Wikimedia Commons]

Isa Clara Neves: Aqui em Portugal tem sentido nos últimos projetos uma grande diferença de procedimento a esse nível?

Eduardo Souto de Moura: Sim. Acabaram as euforias dos subsídios europeus, portanto, há muito pouco trabalho e o pouco que se faz é muito disciplinado, porque é feito geralmente com aqueles “QREN’s” em que a Europa, ou a Comunidade Europeia, dá 75% e Portugal dá 25%. É evidente que Portugal ao entrar 25%, quanto mais disciplinada e pobre for a obra, menos ele entra, porque os 75% às tantas até pode entrar. Então há essa contenção, muitas vezes dramática, de alguém que quase não tem dinheiro nenhum dizer “vamos ver se isto se consegue fazer com 80% e nós só entramos com 5% ou coisa assim. Portanto, é essa disciplina. Não tem mal nenhum que se seja disciplinado, porque isso obriga a que o próprio desenho, a linguagem – que tem a ver com o sistema construtivo, com os materiais –, obrigue a uma grande contenção por parte da proposta. Isso até é bom, porque elimina algumas gorduras que havia na arquitetura, existentes nos últimos tempos, e leva a um maior rigor. O que é preocupante é que há elementos base que têm que ser garantidos para a própria qualidade de construção.  Isso é que faz com que as obras subsistam. Costuma-se dizer “os países pobres não se podem dar ao luxo de fazer edifícios fracos”. O que é caro é a manutenção. Esse lado é que me preocupa, porque não existe essa cultura em Portugal, da qualidade do edifício, nem ninguém está preocupado com a manutenção do edifício, “depois há de surgir”, “logo se arranja” , frases típicas do português. Isso está a acontecer um pouco, uma espécie de “desenrasca”, porque existe esta tortura, ou esta vertigem, de alguns políticos, especialmente os locais, de não se convencerem que não têm dinheiro, ou que o dinheiro acabou, e pensam que ganham eleições através da construção de obras. Então, sem terem hipóteses, nem de construção nem de manutenção, têm essa vertigem de querer fazer como se o concreto fosse um motivo de publicidade para essa campanha política. Isso é que irá demorar uns bons anos a desaparecer: “Presidente que não inaugura, não é bom presidente”.

ICN: Falou, em tempos, do Convento das Bernardas como o exemplo de uma obra que tinha sido elaborada com esse tipo de contenção.

ESM: Exatamente, o convento começou por ser comprado caro, penso eu, no tempo de um certo entusiasmo pelo Turismo Algarvio. Foi uma obra disciplinada, mas nada de exageros, à base da introdução de elementos como janelas de madeira, cantarias de pedra de calcário, como já existia. E, ao longo do tempo, a última fase, com a suspensão dos empréstimos bancários, teve que se acabar, não mal, porque quer da minha parte, quer da dos engenheiros, quer da parte do próprio dono de obra, ninguém queria aldrabar a construção. Toda a gente gostava do edifício, mas houve muita contenção, e perderam-se algumas coisas para fazer bem as outras. E notou-se que houve uma grande economia e rigor. Vimo-nos aflitos para acabar a obra com dignidade. Exemplifico-lhe: aquilo que não se conseguia fazer, não se fazia, e acabava-se, por exemplo em pladur, rematava-se, para depois um dia, quando houvesse exatamente essa hipótese de fazer bem, com uma função e um programa, então, sim, “remata-se e acaba-se, mas para já mantém-se o cenário”.

ICN: Sente que experimentou coisas novas no projeto das Bernardas? Nestes últimos projetos, tem-se lido uma necessidade de experimentar mais óbvia, como por exemplo no projeto da Casa Paula Rego.

ESM: Por acaso usei coisas novas. Se calhar invento, mesmo que não tenha, tenho que inventar um problema qualquer. Isso motiva-me. E não repito sempre.

Primeiro, foi um edifício feito no Sul, quando sou muito mais ligado ao trabalho mais aqui no Norte, em edifícios de granito que são muito mais perenes, onde praticamente sinto que nos indicam aquilo que tem de ser feito. O edifício do Mosteiro das Bernardas é um edifício feito em terra, nem sequer é feito em tijolo ou em adobe, é terra misturada com pedra. O que é interessante porque isso explica a maneira como ele resistiu ao terramoto, o de Lisboa. Quando caíram os edifícios todos, ou a maior parte deles – igrejas, palácios, o próprio Paço do Rei, o Paço da Ribeira –, este manteve-se exatamente por ser mole e frágil. Quer dizer, torceu mas não partiu, como se costuma dizer, e se fosse muito bem construído ou rígido, partia e caía. Então a maneira de tratar esse material macio, que é a terra – de que o Orlando Ribeiro fala muito bem, do granito duro do norte e celta, com a cultura árabe macia e mole, no sentido plástico –, achei interessante. Uma coisa que acho que nunca tinha feito, foi a preservação do património numa função que não é normal: a habitação. O património é sempre aquela ideia peregrina: “vamos fazer uma pousada”; “...vamos fazer um hotel”; “...vamos fazer um centro cultural”; “...vamos fazer uma escola”; “...um equipamento”, sempre ligado à cultura. Porque é que não fazemos casas? Porque é que em Itália as pessoas vivem em palácios antigos, e em teatros. Mesmo em Roma... as casas mais caras de Roma são no Teatro Marcelo. E isso foi um desafio, porque não é fácil, num mosteiro, fazer habitação. Ainda por cima a habitação no Século XXI, em que os requisitos são muito complicados. Ninguém quer saber se é antigo ou novo. Diz-se “tem que ter isto, tem que ter aquilo, etc”. E tive que abrir duzentas e tal janelas nos muros de terra. Houve duas dificuldades: primeiro, os muros de terra resistirem à abertura de duzentos e tal buracos; e segundo, é o próprio fato de abrir janelas, que é uma dificuldade para mim, uma espécie de um trauma de infância, que se percebe. Com ajuda do engenheiro, no caso o Engenheiro Rui Furtado que estudou um sistema construtivo que é uma malha de aço, que encosta aquelas paredes de terra que servem de cofragem e, depois, o concreto é projectado e, quando a parede esta consolidada, abre-se o negativo e a própria janela à volta tem um ferro em malhasol. É interessante como a parte frágil da construção se transforma na forte. O fato de abrir janelas e o buraco que provocava a ruína do próprio edifício passou a ser o seu sustento ou “passou a suster”. É uma espécie de “vacina”. Como é que injectando um vírus de uma doença nos conseguimos salvar dessa doença? A janela é esse tema. Outra questão é que pela primeira vez trabalhei com a espessura. A minha debilidade de abrir janelas na construção moderna existia, pois faltava-me uma certa espessura. Hoje constrói-se com paredes de concreto 20 cm ou paredes duplas de 30 cm, e as proporções da altura e da largura copiava de edifícios antigos que me pareciam corretos. Mas faltava-me sempre a terceira dimensão da profundidade. Neste caso não tinha desculpa, não havia álibi, tinha paredes de 2m de espessura e era um laboratório, exatamente, para poder fazer esse jogo nesses 3 eixos, e fi-lo. E fiquei contente. Por outro lado, a construção era deficitária em termos de programa e tinha de ser ampliado o mosteiro. Tive que fazer construção nova que compensasse a ausência de habitação no mosteiro propriamente dito. Então, pela primeira vez, também fiz construção nova continuando o mosteiro, mas não com aquela dicotomia do novo e do antigo, que é uma coisa que me irrita um bocado. Já passei um pouco essa fase, de que “o novo é um manifesto datado” quase. Um homem como o Venturi dizia “I am a monument”. Esse tipo de intervenções em construções antigas têm também o letreiro “sou moderno, sou contemporâneo”. Como se esse manifesto fosse importante... É evidente que os mosteiros todos têm séculos e séculos. E vão-se sobrepondo uns em cima dos outros, ou ao lado uns dos outros. Tentei perceber essa regra, como eles evoluem, como os animais se vão mexendo, em que aquilo que é necessário é desenvolvido, e aquilo que não é necessário, como o caso das baleias, fica atrofiado e acaba por desaparecer. Portanto, foi uma situação completamente nova, a de fazer portas e janelas, buracos num muro, em construção moderna com uma parede sem espessura. O que foi de uma dificuldade enorme para mim. Acabou por ficar bem.

ICN: Em termos gerais, está satisfeito com o resultado?

ESM: Estou. A grande aposta inicial era que o mosteiro, de dimensão grande, e a cidade de Tavira, que é uma vila pequena, se relacionassem abertamente. A transformação pretendida do mosteiro não era para fazer um edifício, recuperar um edifício, uma peça de design autossuficiente, que vive por ela, mas abri-lo à cidade. O mosteiro agora tem vários corpos, vários edifícios, com pátios, com claustros, com ruas lá dentro, pronto a abrir-se e fazer parte da cidade. Pelo menos nas imagens finais, em que se vê a cidade e o edifício ligado às salinas, eu acho que consegui isso. Agora só o tempo é que o vai dizer.

Portanto, essa experiência das janelas levantou a questão de economia e de energia. Aproveitaram-se as janelas que existiam, ampliando-as para as novas regras de luz e ventilação. As janelas do mosteiro propriamente ditas eram quadradas e insuficientes, mas depois o mosteiro passou a ser uma fábrica de farinha e foram alteradas as aberturas. Houve um conjunto de janelas e portas, ou de vãos grandes, que eu reaproveitei para o mosteiro, isto é, para a habitação.

O que aconteceu é que fui começando a perceber as diferenças, nas grandes espessuras, entre uma janela vertical – que fiz várias – e uma janela horizontal, que já existiam da fábrica ou que eu próprio propus. E então, ultrapassada essa limitação de fazer as janelas, comecei a estudar e aperceber-me das vantagens e desvantagens da janela vertical ou horizontal, ou a não janela – só o terraço com vidro. Esse acabou por ser depois o tema da Bienal de Veneza, em que fui convidado para fazer uma instalação. A instalação não é uma coisa autónoma... não sou artista plástico, no sentido de fazer uma obra autónoma, então aproveitei para fazer uma grande maquete de experimentação, em que o mesmo tema – uma torre à entrada do arsenal de Veneza – é visto de três maneiras diferentes, com três tipos de paredes diferentes: uma janela vertical com as proporções paladianas, com uma grande espessura; uma janela horizontal, como no Movimento Moderno, como se fez na Alemanha nos anos 30-40 na habitação social ligado ao Movimento Moderno, que era na mesma uma janela vertical que é rodada com os pés-direitos baixos; e depois, o chamado terraço, em que é tudo fechado a vidro, como aqueles desenhos do Corbusier em que se vê o Rio de Janeiro, onde tem uma porta e um vidro fixo, e as três maneiras de filtrar o interior e exterior. Continua a ser uma espécie de uma obsessão este tema das janelas. Tem muito a ver com as espessuras, com os materiais, desta relação interior-exterior. Também tem muito a ver com uma questão que tenho sentido em França, em Bordéus, onde estou a fazer dois prédios, com o problema das energias. Isto é, a legislação francesa em termos de energia é mesmo a sério. Não brincam em serviço e não é “mais ao menos e tal, veja se consegue pôr painéis solares”. Praticamente, na habitação social, é proibido fazer janelas com mais de um metro e meio, um metro e vinte, metros quadrados. O que significa que é um quadrado. Isso determina completamente a linguagem. No entanto, como o sítio é muito bonito, tive que aumentar alguns vãos. Acho ridículo viver em frente a um lago e apenas ter um vão quadrado na sala para o ver. No quarto também é um quadrado. Então tive de compensar essa questão, e ultrapassar as chamadas pontes térmicas, mudando o material do alumínio para madeira. Já podia fazer um vão maior porque o próprio caixilho é isolante, e consegui, mas não podia aumentar os preços. Depois, fazendo mais vidro transparente podia-se ser compensado com painéis solares fotovoltaicos, que produziam energia que alimentava o edifício deficitário pela própria janela. Portanto, é outra maneira de ver a linguagem que não é fazer um croqui e dizer “ficou engraçado e tal, vamos por aqui”. Não. Foi um conjunto de condicionantes que levaram a isso. Nós, portugueses, vamos passar por isso mais ano menos ano. Em França, em 2020, vai ser obrigatório os edifícios produzirem energia, venderem energia e não gastá-la.

ICN: E já não estamos assim tão longe de 2020...

ESM: Primeiro, há um certo fundamentalismo nisso. A parte energética é uma componente da arquitetura, mas eu acho que é um ponto de partida e não é um ponto de chegada. Ou seja, a optimização energética não é o fim da arquitetura, pelo contrário, a boa arquitetura parte-se do princípio que é sustentável. Assim como um bom político parte-se do princípio que é democrata, não é: “O que é que o senhor vai fazer? Ai eu sou democrata”. Isso não é nada... Eu uso esta comparação, porque as boas obras não podem ser nenhum disparate, no sentido da qualidade. Portanto, é outra experiência que estou a ter, uma luta brutal com... é a maior empresa de construção de França. Eu tenho percebido o ponto de vista deles e eles percebem os meus. E, portanto, é ir ao limite, da parte deles e da minha parte, em que eu assisto às regras do jogo – regras que  nunca me passaram pela cabeça – mas que tenho que obedecer, porque se aceitei jogar Poker não posso dizer “vamos jogar à Sueca”. Isto está a ser interessante porque adivinho, em parte, que a nossa legislação, quer de acústica, quer de segurança, quer energética, é muito francesa. Não sei porquê. E adivinho que, pelo menos qualquer coisa, vamos aproximar-nos daquilo. Depois os portugueses são sempre exagerados, não têm nada mas quando resolvem ter, é muito pior. Escutam os regulamentos americanos, alemães, franceses, e sobre poluição dizem: “é proibido poluir”.  Então fecham as fábricas, que é uma coisa muito portuguesa.

ICN: Em que fase está esse projeto em França?

ESM: Esse está numa fase de pedir preços e algumas alterações, que eu propus e pelas quais continuo a lutar. Eles dizem que “Sim, senhor!”, vão ver se conseguem, conforme os preços que vêm aí. Acho interessante também o fato de se está a pedir preços a empresas portuguesas que fecharam cá e estão a trabalhar em França. A construção acabou em Portugal, mas está a tentar ir para lá também trabalhar.

ICN: No fundo, idêntico ao que o Eduardo está a fazer: trabalhar cá, mas a exportar trabalho?

ESM: Só tenho um trabalho em Portugal, que é o edifício da barragem do Tua, que esteve suspenso. Depois a Unesco deu-me razão, deu à EDP e ao meu projeto, e mandou-me avançar. É o único trabalho que tenho para fazer. De resto, estive doente e recomendaram-me não andar muito de avião. Faz muito mal aos problemas respiratórios, que é o meu problema. Neste momento vivo nesta ironia de apesar de não haver trabalho, eu até o ter, mas ser obrigado a deslocar-me, e às vezes não posso aceitar projetos porque não posso continuar numa vida de deslocações... Mas pronto, não se faz tudo, faz-se parte, e vai-se andando.

ICN: Abrir um escritório fora de Portugal não lhe passa pela cabeça?

ESM: Não. Eu gosto de trabalhar no Porto, e tenho um atelier em Lisboa, que nem sei se vou continuar a ter, e estabeleço sempre parcerias com os escritórios de lá. Não quero ficar rico, prefiro que as coisas fiquem bem e divido sempre os honorários com alguém que conheça o meio, que conheça as leis, para que possa estar próximo da obra e acompanhá-la.

Conversão em Pousada do Monastério Cistercuense de Santa Maria do Bouro, 1989-1997. Arquiteto Eduardo Souto de Moura
Foto Leon (Taipei, Taiwan) [Wikimedia Commons]

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