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my city ISSN 1982-9922

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VAZ, Elisa. Padre Anchieta, 530. Minha Cidade, São Paulo, ano 09, n. 098.03, Vitruvius, set. 2008 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/09.098/1876>.


Vista interna
Foto Carlos Montenegro


Vista externa
Foto Carlos Montenegro

Vista interna
Foto Carlos Montenegro

Vista interna
Foto Carlos Montenegro

Vista interna
Foto Carlos Montenegro

Vista interna
Foto Carlos Montenegro

Vista interna
Foto Elisa Vaz Ribeiro

Vista externa
Foto Carlos Montenegro

Vista externa
Foto Carlos Montenegro

Vista externa - acesso
Foto Carlos Montenegro

Vista externa
Foto Elisa Vaz Ribeiro

Vista aérea da implantação da casa
Foto Elisa Vaz Ribeiro

 

Há cerca de três meses a ex-moradora de uma peculiar casa na Torre, Recife, mudou-se para um apartamento no mesmo bairro. Logo após o evento, a casa foi invadida por curiosos e pedreiros que trataram de arrancar da casa tudo que lhes parecesse aproveitável e de algum valor. Ao tomar conhecimento do episódio, fui atrás de informações sobre a casa que tanto me despertava curiosidade, mas sobre a qual eu nada sabia.

Em conversas informais com amigos, os mais observadores relatavam que a casa também já lhes havia chamado atenção. Assim como eu, todos julgavam tratar-se de uma casa abandonada há anos. Por mero acaso, acabei conhecendo um habitante do edifício para onde a proprietária da casa havia se mudado. Advertência desse morador: a senhora Mirtes (1) é uma pessoa de difícil acesso. Descrente, fui perguntar ao porteiro do prédio se ele achava que a proprietária me contaria a história da sua casa. Mais uma advertência: não perca seu tempo, trata-se de uma portuguesa que não fala com ninguém. Ele me forneceu, no entanto, o telefone do administrador da excêntrica senhora, o qual, apesar de se ter mostrado simpático e ter me fornecido algumas poucas informações sobre a casa, confirmou também: é, realmente, ela não gosta de falar com ninguém. Não satisfeita, dirigi-me, então, aos arquivos da Prefeitura do Recife, na esperança de localizar alguma planta de aprovação da edificação ou qualquer documento desta natureza: nada! Tive, desta forma, que me conformar com o fato de que qualquer informação que eu conseguisse por outros meios seria, provavelmente, pouca. E assim foi.

Deixando de lado a excêntrica senhora Mirtes, passemos à casa, que já era objeto de minha curiosidade antes mesmo de eu tomar conhecimento de sua, não menos instigante, dona.

Genuinamente kitsch

De forma simplificada, é possível afirmar que, a arquitetura erudita é sempre passível de um processo de reinterpretação, o qual, de alguma forma, torna seus elementos consumíveis pelas camadas mais populares da sociedade. É esta corruptela arquitetônica que acaba por gerar muitos dos exemplares identificados como de uma arquitetura kitsch. Embora muitos teóricos divirjam na conceituação do kitsch, ao menos em um aspecto eles parecem estar de acordo: a relação com a cultura de massa é uma de suas principais características. Guimarães e Cavalcanti comentam:

“o produto kitsch teria um objetivo primordial: o de alcançar o status sócio-cultural superior, através da absorção de elementos pertencentes a produtos de camadas culturais mais elevadas. [...] A arquitetura kitsch carregaria, ao lado de uma ‘ingenuidade’, certos traços da arquitetura oficial, principalmente derivados da arquitetura moderna, que, tendo sido anteriormente de vanguarda, atualmente foi absorvida de forma parcial pela massa afluente [...] Essa tentativa de absorver códigos culturais provindos de estratos superiores da população indicaria um anseio de afirmação sócio-cultural, da busca de status, através da utilização excessiva de requintes ornamentais” (2).

Por estar geralmente relacionada às camadas mais populares, a maior parte dos exemplares da arquitetura kitsch é construída de forma precária, sem muitos recursos financeiros, o que acaba por interferir esteticamente no resultado final. Quando localizados em zonas mais populares da cidade, tais exemplares chamam menos atenção do que aqueles inseridos em bairros de classe média. Além de destoar mais do entorno, quando o kitsch arquitetônico é produzido em uma classe social mais favorecida os recursos financeiros propiciam não apenas um resultado final mais bem acabado como facilitam a materialização do desejo do proprietário. No caso das edificações com “ares modernistas”, enquanto muitas vezes nas casas mais simples uma platibanda, uma janela, ou um pilar, bastavam para colocar a obra dentro do ideal de modernidade almejado, nas casas da população mais abastada o kitsch acabava por se fazer presente através do excesso de elementos e revestimentos, na ânsia de incorporar, à realização, todo o vocabulário disponível.

Sem fazer juízo de valores, arrisco-me a dizer que, talvez por estar submetido a menos limitações, o kitsch produzido em uma realidade financeira mais favorável acabe por ser mais genuíno, ou, ao menos, mais completo. É nesta realidade que está inserida a residência abordada no presente texto.

Dentre os traços retilíneos dos volumes superiores da edificação, apoiados sobre pilares cilíndricos, destaca-se, estranhamente, uma parede sinuosa constituída por elementos vazados de louça, amarelos e rosas. Os azulejos de motivo abstrato (uma variação de um padrão feito originalmente pelo arquiteto Delfim Amorim), exageradamente presentes em várias paredes externas, formam painéis contidos em molduras cor-de-rosa. Podem ser citados, ainda, como revestimentos externos da edificação, cerâmicas, pedra, e pastilha. Vale ressaltar também, como elementos modernistas utilizados na edificação, vários tipos de cobogós em concreto, brises-soleil e buzinotes. O repertório moderno, no entanto, não se limitou à fachada (como é comum nas casas mais populares): ele adentra a habitação, gerando, em seu interior, uma ala social altamente permeável, com espaços que, isoladamente, mostram um resultado arquitetônico melhor do que a exuberante fachada.

Pelos atributos físicos da edificação, é provável que ela tenha sido desenvolvida pelo proprietário, com o auxílio de algum engenheiro ou técnico. Ou, como levanta hipótese o arquiteto e professor Luiz Amorim, pode ainda o projeto inicial ter sido feito por um arquiteto, que, uma vez dispensado, teve seu trabalho modificado ao gosto do proprietário. A exatidão da origem da casa, provavelmente nem dona Mirtes saberia explicar, uma vez que tomei conhecimento de que ela já a comprou construída, no início da década de 1970.

Uma melancolia no ar

Minha impressão de que a edificação estava abandonada, embora equivocada, não era sem razão. Na realidade, vários aposentos da casa já haviam sido abandonados há anos, mas a proprietária, que ainda lá habitava, ocupava apenas dois cômodos. Alguns dos ambientes sem uso não foram esvaziados e fechados, como quando se realiza uma mudança, mas simplesmente largados, cheios de objetos pessoais, que mostram, através de sua degradação, os sinais de uma história interrompida. Paira uma melancolia no ar.

Até uns três meses atrás, um pano estendido na grade do terraço impedia que, da rua, a sala fosse vista. Hoje, ironicamente, avista-se o interior da casa mesmo da calçada. Segundo Carlos Montenegro, morador do bairro, antes, à noite, uma luz furtiva tremulava ao fundo, por trás do tecido, o que, além de conferir o indispensável clima de malassombro à casa, indicava claramente que alguém ali morava. A precária privacidade proporcionada pelo pano reforçava a informação de que a moradora dormia no sofá e vivia entre a sala e a cozinha. Mas o aspecto geral da casa, a ferrugem tomando conta do portão da frente, o mato deixado crescer, a sujeira por todo terreno etc., realmente denotavam um abandono total.

O aspecto atual da casa indica que provavelmente sua história está perto do fim. Mas pelo visto, não é só em minha mente que sua imagem deixará lembranças. Carlos Montenegro, afirma:

“A excentricidade de seu projeto róseo certamente causa estranhamento, e o visual retrô, imponente, cai muito bem na minha esquina. Não demora muito pra comprarem esse terreno, mais dois que o circundam, e fazerem um prédio que vai tapar minha vista e talvez diminuir o ventinho que aqui bate de vez em quando” (3).

A “morte por abandono” (4) já assola o edifício. Segundo Amorim, arquiteturas estão fundamentalmente ligadas à forma como são ocupadas e às possibilidades de ocupação que oferecem. Quando deixam de ser ocupadas passam a constituir apenas forma edificada, tornando-se um pouco menos arquitetura. O fato de a residência não pertencer a uma arquitetura erudita, torna sua morte ainda mais silenciosa, sem despertar muita atenção. As imagens da casa falam mais do que quaisquer palavras sobre as profundas marcas impostas por essa morte a um corpo arquitetônico que agoniza publicamente.

notas1
Em respeito a privacidade da proprietária do imóvel seu nome foi substituído pelo nome fictício Mirtes.

2
GUIMARÃES, Dinah; CAVALCANTI, Lauro. Arquitetura kitsch: suburbana e rural. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

3
MONTENEGRO, Carlos. Para tu, que é arquiteta [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por email em 06 abr. 2008.

4
Ver AMORIM, Luiz. Obituário arquitetônico: Pernambuco modernista. Recife, 2007.

sobre o autorElisa Vaz Ribeiro, arquiteta pela UFPE, foi colaboradora no escritório VRF arquitetos (Vital Pessoa de Melo), Recife, e consultora do Centro Josué de Castro para o desenvolvimento dos planos diretores de Arcoverde e Belo Jardim (PE). Em 2007 foi colaboradora de Márcia Moreira (Ruimtelijke Vormgeving en Interieur Advies), Haarlem, Holanda. Atualmente trabalha no escritório André Lobo Arquitetura, Recife

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