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my city ISSN 1982-9922

abstracts

português
O autor, a partir de lembranças e fantasias, relata os contatos que teve com Luís Saia e os dois monumentos restaurados por ele – Sítio e Capela de Santo Antonio e o Sítio do Padre Ignácio –, para os quais contribuiria depois com novas pesquisas.

how to quote

CERQUEIRA, Carlos Gutierrez. Coisas que encafifam. Luis Saia e o restauro dos sítios de Santo Antonio e do Padre Ignácio. Minha Cidade, São Paulo, ano 14, n. 165.04, Vitruvius, abr. 2014 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/14.165/5129>.


Sítio de Padre Ignácio, Cotia
Foto Victor Hugo Mori [MAYUMI, Lia. Taipa, canela-preta e concreto. Romano Guerra, 2008]


Há certas coisas que chegam a me encafifar, especialmente quando parece haver alguma conexão entre elas. Refiro-me a coisas, e a pessoas também, que vi e conheci no passado sobre as quais não tinha, e nem poderia ter ainda, a menor ideia acerca da importância que passariam a ter para mim no presente. Na realidade, sei que de algum modo fazem elas parte de uma seleção que fiz, e que toda pessoa faz, no curso normal da vida. Mas uma simples pergunta de pessoa eventualmente interessada em algo, que hoje é de interesse comum, fez despertar em mim lembranças que sobre o qual havia registrado há muito tempo, que permanecia porém esquecido em algum canto recôndito de minha memória, e só então me apercebi que podia relacioná-las à outra ordem de acontecimentos vivenciados por mim posteriormente.

Capela de Santo Antonio, São Roque
Foto Victor Hugo Mori

Explico melhor. Um jovem mestrando, o arquiteto Fausto Sombra, interessado nas atividades desenvolvidas por Luís Saia no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, depois de contatar pessoas que tiveram oportunidade de, ainda na condição de estudantes, colaborar em menor ou maior grau na execução de algumas dessas atividades, também me procurou em razão do seu interesse sobre o Sítio e Capela de Santo Antonio (1), e mais precisamente sobre documentos que descobri nos arquivos públicos que esclareceram a questão da sucessão dos descendentes de Fernão Paes de Barros responsáveis pela administração da mesma capela até ser abolido o instituto do morgadio em 1835 (2).

Capela de Santo Antonio, varanda, São Roque
Foto Victor Hugo Mori

Porém, seu interesse em Luís Saia não se limita aos trabalhos de pesquisa e de restauro do monumento; busca também agregar informações sobre a sua pessoa e a maneira como se relacionava com seus subordinados e com aqueles estudantes que trabalhavam sob a sua orientação, de modo a recuperar aspectos de sua personalidade. Indagado, de pronto declarei que nada tinha a contribuir nesse sentido, pois meu ingresso no Iphan ocorreu oito anos após a sua morte. Todavia, provocou em mim a lembrança de fatos que, embora destituídos de importância para a sua pesquisa acadêmica, estavam adormecidos em minha memória.

Capela de Santo Antonio, teto decorado e balcão, São Roque
Foto Victor Hugo Mori

Assim, esse jovem mestrando me fez recordar um momento singular do período de minha formação profissional quando, ainda primeiranista do curso de História na USP, fui ao Sítio e Capela de Santo Antonio com alguns colegas e me encantei com o que vi. Encantamento que ganhou maior solidez com a leitura, feita ali mesmo no alpendre da capela, do famoso artigo escrito por Mário de Andrade para a Revista do Sphan (3) – o que fez despertar em mim o interesse, a partir de então permanente, em conhecer mais e mais sobre aquela encantadora capelinha, como de resto ocorre a todos aqueles que leem esse texto que marcou o início das atividades de identificação dos monumentos do período bandeirista e se deixam cativar não só pelo singular estilo do escritor modernista como, assim influenciados, igualmente seduzidos pelo conceito que elabora acerca do patrimônio histórico e artístico paulista. À relativa pobreza artística, sobressae o valor histórico e documentário do pequeno acervo regional.

Capela de Santo Antonio, teto decorado e altar, São Roque
Foto Victor Hugo Mori

Pouco tempo depois, ainda estudante, fui também ao Sítio do Padre Ignacio, em companhia de um colega que então já trabalhava para o Iphan, ocasião em que conheci o arquiteto Luís Saia. A bem da verdade, apenas o vi; pois, muito ocupado, entrando e saindo da morada, carregando sempre alguma coisa, sequer se apercebeu da minha presença. Eu mesmo me interessei mais em observar a vetusta e elegante morada, o requinte de seus elementos, do que propriamente a figura do arquiteto responsável por sua preservação. Uma coisa porém me chamou a atenção: apesar de toda atividade não se desfazia do escuro paletó que vestia; homem da mesma geração de meu pai, tal qual mantinha o costume, adotado desde a juventude, enquanto trabalha. E se bem me recordo, ainda exibia um daqueles bigodes que costumavam usar, bem estreitos, fininhos, bem coladinhos ao lábio, à maneira de Adoniran Barbosa.

Sítio de Padre Ignácio, Cotia
Foto Victor Hugo Mori [MAYUMI, Lia. Taipa, canela-preta e concreto. Romano Guerra, 2008]

Houve uma segunda e talvez última ocasião em que o encontrei. Creio que eu já começara a trabalhar no Setor de Documentação do Departamento de História da USP (por volta de setembro de 1974), aonde, desfrutando da companhia e inteligência de Miriam Lifchitz Moreira Leite, num trabalho cooperativo com o Iphan a respeito da antiga documentação pública de São Luiz do Paraitinga, auxiliava-a no “arranjo” para posterior microfilmagem. Este serviço era uma etapa dos trabalhos de organização documental que tiveram por objetivo precípuo o estudo da formação urbana daquela cidade e consequente plano de preservação que deveria ser levado a efeito pelo órgão estadual de preservação.

Indo ao Iphan, o sobrado nº 639 da rua Baronesa de Itu, adentrei numa ampla sala onde havia empilhados enorme quantidade de livros sobre mesas e prateleiras, o que me fez exclamar admiração a um senhor que ali se encontrava e que não era outro senão o próprio Luís Saia mas que, diferentemente do contato anterior, agora ostentava vasta cabeleira grisalha, sentado à uma escrivaninha, e que prontamente me respondeu: — São meus, eu os comprei com o meu dinheiro! Surpreso, nada respondi. Ele, com voz menos contundente, porém ainda taxativa, acrescentou: — Vou deixá-los para a biblioteca do Iphan! Acho que consegui responder algo como: — Que bom! e me retirei sem mais dizer palavra. Se tivesse me deixado levar pela impressão que então me causou, a admiração que viria a ter depois sobre as suas realizações – tanto pelas obras que realizou como arquiteto-restaurador bem como sobre a sua produção intelectual que primava pela metodologia fundada em critérios objetivos e pela comprovação empírica em pesquisa bibliográfica e documental –, não sei se teria abandonado uma perspectiva de trabalho pela qual viria a me dedicar até os dias atuais.

Daquele período estudantil até ingressar no Iphan no finalzinho do ano de 1983, decorreram cerca de dez anos, e outros tantos até vir a desenvolver pesquisas sobre esses mesmos exemplares da arquitetura rural paulista e ter a satisfação de colher nos arquivos públicos dados até então inéditos sobre os mesmos. Já havia decorrido aproximadamente vinte e poucos anos entre o primeiro contato com esses monumentos e a pessoa de Luís Saia e a descoberta desses documentos que esclareceram um pouco melhor alguns momentos de suas trajetórias, iniciadas no tempo dos grandes empreendimentos bandeiristas, consubstanciando a fama e a abastança de seus fundadores, os quais terminariam, depois de longo período de decadência, em “restos” apenas de suas primitivas configurações, já bastante prejudicados em sua Arquitetura e grandemente subtraídos de sua Arte original (4).

Importante ou não, as pesquisas sobre os dois monumentos foram realizadas sob a perspectiva que traçamos no Projeto Documentação de bens e monumentos tombados que nunca foi contemplado com recurso nenhum, mas que tem por objetivo aprofundar o conhecimento desses testemunhos materiais do passado paulista e creio eu que os dados assim coligidos acrescentaram alguma coisa ao que já era sabido quando os visitei pela primeira vez (5). E é isso mesmo que me encafifa. Por que exatamente sobre estes dois monumentos eu haveria de colaborar?  (6) Parecia predestinação!

Não obstante, confesso que quando realizava as pesquisas sobre os ditos monumentos bandeiristas, na medida em que descobria um ou dois documentos num arquivo e estabelecia relações que em outro arquivo logo encontrava dados que comprovavam os nexos existentes entre eles, descortinando paulatinamente a trama de relações que me permitiu a identificação dos personagens e dos fatos antes obscuros, era nesses momentos de grande satisfação que eu gostava de imaginar as figuras de Luís Saia e de Mário de Andrade atuando como entidades intelectuais a me orientar nas buscas documentais que efetuava, saudando-os a cada nova descoberta (7).

Caricatura de Luis Saia

notas

NE
Artigo publicado originalmente em Resgate – História e Arte II https://sites.google.com/site/resgatehistoriaearte/

1
SOMBRA, Fausto. Luís Saia e Lúcio Costa. A parceria no Sítio Santo Antônio. Arquitextos, São Paulo, ano 14, n. 161.03, Vitruvius, out. 2013 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.161/4915>.

2
Sítio e Capela de Santo Antonio – Roteiro de Visita. Publicação da 9ª Coordenadoria Regional do Iphan. Projeto: Implantação de Programas de Uso em Bens Tombados. 1997

3
ANDRADE, Mário de. A Capela de Santo Antonio. Revista do SPHAN, Vol. 1, Rio de Janeiro. MES/Iphan, 1937.

4
Sobre esses últimos aspectos, nada foi verdadeiramente encontrado nas pesquisas por mim procedidas a não ser as referências acerca dos objetos que compunham os acervos religiosos desses monumentos e dos destinos por esses tomados. Em Negrinhos de Santo Antonio, discorremos sobre a triste solução museológica dada aos tocheiros antropológicos da capela fundada por Fernão Paes de Barros em 1681. No que se referia aos objetos de culto da capela da morada principal do Sítio construído pelo Sargento-mor Roque Soares Medella, esses foram herdados e acrescidos por seu filho padre Raphael Antonio de Barros para seu benefício material, proporcionando-lhe renda adicional graças ao privilégio alcançado pelo Breve concedido em Roma em 1757 pelo Papa Benedito XIV, benefício depois renovado por sua sobrinha e também herdeira Dona Anna de Barros Leme (e filhos), o qual pode ter prosseguimento em razão da presença de seu primo o padre Ignacio Francisco do Amaral que com ela vivia e que passou a administrar as missas na capela da morada. O rol dos utensílios sacros não era nem pequeno nem muito menos inexpressivo, sendo considerável a prataria existente, a começar pelo frontispício do altar. Todo esse acervo sacro que constituía o patrimônio da então capela de Nossa Senhora do Rosário – a santa de devoção do padre Raphael – foi doado à Igreja Matriz de Cotia, após o falecimento da sua citada herdeira. Todavia, tudo isso não existe mais; e já havia desaparecido muito antes do Iphan localizar esse antigo monumento. Para conhecimento mais amiudado desses acervos, além das peças citadas no Roteiro de Visita do Sítio e Capela de Santo Antonio, ver também Pesquisas em torno de um monumento (Nota 24), em coautoria do colega José Saia Neto em publicação da 9ª CR/Iphan, ambas autorizadas na gestão da Arquiteta Cecília Rodrigues dos Santos na Superintendência da Regional paulista.

5
Por exemplo, a questão que era ainda carente de melhor fundamentação – quem construiu a morada do Sítio do Padre Ignácio? – foi definitivamente respondida em favor da hipótese sustentada por Luís Saia.

6
Outros monumentos mereceram a nossa atenção, sobre os quais obtivemos algum êxito também. Nem todos, porém, alcançaram os resultados propostos no projeto norteador. O certo é que em relação a esses dois monumentos ocorreu uma sucessão de fatos que me levou primeiramente a deparar com esses elementos que passaram a pertencer ao universo de meus interesses, antes apenas esboçado na própria disciplina e mais tarde consubstanciado nos compromissos de ordem pessoal e sobre tudo profissional que viria desempenhar que me levou a trilhar por um caminho e a com eles topar novamente mais adiante, quando então já reunia condições de me debruçar mais detidamente nas pesquisas que viria a realizar já como técnico do Iphan.

7
De certo, mais importante do que esses devaneios foi a influência de meu colega José Saia Neto que sempre soube me interessar sobre esses e outros mais monumentos que estavam ou continuam carentes ainda de investigação mais apurada, para o que não se furtava em me contar o que havia recolhido de informações junto ao seu pai.

sobre o autor

Carlos Gutierrez Cerqueira é formado em História (FFLCH USP, 1975) e Técnico em Pesquisa da Superintendência Regional do Iphan/SP desde 1983.

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