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my city ISSN 1982-9922

abstracts

português
Recentemente teve início a demolição parcial de uma vila operária no distrito do Tatuapé, em São Paulo. O evento despertou críticas de especialistas e moradores e expôs fraturas sociais sobre o conceito de patrimônio e sua relação com a população.

english
Recently had started the partial demolition of a historical village in Tatuapé district, São Paulo. The event awakened reviews from specialists and residents and exposed the social fractures about the concept of patrimony and it relation with the people.

español
Recientemente se inició la demolición parcial de una villa obrera en el distrito del Tatuapé, en São Paulo. El evento despertó críticas de especialistas y moradores y expuso fracturas sociales sobre el concepto de patrimonio y su relación con la población

how to quote

CHICONI, Lucas. Vila Operária João Migliari. A demolição como parte do higienismo social e da falta de memória sobre o patrimônio. Minha Cidade, São Paulo, ano 19, n. 225.01, Vitruvius, abr. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/19.225/7309>.


Vila Operária João Migliari, Tatuapé, São Paulo
Foto Lucas Chiconi


Dia 20 de fevereiro, termino minha sessão de terapia em uma clínica que ocupa um dos imóveis de uma vila operária localizada entre as ruas João Migliari e Padre Estevão Pernet, no Tatuapé, Zona Leste de São Paulo. Minha psicóloga questiona “Lucas, essa vila não era tombada?” ao que respondo de imediato “Por estar tão bem conservada, sempre acreditei que sim. Por quê?”. A porção norte da vila, na Rua João Migliari, estava sendo demolida, já com os telhados sendo retirados. Faço uma foto e posto um desabafo de indignação nas minhas redes sociais e questiono: “Porte Engenharia e Urbanismo, é você?”

Após uma série de manifestações sobre a publicação pessoal, um movimento de defesa pela vila é organizado e diversos grupos se manifestaram sobre o ocorrido: um artigo escrito por mim e o pesquisador Pedro Mendonça, graduando pela FAU USP, para o Laboratório de pesquisas urbanas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – LabCidade da USP, uma matéria publicada pelo jornal O Estado de São Paulo e outra pelo Nexo Jornal.

A vila operária em questão data possivelmente da década de 1940 e junto a outros conjuntos similares, compõem um patrimônio que remete ao período da industrialização da metrópole e das classes operárias deste momento da história. Bairros dessa primeira porção da Zona Leste se desenvolveram através das antigas fábricas, onde muitas destas construíram estes conjuntos para promover moradia aos seus funcionários. Elas estão presentes em muitos bairros localizados no Centro Expandido e proximidades, ao longo dos antigos eixos tradicionais da industrialização (Brás – ABC Paulista; Brás – Penha; Brás – Lapa).

Na João Migliari, a vila sempre esteve em pleno funcionamento e bem conservada, com usos residenciais, de comércio e serviços, servindo a muitos que moram e passam pela região. Localizada próxima à Radial Leste e à Estação Carrão da Linha 3 – Vermelha do Metrô, a vila está em território de um projeto urbanístico chamado Eixo Platina, da construtora Porte Engenharia e Urbanismo. O objetivo é construir uma série de empreendimentos entre as estações Belém, Tatuapé e Carrão, conectados pela Rua Platina, a fim de consolidar uma centralidade financeira que já foi apelidada de “Berrini da Zona Leste”. Para isso, parte da vila foi demolida para dar lugar a um desses futuros empreendimentos. O restante ainda não foi vendido e segue em pé, mas o proprietário já solicitou que os inquilinos devem começar a desocupar os imóveis (1).

Sob a ótica da legislação, o Plano Diretor (Lei 16.050/2014) orienta o adensamento populacional e as edificações de maior altura ao longo dos eixos de estruturação, a exemplo do metrô, trens e corredores de ônibus, e define grande parte deste território como ZEU (Zona Eixo de Estruturação) pelo Zoneamento (Lei 16.402/2016). A vila está definida como Zona Mista, ainda que vizinha a algumas ZEUs, mas sua porção ao norte da Rua João Migliari foi comprada pela construtora Porte Engenharia e Urbanismo para ter o terreno incorporado a uma grande área a ser transformada em um dos empreendimentos do Eixo Platina. Mas independente desta premissa da legislação urbanística, muito clara quanto aos objetivos do adensamento nas áreas com maior infraestrutura de transportes, a perda do patrimônio poderia ter sido evitada com dispositivos mais eficientes pelos órgãos responsáveis, promovendo maior interesse no tombamento e consciência por parte da população, além de promover o desenvolvimento econômico associado aos elementos históricos da cidade.

Vila Operária João Migliari, demolição parcial e novos empreendimentos imobiliários, Tatuapé, São Paulo
Foto Lucas Chiconi

A vila expõe um dos embates mais emblemáticos das metrópoles contemporâneas, simbolizando a resistência do patrimônio diante do “progresso” econômico. De passado rural e fabril, o Tatuapé se destaca na história de São Paulo por estar completando quase 40 anos de transformações contínuas em seu território, protagonizando os efeitos da gentrificação nesta primeira porção da Zona Leste, sendo um dos bairros que mais se valorizaram no final do século 20 e que também tiveram maior crescimento da renda familiar, se aproximando dos distritos do chamado “círculo de riqueza” do Vetor Sudoeste (eixo Centro/Paulista – Faria Lima – Berrini) (2). O início da urbanização do Tatuapé data do final do século 19 com o loteamento da Vila Gomes Cardim – muito expressivo na primeira Planta Geral da Capital de São Paulo (1897) –, a qual teve sua elaboração comandada pelo advogado Dr. Pedro Augusto Gomes Cardim (proprietário do loteamento que leva seu nome). Quase cem anos depois, a partir da década de 1980, a região passa a receber edifícios, centros comerciais e serviços destinados à população de renda mais alta (3).

O novo surto de valorização imobiliária surge na virada para o século 21, em novembro de 1999, com a construção do Shopping Anália Franco nas proximidades dos distritos de Água Rasa e Vila Formosa. Junto com a consolidação da Mooca, do outro lado da Avenida Salim Farah Maluf (limite leste do Centro Expandido), todo esse território passou a ser cobiçado pelo mercado imobiliário e voltou-se à nova classe média-alta da metrópole. O valor do metro quadrado, por volta de R$ 7.000,00 nessa região, já é semelhante ao dos bairros mais valorizados no Vetor Sudoeste, sendo este um território muito privilegiado pela proximidade com o Centro, o Aeroporto Internacional de Guarulhos, o ABC Paulista e pela infraestrutura de transportes, abrigando linhas do Metrô e da CPTM, além da consolidação de uma intensa mistura de usos que fortalece importantes centralidades.

Diferente da região da Mooca e do Brás, onde já existem muitos imóveis antigos protegidos pelos órgãos de patrimônio municipal e estadual (Conpresp e Condephaat), e também do Belém, onde está a Vila Maria Zélia (a mais antiga do Brasil nessa classificação), o Tatuapé possui poucas áreas tombadas, sendo nenhuma delas do período da industrialização (4). A demolição de uma parte da Vila Operária João Migliari e o risco de demolição do restante do conjunto também demonstra a falta de observação de especialistas sobre esse território, assim como o questionamento ao sentimento de pertencimento da população com as edificações que resguardam a memória de grupos sociais que não sejam as elites. A noção de patrimônio precisa percorrer o cotidiano da sociedade e desconstruir a ideia da monumentalidade (5). Também é exposta a responsabilidade e possível ausência dos órgãos de patrimônio em regiões muito valorizadas pelo mercado imobiliário.

É necessário apontar falhas nas leis de tombamento, visto que a responsabilidade da conservação é do proprietário do imóvel, sem grandes incentivos por parte do poder público para que a sociedade se comprometa e se interesse pela história e sua preservação. Isso é um ponto paradigmático no patrimônio das classes médias e baixas em um país que não possui muita tradição e responsabilidade com seu passado e que ainda não resolveu as imensas desigualdades que promovem crises habitacionais e demasiadas vulnerabilidades socioambientais. Em um país jovem, de muitos conflitos na construção da sociedade e das cidades, é notável a dificuldade de reconhecimento e discernimento do que faz parte da história, o que é patrimônio e principalmente o que significa progresso econômico. E, principalmente, para quem este progresso está destinado, mais uma vez.

notas

1
MENGUE, Priscila. Moradores criticam demolição de antiga vila no Tatuapé, em SP. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 22 mar. 2019 <https://bit.ly/2OsLbFe>.

2
MEYER, Regina; GROSTEIN, Marta; BIDERMAN, C. São Paulo Metrópole. São Paulo, Edusp/Ioesp, 2004.

3
ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL, Secretaria de Cultura. Planta Geral da Capital de São Paulo (1897), Prefeitura de São Paulo, 2005-2008 <www.arquiamigos.org.br/info/info20/i-1897.htm>.

4
CHICONI, Lucas; MENDONÇA, Pedro. Sai vila histórica, entra prédio: transformação excludente no Eixo Platina, em São Paulo. São Paulo, LabCidade FAU USP, 13 mar. 2019 <https://bit.ly/2HOsomZ>.

5
LIMA, Juliana Domingos de. O que são as vilas operárias. E o que resta delas no Brasil. Nexo Jornal, São Paulo, 24 mar. 2019 <https://bit.ly/2FvsDQg>.

sobre o autor

Lucas Chiconi Balteiro é urbanista e arquiteto (Centro Universitário FIAM FAAM, 2017). Contribuiu para a revisão do Plano Diretor Estratégico (Lei 16.050/2014) e do Zoneamento (Lei 16.402/2016) no período de graduação, na Secretaria de Desenvolvimento Urbano (atual Secretaria de Urbanismo e Licenciamento). Atualmente trabalha com projetos e pesquisas de caráter urbanístico.

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