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my city ISSN 1982-9922

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CANÇADO, Wellington. A insurgência das pipas (e outros jogos potencialmente subversivos). Minha Cidade, São Paulo, ano 10, n. 114.02, Vitruvius, jan. 2010 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/10.114/3388>.



Foto Marcelo Terça-Nada!



Foto Marcelo Terça-Nada!


Foto Marcelo Terça-Nada!


Foto Marcelo Terça-Nada!


Foto Marcelo Terça-Nada!

 

1ª Parte

Bente altas, queimada, rolimã, futebol, pipa, pique-esconde: jogos e brincadeiras de rua. Todos extintos com a extinção da própria rua. Afinal, depois de tanto “matar a rua” ao longo do século 20 parece que finalmente conseguimos o que queria Le Corbusier, aquele arquiteto franco-suíço que queria também demolir a Île de la Cité em Paris onde se encontra a Notre Dame para ali erguer a sua “Cidade Radiosa”, uma espécie de Barra da Tijuca primordial.

Mas não é que a rua propriamente dita tenha desaparecido, afinal todos os dias somos surpreendidos por outdoors propagando a duplicação e o alargamento das vias por toda a cidade. O que desapareceu mesmo, foi a possibilidade da rua como lugar do ócio, do encontro, das brincadeiras, dos jogos e da festa. Desapareceu a rua como lugar privilegiado da infância, ou de infâncias privilegiadas. Aquela infância dos nossos pais nas florescentes porém ainda humanas capitais, mas também a rua das crianças dos interiores por todo o país. Ruas em que crianças passavam as noites jogando e brincando, em que os portões eram gol, que a calçada era pista, que o degrau era rampa, que o muro era esconderijo, que a árvore era desafio, que o lixo era brinquedo, que o asfalto era campo, que os carros eram raros.

Pois, as razões desse fato histórico são óbvias: o crescente aumento da frota de veículos sustentada por políticas públicas tardo-desenvolvimentistas equivocadas (vide Linha Verde em Belo Horizonte, duplicação da Marginal em São Paulo e a recente redução de IPI dos automóveis) corroboradas pela gradual e covarde substituição por parte da classe-média urbana de todas as esferas do público por soluções imediatistas e privatistas: o SUS pela Unimed, o grupo escolar pela escola particular, o ônibus pelo “zero quilômetro”, a polícia pelo vigia de plantão, o mercado pelo shopping, o buteco pela praça de alimentação, o bairro pelo subúrbio militarizado, a praça pelo clube da moda, e claro a rua pelo condomínio e seus indefectíveis pilotis, área de lazer, gazebo gourmet e salão de festas.

Em tempos de “civilização capsular”, “cocooning”, “cidades de muros”, ou qualquer outra expressão que os teóricos da cidade possam encontrar para descrever esse fenômeno que é global, mas indiscutível e absurdamente mais violento e nefasto nos trópicos, a rua se tornou simplesmente um lugar de passagem e circulação (motorizada, obviamente). E sendo assim, lugar puramente utilitário, regido pelo relógio do trabalho, do comércio e do rush, se tornou lugar escuro, ermo, vazio, perigoso, assustador, terra de ninguém.

Não foram suficientes os escritos de Jane Jacobs ainda na década de 1960 sobre a morte e vida das cidades americanas para mostrar que a rua quando movimentada, frequentada e apropriada fornece a única segurança contra a mediocridade, a violência e a falta de imaginação: a presença do outro, logo ali.

Não são suficientes também as férias na “Europa para todos” oferecidas pela CVC (14 dias, a partir de € 1.044) e o deslumbramento com as ramblas catalãs, as vielas venezianas ou os campos elíseos para entendermos que financiando voluntariamente o desaparecimento da rua estamos abdicando da própria experiência da cidade, da construção de um futuro coletivo e de uma história particular.

Não tem sido suficiente a própria realidade tacanha em que estamos imersos e que sufoca cotidianamente emergências de outras culturas urbanas para que nos engajemos por alguma mudança.

Afinal, nessa cidade estéril e pateticamente previsível, pavimentada, revestida, impermeabilizada não há mais lugar para se “olhar nos olhos dos outros” como escreveu Maria Rita Kehl, nem para a ingenuidade, nem para a imaginação, muito menos para as crianças.

Pobres criaturas as crianças. Antes eram o “futuro da nação” e hoje são criadas como ratinhos de laboratórios indefesos em seus enclaves fortificados ou tratadas como criminosas nos poucos recantos públicos disponíveis para se soltar pipas sem medo do choque elétrico e para jogar bola sem se preocuparem com os carros.

2ª Parte

Domingo, 9 de agosto de 2009.

Parque Ecológico da Pampulha, Belo Horizonte.

Ótimo espaço para um pic-nic familiar em um fim de semana ensolarado. Muita grama (que se pode pisar, finalmente), tranquilidade, sombra, vento, silêncio, pessoas felizes, milhares de crianças de todas as idades, tamanhos, cores e classes.

Uma toalha xadrez, uma cesta repleta de guloseimas, cervejas geladas, sucos variados, os pés na grama fresca e que não coça, os amigos que estão a caminho, os desconhecidos que nunca estiveram tão próximos, quase nenhuma arquitetura ao redor, nenhum ruído de motor, uma bola dente-de-leite, algumas pipas cuidadosamente construídas ao longo da semana e uma indescritível sensação de liberdade tão nostálgica quanto a primeira parte deste texto.

De repente, toda esta situação tão prosaica quanto sublime começa a ruir. De trás do morrinho onde se podia avistar um arremedo de placa mal feita com a expressão em vermelho “Soltar pipa e jogar bola só na esplanada” (e que destoava do resto da paisagem dominada por tons de verde e um profundo azul do céu), surge fardado e com um coturno que talvez devesse ser trocado por uma chuteira ou quem sabe um par de Havaianas, um obstinado guardião da ordem e das regras obtusas inventadas por um cretino alçado à categoria de diretor (será essa a definição de progresso?). E junto com ele, ou mesmo antes dele, o som estridente e policialesco de um apito.

Vários silvos breves e agudos. Agressivos.

O ar não está mais calmo e agora a paisagem parece nervosa e repentinamente inóspita.

Perplexos e surpresos, todos os presentes seguem com os olhos aquele sujeito cinza escuro…Um assalto? Um crime dentro do parque? Um acidente? Já é hora de ir embora?

Nada disso. Assim como a vida “lá fora” se tornou especializada, programada e setorizadada como sempre sonharam os técnicos empuleirados nos gabinetes e os corretores de imóveis, aqui no parque, reduto histórico do deleite, do pitoresco, do ócio, também está tudo organizado por zonas: zona para futebol, zona para pipa, zona para pic-nic, zona para bicicletas etc.

Afinal, como explica o exemplar funcionário, “as bolas caem na lagoa e as pipas engancham nas árvores. E é para que isso não mais aconteça que agora há lugares específicos para estas atividades. E a minha função aqui é vigiar aqueles que infringem essa regra”. Nada contraditório, em uma época em que planejamento e “survellaince” (vigilância ou monitoramento do comportamento alheio) se confundem no intuito de antecipar “o pior”.

“Soltar pipa e jogar bola só na esplanada!”
“Soltar pipa e jogar bola só na esplanada!”
“Soltar pipa e jogar bola só na esplanada!”

Ele repete aos gritos à medida que se afasta e volta a apitar.

Mas aqui não é tudo “Esplanada”? (???????)

“Aqueles que infrigem essa regra” no caso são as tais “milhares de crianças de todas as idades, tamanhos, cores e classes”, que além de ouvirem cotidianamente “Não pode! Não pode!” na escola, em casa, no condomínio, na rua, agora são perseguidas como bandidos por brincarem livremente, infringindo involuntariamente uma regra autoritária que desrespeita a inteligência alheia “em prol do bem comum, que é a conservação do patrimônio público”, como ousa dizer outro vigilante de fôlego.

Mas que idéia de “público” é essa se o próprio público foi sumariamente excluído das decisões? E que pertinência há de se pensar em “patrimônio” se a sua suposta conservação exclui a priori as possibilidades mais básicas e inofensivas de apropriação como empinar pipas e brincar de bola na grama?

Ao longo do dia, que parecia perfeito no início, cenas ridículas de perseguição às pipas e aos boleiros se desenrolam diante dos olhares sonolentos daqueles corpos esparramados sob as árvores, e que já não mais se indignavam com a cena, mas ao contrário, jogavam com ela.

Em um processo interminável, a cada “ida e vinda” do vigilante, pais e filhos resgatavam suas pelotas e as latinhas para reiniciar um ciclo, provavelmente curto, de brincadeiras insurgentes. O jogo que interessa agora não é mais desempatar a partida nem mesmo controlar a rabiola contra o vento, mas o “gato e rato” entre vigiados e vigilantes. Um jogo cordial e dissimulado, como de costume, mas também potencial e didaticamente subversivo.

sobre o autorWellington Cançado é arquiteto

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