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my city ISSN 1982-9922

abstracts

português
Dos primeiros anos de Palmas, derivam profusões de imagens que habitam a memória de sua recente trajetória, na dinamicidade própria de uma capital em formação. O ensaio visa perpassar algumas dessas lembranças, sob a ótica da experiência pessoal do autor.

english
From the genesis of Palmas, emerge profusions of images that remain in the memory of its trajectory, in the dynamicity inherent of a capital under formation. This essay intends to review some remembrances, under the perspective of a personal experience.

español
De los primeros años de Palmas, derivan profusiones de imágenes que habitan la memoria de su trayectoria, en la dinámica propia de una capital en formación. El ensayo persigue atravesar algunos de esos recuerdos, bajo la óptica de una experiencia personal

how to quote

GUIMARÃES, Leonardo Dimitry Silva. Palmas. Lembranças da infância de uma nova capital. Minha Cidade, São Paulo, ano 18, n. 207.01, Vitruvius, out. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/18.207/6736>.


Palácio Araguaia, sede do governo do Estado do Tocantins, Palmas, 2016
Foto Leonardo Dimitry S. Guimarães


Se nove décimos da nossa existência decorrem na cidade, é da cidade que advém nove décimos das imagens que habitam a nossa memória (1). Seus espaços são plataforma para experiências evocativas primais, sedimentadas na subjetividade desde nossos primeiros contatos com o mundo: constantemente lembramo-nos das feições da rua que morávamos na infância, dos parques que frequentávamos na juventude ou do edifício que adotávamos como referência – e que, na fluidez dos significados, podem hoje já não ter o mesmo valor de outrora. Desta íntima ligação, derivam efeitos em pontas opostas: ao mesmo tempo que a constância do contexto material (leia-se: pequenas e gotejadas transformações) sugere permanência e estabilidade (2), as mudanças abalam os vínculos criados – sobretudo na dinamicidade do meio urbano.

Os velhos lamentarão a perda do muro em que se recostavam para tomar sol. Os que voltam do trabalho acharão cansativo o caminho sem a sombra do renque de árvores. A casa demolida abala os hábitos familiares e para os vizinhos que a viam há anos aquele canto de rua ganhará uma face estranha ou adversa. Destruída a parte de um bairro onde se prendiam lembranças de infância do seu morador, algo de si morre junto com as paredes ruídas, os jardins cimentados (3).

Diante da vicissitude inerente à urbe, é a rebeldia da memória que repõe as pedras em seus antigos lugares (4), em resposta à perda da referência espacial – que seria a perda de uma tradição que nos ampara. Por isso os edifícios demolidos e caminhos desfeitos sobrevivem além da concretude, nem que seja apenas pelo nome tradicional de uma rua – ainda que os sinais que lhe deram origem já não existam mais (5).

Nas cidades novas planejadas, entretanto, a questão é dada de modo particular. No paradoxo de sua formação ex nihilo, a construção catalisada por um anseio poderia pressupor uma ausência rememorativa, como sugerem Argan e Lévi-Strauss (6). Por outro lado, o espaço em sua forma social implica em numerosas interações entre os habitantes e a cidade (7) desde o princípio, compondo-o gradualmente como locus de significações. Assim sendo, do mesmo modo que o desenvolvimento inicial de um núcleo urbano se assemelha à nossa infância – na brevidade de sua existência, no seu estado de incompletude e na acelerada cadência das transformações –, a construção da memória da (e na) cidade similarmente se dispõe numa paulatina estratificação de marcos pretéritos – e que, na maturidade, podem ser revisitados e dotados de novos sentidos.

Tive a oportunidade de vivenciar as duas experiências simultaneamente. Durante a infância, acompanhei de perto o início de uma nova capital: ao chegar em Palmas no ano de 1992, o cenário era de uma cidade com apenas três anos de existência e pouco mais de 35 mil habitantes (8). Entre o rio e a serra, o núcleo já esboçava seus traços ortogonais, balizados pelo principal eixo norte-sul (Avenida Teotônio Segurado) e leste-oeste (Avenida Juscelino Kubitschek). No encontro das avenidas, se dispunha a Praça dos Girassóis – que naquele momento ainda era seccionada pelas vias – e os principais edifícios públicos do recém-criado estado do Tocantins.

Segundo o plano, a partir desta intersecção a cidade dividia-se em quatro grandes áreas colaterais que, por sua vez, eram subdivididas em superquadras de aproximadamente 700x700 metros. As quadras, como unidades básicas na organização da vida urbana, podiam assumir parcelamentos internos próprios, mas mantendo a premissa de reservar espaços para a implantação de equipamentos públicos, como escolas e praças (9). Assim sendo, mesmo criança, era possível apreender a lógica geral daquele plano urbanístico (que estampava as listas telefônicas da cidade), dada sua intuitividade.

Exemplo de quadra residencial em Palmas, 2017
Foto divulgação [Google Earth, alterado pelo autor]

No decorrer dos anos, o traçado urbano tomava forma em várias partes do núcleo, mesmo que diversas quadras contassem com pouquíssimas edificações. Era grande a quantidade de lotes vagos, sobretudo pelo descumprimento do plano original – que previa a construção da cidade em etapas, racionalizando a implantação de infraestrutura (10). Acompanhávamos a gradual ocupação das áreas, especialmente nas vizinhanças, ao mesmo tempo que o aumento da densidade implicava no desaparecimento de alguns dos “trieiros” – que traçavam o menor caminho em meio ao calor do cerrado – ou os improvisados espaços de lazer, como campos de terra batida, criados num momento que a maioria das ruas não era pavimentada. Aliás, ainda me lembro de presenciar o asfaltamento da rua de casa, bem como a execução da rede de esgoto. Aos poucos os estigmas da poeira eram atenuados, à medida que a cidade se estruturava.

Quadra residencial em Palmas, c.1996
Foto João Guimarães

Me recordo também da instalação das sinalizações urbanas. As placas das quadras, ruas e casas assumiam uma nomenclatura de endereçamento distinta daquela que era utilizada nos primeiros anos: o que antes era ARSE 71 (Área Residencial Sudeste 71, onde o número sete remetia à localização norte-sul e o número um à localização leste-oeste) passou a ser chamado de 704 sul (de modo similar a Brasília). Duplicidade posta, a confusão persiste até os dias atuais – e não é raro encontrar moradores e estabelecimentos comerciais que se referem às suas quadras por meio dos antigos números.

Sob o caráter interino comum à construção, muitos dos espaços temporários que habitavam o cotidiano da capital hoje não passam de lembranças. O antigo aeroporto, por exemplo, situava-se no meio da cidade: da baixada da Avenida Teotônio Segurado, conseguíamos ver a cabeceira da pista. Às vezes seus portões se abriam para o público, que se aglomerava para ver as apresentações da Esquadrilha da Fumaça. Com a posterior inauguração do espaço definitivo noutra área, a antiga estrutura recebeu usos distintos. O que era sua pista de pouso hoje é uma avenida.

Muito se passou também na antiga rodoviária. Por lá, vários chegaram e saíram no burburinho de uma cidade em formação. A estrutura do edifício que abrigava as funções do terminal era tímida, nitidamente provisória, mas seu entorno fervilhava: no espaço contíguo, funcionava um centro de comércio popular, com suas lojas, bares e acomodações, em edifícios majoritariamente autoconstruídos. Em véspera de datas comemorativas, era comum ver suas passagens abarrotadas de pessoas. Entretanto, o terreno era uma propriedade estatal e, com a conclusão das obras da nova rodoviária, o conjunto foi demolido em 2001 (11). Quem passa por lá hoje não poderia supor a vivacidade que aquele terreno baldio chegou a ter um dia.

Por outro lado, participar da infância da capital também significava testemunhar o surgimento de vários marcos da cidade. Recordo-me da nova paisagem criada pela implantação do Espaço Cultural, com sua grande estrutura espacial em meio a um aclive. Seus amplos espaços livres reforçavam, pela monumentalidade, a sensação de que qualquer coisa poderia acontecer sob sua cobertura – espetáculos, feiras ou simplesmente alguma brincadeira improvisada. Entretanto, o que mais atuava no imaginário infantil era a cobertura cônica do teatro, como um acidente topográfico concebido pelo homem. Entre outros, é possível lembrar também das obras na Praça dos Girassóis, da qual resulta seu estado atual, tornando-se uma das maiores praças urbanas do mundo (12), do Memorial Coluna Prestes (edifício de Oscar Niemeyer, originalmente concebido para a cidade do Rio de Janeiro) e até a inauguração do primeiro shopping da Palmas, o Palm Blue, que gerou um verdadeiro frisson numa cidade que visava se estabelecer com as feições de uma capital.

Na profunda interação que capital tocantinense guarda com seu entorno natural, não há como rememorar seus primeiros anos sem também citar o rio homônimo ao estado. Se o Rio Tocantins em princípio representava uma barreira à conexão do município com a Rodovia Belém-Brasília, na margem oposta – era necessário atravessá-lo por balsa –, sua vocação como espaço de lazer e sociabilização de certa forma sobrepujava os transtornos. Nos meses de seca, quando o nível da água abaixava e formavam-se praias, as margens do rio eram ocupadas por estruturas semelhantes a cidades temporárias: seus sistemas de infraestrutura podiam contar, por exemplo, com palcos, barracas, flutuantes e playgrounds. Palmenses e turistas passavam o dia inteiro na famosa Praia da Graciosa (e muitos, inclusive, adentravam a noite).

Praia da Graciosa, circa 1997. Foto: João Guimarães [Acervo pessoal do autor]

Tudo aquilo, entretanto, era passageiro. Para a cidade, já se previa desde o princípio a criação de um lago, formado à medida que a usina hidrelétrica de Lajeado entrasse em operação. Observávamos, na virada do milênio, as movimentações em torno da execução tanto da barragem quanto da ponte que, enfim, ligaria as duas margens alargadas do rio. Por fim, com o encerramento das obras, o Tocantins gradualmente aumentou sua cota até formar a bacia como vemos hoje. Apesar da presença de um saudosismo, atualmente é indiscutível a ampla apropriação do lago pelos habitantes e visitantes de Palmas.

Ponte da Amizade e da Integração, com Palmas ao fundo. 2017
Foto Guilherme Guimarães

Se é natural que se possa estabelecer uma arraigada ligação com o local que habitamos na infância – terra natal ou não –, viver os primeiros anos juntamente com o início de uma nova cidade reserva um vínculo afetivo próprio. A cada retorno a Palmas, observo com atenção a profusão de detalhes alterados: os novos edifícios que acentuam a verticalização do skyline urbano, as distintas feições das quadras, as mudanças na orla e, à noite, a mancha luminosa que aumenta vertiginosamente na margem oposta do lago, no distrito de Luzimangues.

Talvez, pessoalmente, as transformações assumam uma proporção particular, por uma eterna comparação com o que já foi um dia. Porém, mesmo com seus vários desafios – antigos e novos –, ver a capital hoje com 28 anos e quase 280 mil habitantes (13) é poder testemunhar algo que, naqueles anos pioneiros, situava-se no campo da imaginação. É um privilégio ter participado de sua história; dela, carregamos imagens que se impregnam na memória e, de certo modo, coabitam aquilo que somos.

notas

1
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 2005.

2
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990.

3
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p. 451-452

4
Idem, ibidem, p. 452.

5
HALBWACHS, Maurice. Op. cit., p. 138.

6
Giulio Carlo Argan defende que a cidade não se funda, se forma. Cidades construídas por imposição, como Brasília, não apresentariam desenvolvimento, enquanto as concepções das cidades de Ledoux e Garnier não passariam de extensões da fábrica. ARGAN, Giulio Carlo. Op. cit., p. 234. Já Lévi-Strauss, ao descrever suas impressões sobre a recém-criada Goiânia, pressupõe os elementos da cidade como sem história e sem duração, ao mesmo tempo que a inexistência de hábitos contribuiria para a manutenção do vazio e da rigidez. LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo, Anhembi, 1957, p. 128.

7
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Lisboa, Edições 70, 1999.

8
IBGE, 1992-2016. Estimativas preliminares para os anos intercensitários dos totais populacionais <http://tabnet/datasus/gov.br>. Acesso em: 30 jul. 2017.

9
TEIXEIRA, Luís Fernando Cruvinel. A formação de Palmas. Revista UFG, ano X, n. 6, jun. 2009, p. 91-99.

10
Idem, ibidem.

11
TERMINAL de lembranças. Direção: Gleydsson Nunes. Palmas: G20 Comunicação, 2010. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=yj4livrlhtk>. Acesso em: 31 jul, 2017.

12
TOCANTINS. Secretaria de Estado do Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia, Turismo e Cultura. Praça dos Girassóis. 2017. Disponível em: <http://turismo.to.gov.br/regioes-turisticas/serras-e-lago-/principais-atrativos/palmas/praca-dos-girassois>. Acesso em: 31 jul. 2017.

13
IBGE, op. cit.

sobre o autor

Leonardo Dimitry Silva Guimarães, arquiteto e urbanista (Universidade Estadual de Goiás, 2011), especialista em História Cultural (Universidade Federal de Goiás, 2015) e mestrando em Arquitetura e Urbanismo (Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em São Carlos). É servidor da Universidade Federal de Goiás desde 2013, onde atua como arquiteto e urbanista.

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