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BURLE, Augusto. Brasília, Roberto, Oscar, Juscelino e Guignard. Sobre o projeto para o eixo monumental que não aconteceu. Minha Cidade, São Paulo, ano 11, n. 131.07, Vitruvius, jun. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/11.131/3920>.


Simulação de jardins de Burle Marx para o eixo monumental de Brasília. Aquarela de Ilda Fuchshuber


Em uma das nossas antigas constituições foi definido, atendendo, talvez, a uma ultrapassada preocupação militar, que a capital da República deveria sair do litoral e ir para o interior. A idéia também era a de se promover o desenvolvimento do Brasil Central.

Dezenas de anos se passaram e isso caiu no esquecimento geral, até que Juscelino, que queria se imortalizar a qualquer preço, embarcou na aventura.

Na época éramos um país pouco industrializado, exportador, basicamente, de café e absolutamente sem recursos para realizar a construção de uma nova capital com tanto requinte (eixo monumental, palácios quase faraônicos e residências para milhares de funcionários e políticos). Até mesmo para um país rico o esforço causaria sérios problemas.

Aqui o impacto foi brutal: início da inflação descontrolada; a falta crônica de recursos para saúde e educação; a utilização dos recursos dos nossos, então, ricos Institutos de Previdência, unificando-os no INPS, ocasionando o desequilíbrio do sistema e sacrificando a futura aposentadoria de todos.

Imaginem se essa montanha de recursos tivesse sido usada em infraestrutura, controle de natalidade, saúde e educação de qualidade. Hoje estaríamos no primeiro mundo.

Como a maioria dos funcionários públicos não queria ir para Brasília, a solução foi a de dobrar ou triplicar salários e oferecer moradia gratuita ou bastante subsidiada. Em outras palavras, passamos a ter um gasto elevadíssimo de pessoal. Atualmente a segunda maior renda per capita do Brasil é a dos brasilienses.

Outro problema considerável foi que, com o isolamento dos políticos em um lugar distante dos grandes centros (Rio e São Paulo) como a nova capital, criou-se uma ilha da fantasia e da corrupção. As maracutaias de alguns políticos, sem a caixa de ressonância que era o Rio, passaram a ser facilmente absorvidas e esquecidas.

A imortalidade de JK custou o sacrifício de gerações de brasileiros.

O próprio desempenho do Brasil Central não foi na escala esperada. Esse boom de desenvolvimento que hoje está acontecendo é devido principalmente à Embrapa, que conseguiu adaptar a soja às nossas condições de solo e clima e nos transformou no segundo maior produtor e em futuro celeiro mundial. A existência de Brasília não é a responsável pela riqueza que está sendo gerada, a qual advém da revolução agrícola, apesar da elevada degradação ambiental e do absurdo desmatamento já atingindo a Amazônia.

Sulamita Mareines, em entrevista para a revista Folha (1), revela o desgosto de Roberto Burle Marx ao sentir-se prejudicado por Oscar Niemeyer em seus projetos para Brasília. A ausência de um paisagismo adequado impediu que a cidade ficasse menos árida e que os problemas respiratórios de seus habitantes fossem atenuados. Falta verde.

Simulação de jardins de Burle Marx para o eixo monumental de Brasília. Aquarela de Ilda Fuchshuber


Para melhor explicar a “trapalhada” feita, nada melhor do que repetirmos o que Roberto falou:

a) “O que acontece em Brasília é que é preciso compreender o clima, não se pode modificá-lo. Se eu construo uma cidade num lugar onde a terra abriga uma flora característica, eu não posso transformá-la em Champs Elisées ou no Hyde Park. Dizer que o cerrado não pode ser uma maravilha é um erro. Acho uma beleza, apenas deve-se compreendê-lo como ele é”. (2)

b) “A vegetação autóctone está sendo devastada a passo de gigante. Uma simples máquina de fazer estradas destrói em minutos o trabalho de séculos da natureza. E o pior é que arrasam para plantar depois árvores que não têm nada a ver a ver com a paisagem” (3).

Resumindo: demarcado o terreno da nova capital, fizeram uma tremenda terraplenagem “arrasa quarteirão”, construíram os prédios e saíram plantando árvores inadequadas. Resultou que poucos anos decorridos (década de 1990) muitas delas, não aguentando as condições climáticas, morreram. Que diferença, por exemplo, do que aconteceu no Rio, no Aterro do Flamengo, onde, apesar do solo ruim e dos ventos marinhos, o paisagismo adequado, com apoio botânico, tudo venceu.

Renato Kamp em seu excelente livro sobre a vida e a obra de seu tio Roberto comenta:

“É necessário registrar que os anos 50 também trouxeram uma grande decepção a Roberto Burle Marx, pois lhe fugiu das mãos o grande projeto que era o Parque da Esplanada, em Brasília. Este parque ocuparia a área onde hoje é a Esplanada dos Ministérios, que vai das proximidades da Rodoviária até o Congresso Nacional. Era dividido em cinco grandes segmentos, representando a flora das regiões do Brasil com suas plantas mais características. Um grande lago cortaria todo o conjunto e este, em função da diferença de nível, seria dividido em pequenas barragens de onde a água desceria, para formar um verdadeiro véu e contribuir para melhorar sensivelmente o microclima de seu entorno. No último segmento, toda a água excedente seria filtrada e aproveitada nas instalações do Congresso Nacional” (4).

As aquarelas que ilustram este artigo foram feitas pela artista Ilda Fuchshuber, a pedido de Renato Kamp, baseadas nos desenhos que o próprio Roberto, naquela época, mostrou a Renato. Embora não exista nenhum projeto a respeito desse parque arquivado na firma Burle Marx & Cia., o professor Frederico Scosculo, do Departamento de Projetos de Representação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, lembra que arquitetos da época viram o projeto e o consideraram de uma beleza extraordinária (5).

Para o professor, apesar de os órgãos responsáveis pelo patrimônio histórico de Brasília afirmarem que nunca ouviram falar desse projeto, o mesmo pode estar nos arquivos da cidade.

Scosculo acrescenta: “Na minha opinião, aquele local é deserto e merece um pouco mais de natureza, cor e brasilidade”. Coincidentemente, no seu livro, Renato sugere que “no centenário de Roberto, que festejaremos em 2009, a melhor homenagem seria a construção do Parque da Esplanada”. Ainda citando Renato Kamp, “depois de escolher e mapear cinco sítios, num dos quais Brasília seria construída, a missão seguinte do marechal José Pessoa, presidente da Comissão de Localização da Nova Capital, foi convidar Affonso Eduardo Reidy para o planejamento da cidade com Burle Marx. Foram realizadas várias reuniões no ateliê do Leme, com a participação de Oscar Niemeyer, Rino Levi, Jorge Moreira e outros arquitetos de renome. Decidiram fazer um concurso com um júri internacional, presidido por William Holford, concurso ganho por Lúcio Costa, autor do plano-diretor da cidade; a parte arquitetônica foi entregue a Niemeyer. Burle Marx, a quem seria entregue o projeto paisagístico, por razões até hoje não explicadas, acabou sendo afastado da construção da nova capital” (6).

Quem realmente introduziu Burle Marx em Brasília foi o ministro Wladimir Murtinho, casado com Toni Murtinho (uma das melhores alunas de Roberto), chamando-o para participar do Palácio do Itamaraty que, sem dúvida, é uma das mais lindas obras da capital, com paisagismo correto.

Em determinada ocasião, Roberto foi convidado pelo Colégio São Bento a dar uma solução para o jardim da clausura dos padres, que tinha mais de 200 anos e se encontrava em estado quase terminal. Na missa de sétimo dia de Roberto, realizada no São Bento, o Reitor nos revelou que tinha ficado muito preocupado quando do convite, pois, embora sabedor de que resultaria em uma obra maravilhosa, temia que fosse mais um jardim Burle Marx e não mais o tradicional jardim dos padres. Roberto pediu que procurassem por desenhos antigos que pudessem fornecer um máximo de informações sobre as plantas que foram utilizadas. Após pesquisar, Roberto conseguiu mudas da maioria dessas plantas e restaurou a originalidade do jardim, para grande alegria dos religiosos. Só pessoas especiais sabem ser humildes.

Simulação de jardins de Burle Marx para o eixo monumental de Brasília. Aquarela de Ilda Fuchshuber


A inegável genialidade de Oscar e do seu legado só não é maior do que o tamanho do seu ego. Uma obra com projeto de Niemeyer e paisagismo de Burle Marx fica inevitavelmente com a glória dividida, o que pode ser quase insuportável para pessoas com perfil egocêntrico.

Aliás, a personalidade de Oscar é bastante complexa e contraditória: é o poeta das curvas, homem de obras maravilhosas que quase levitam (somente possíveis de execução após cálculos estruturais extremamente sofisticados e com custo de construção caríssimo), que tem, segundo seus amigos, como prioridade a beleza da arquitetura, mas que é capaz de soltar o seguinte bordão: “A arquitetura não é importante. Importante é o homem e sua luta”.

Como comunista, em muitas ocasiões, defende um ditador sanguinário, responsável pela morte de milhões de pessoas, como Stalin, alegando que “isso foi necessário pois estava defendendo a revolução comunista que é o mais importante, já que os homens passam e a revolução está aí”. Mas ao mesmo tempo não abre mão de ter o seu escritório em uma cobertura na Av. Atlântica. O mais incrível é que quase todo comunista que eu conheço tem hábitos sofisticados, gosta, mesmo, é de luxo e riqueza.

Por outro lado é preciso reconhecer e fazer justiça a Oscar, já que não foi o único responsável pelo bloqueio a Roberto nas obras de Brasília. Oscar foi o maior beneficiado porque na época Juscelino estava brigado com Roberto.

O motivo da briga, contado pelo próprio Roberto, foi que ele nunca recebeu o pagamento do paisagismo feito em Pampulha, quando Juscelino era prefeito de Belo Horizonte. Logo que JK foi eleito governador, Roberto teve oportunidade de lembrar-lhe o débito. Nada foi pago. Anos depois, em uma recepção, Juscelino já presidente, Roberto não se conteve e fez uma cobrança pública: “Poxa, agora vê se me paga !”. Juscelino nunca digeriu esse episódio.

O presidente Juscelino “aprontou” também com o grande mestre Guignard, quando se omitiu e permitiu que um crime contra o patrimônio cultural do país ocorresse.

O escritor mineiro Autran Dourado (secretário de Juscelino no governo de Minas e no governo federal) conta que a primeira dama, D. Sarah, logo nos primeiros meses de governo, como achasse o Palácio da Liberdade muito sujo, resolveu dar uma pintura geral e fazer nova decoração. Tudo ficou a cargo do artista plástico Heitor Coutinho, discípulo de Guignard. O mestre viera para Belo Horizonte a fim de dirigir a escola de arte criada por JK. Guignard foi o introdutor da arte moderna em Minas, onde até então a arte era acadêmica. A primeira exposição de pintura moderna em Belo Horizonte chocou tanto que alguns quadros, entre eles um de Portinari e outro de Dacosta, foram cortados a gilete. Santa ignorância!

Em um de seus livros, Autran revela que o discípulo reservou ao mestre Guignard quatro paredes do Palácio da Liberdade, no salão de jantar, com pé direito alto. Guignard encantou-se com o trabalho que seria sua obra-prima, como também se encantou Autran, quando foi vê-lo pintar.

Terminada a obra, D. Sarah deu um jantar para os secretários e suas mulheres. A reação deles à pintura de Guignard foi extremamente negativa, chegando ao cúmulo de José Maria Alkmin dizer que aquilo não era arte, mas uma porcaria. JK permaneceu mudo.

Dois dias depois, quando Guignard foi ao palácio ver suas pinturas, essas tinham sido recobertas com tinta a óleo. Seu choque foi enorme. Ainda uma vez recorrendo a Autran: “Transtornado, Guignard desceu a escadaria, eu atrás dele. Ele ia célere para um botequim. Pediu um conhaque, mais outro, e, como achasse que conhaque era pouco para a sua mágoa e angústia, mandou vir uma boa dose de pinga. Não demorou muito e ele estava inteiramente bêbado, dizia palavrões, o que não era comum nele. Os olhos, estes estavam cheios de lágrima” (7).

Posteriormente soube-se que a ordem partira de D. Sarah.Também foi constatado que pelos materiais empregados a recuperação é impossível.

Tem dias em que a gente acorda e vem aquele desejo de, quixotescamente, confrontar em alguns aspectos dois monstros sagrados nacionais. Embora haja consciência dos conceitos emitidos, sempre fica aquela dúvida de acabar sozinho. Espero, sinceramente, que isto não aconteça.

Simulação de jardins de Burle Marx para o eixo monumental de Brasília. Aquarela de Ilda Fuchshuber


notas

NE
Publicação original do artigo: BURLE, Augusto. Brasília, Roberto, Oscar, Juscelino e Guignard. Folha, Rio de Janeiro, n. 18, Sociedade dos Amigos de Roberto Burle Marx, p. 50-57.

1
Entrevista com Sulamita Mareines, publicada na Revista Folha,nº 18, da Sociedade dos Amigos de Roberto Burle Marx, p. 9-14.

2
CALS, Soraia. Roberto Burle Marx – uma fotobiografia. Rio de Janeiro , 1955, p. 97.

3
Depoimento prestado por Burle Marx no Senado Federal e arquivado nos seus anais. Apud CALS, Soraia. Op. cit., p. 107.

4
KAMP, Renato. Burle Marx. Rio de Janeiro, R K F Produções Culturais, 2005, p.155.

5
Levantamento foi feito por Renato Kamp. Apud Caderno Brasília, jornal Hoje em Dia, 26 fev. 2006.

6
KAMP, Renato. Op. cit., p. 162.

7
DOURADO, Autran. Gaiola aberta – tempos de JK e Schmidt . Rio de Janeiro, Rocco, 2000.

referência bibliográfica

Jornal O Globo, caderno especial “Niemeyer 100”.

sobre o autor

Augusto Frederico Burle Jr. é diretor da Sociedade dos Amigos de Roberto Burle Marx e editor da revista Folha.

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