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my city ISSN 1982-9922

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A partir de uma foto do suíço Guilherme Gaensly, de 1894, José Roberto Fernandes Castilho narra as transformações vividas por um espaço público de nome hoje esquecido: o largo do Rosário.

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CASTILHO, José Roberto Fernandes. O largo do Rosário numa foto de Guilherme Gaensly. Que lugar é esse? Minha Cidade, São Paulo, ano 19, n. 227.01, Vitruvius, jun. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/19.227/7376>.


O postal do Largo do Rosário, cartão postal com foto de Guilherme Gaensly
Imagem divulgação


Quando vi esta foto do antigo Largo do Rosário – atual Praça Conselheiro Antonio Prado, no centro de São Paulo – e o trecho final da rua 15 de Novembro, lembrei-me de que já tinha lido muita coisa a respeito.

A foto é de Guilherme Gaensly (1843-1928), o suíço que se mudou para a cidade em 1894, vindo da Bahia, e que aqui morreria como fotógrafo contratado pela The São Paulo Railway, Light and Power Company. Seu estúdio ficava na rua 15 de Novembro nº 28, onde vendia “grande coleção de vistas da cidade”, inclusive postais que são fotos industrializadas, fotos transformadas em produto. De fato, eu vi a foto transformada em postal na Coleção de Postais de José Carlos Daltozo, morador de Martinópolis, no interior de São Paulo, que iniciou sua coleção em 1988 e hoje tem mais de 220 mil cartões-postais. Os itens, devidamente classificados, organizam-se em arquivos dispostos em várias peças de sua casa e, com freqüência, ele cede postais para aparecerem em livros, revistas e até rótulo de cerveja.

Tendo como destinatária a Mademoiselle Gabrielle Garnier, o postal em questão foi enviado para a comuna de Bourg-en-Bresse (departamento de Ain), na França, a partir do Rio de Janeiro, então capital federal, porque o remetente poderia estar em trânsito pelo país. Era o dia de 28 de outubro de 1902, data particularmente importante porque logo a praça seria completamente remodelada e ampliada para atender as necessidades de novos tempos. No postal de Daltozo, o remetente traduziu o nome do lugar retratado para o francês: “Place du Rosaire”. Como escreve Benedito Lima de Toledo, “o Largo do Rosário, no início do século 20, era conhecido como ‘coração da cidade’” (1).

Na foto, destaque-e que o piso da praça é calçado e, numa cidade bucólica e terrosa, há muitos cavalos porque há cinco veículos movidos à tração animal na cena, além de um solitário animal que transporta duas pessoas. Afinal, a primeira lei a instituir imposto sobre veículos automotores, iniciando a lista deles pelo automóvel, foi a lei orçamentária de 1901 (Lei nº 493) - e sua existência era rara na época da foto. Logo depois, o famoso Ato nº 146, de 26/2/1903 regulamenta a circulação de veículos na cidade e define o que seja “carro automóvel” (porque os carros eram antes puxados por animais): “todos os veículos munidos de motor mecânico” (art. 2º). Destaque-se ainda a profusão de toldos para proteção dos pedestres defronte aos estabelecimentos comerciais, notadamente a Confeitaria Castelões e a Brasserie Paulista.

O principal texto que me ocorreu é de Antonio de Alcântara Machado, o maior prosador do modernismo paulista e que morreu em 1935, antes de completar 34 anos de idade. É uma crônica publicada no livro póstumo Cavaquinho e Saxofone (solos) 1926-1935, que reúne artigos publicados pelo autor na imprensa. O livro foi editado em 1940 pela José Olympio e nunca mais reeditado. A crônica a que me refiro é a primeira do livro, chama-se ”O centro da cidade de São Paulo” e tem a data de 1929. Começa dizendo que o centro da capital tem a forma de um triângulo “mais ou menos retângulo”, cujos três lados são a rua Direita, a rua 15 de Novembro e a rua S. Bento. E o texto continua:

“A praça Antonio Prado fica no fim da rua 15. Antigamente se chamava largo do Rosário. Tinha a confeitaria Castelões, onde a gente comia quatro empadinhas de camarão muito gostosas e só pagava duas porque a gente não era trouxa. Hoje existe a Brasserie Paulista onde as famílias não podem ir à tarde porque é mal frequentada. Há também o Correio Paulistano que é um jornal muito velho e que elogia certas pessoas só durante quatro anos e o ‘Estado de S. Paulo’ que aos domingos dá trinta e duas páginas e até mais com bonitos anúncios de automóveis e cinemas mostrando bem o progresso de São Paulo” (2).

Como se vê na foto, de 1902, a confeitaria e a brasserie (propriedade do milanês Vittorio Fasano, cuja família teria longa história na gastronomia da cidade, e que fora inaugurada no mesmo ano) ficavam uma quase defronte à outra. Uma brasserie poderia ser identificada hoje como uma cervejaria onde também se servem refeições rápidas (“brasser” = misturar e daí “brasserie” como fábrica de cerveja). Ocupando o lugar do vinho, a cerveja chegara à cidade por volta de 1870 e a “Antarctica Paulista - Fábrica de Gelo e Cervejaria” se estabeleceu em 1886. A “má frequência” noturna – referida por Alcântara Machado – precisa ser bem compreendida porque tem um sentido social e claramente discriminatório: eram “carregadores, motorneiros, pretalhões” que, segundo Ernani Silva Bruno, passaram a frequentar os cafés do Triângulo, formando “uma espécie de ‘bas fond’ central, com os fregueses em mangas de camisa”. Daí a ironia da cena por ele relatada: uma pessoa, que esperava o ônibus na praça, é “convidada para ir ao Castelões ou à Brasserie e responde: “Vamos à Brasserie. Não me agrada a freguesia que a estas horas frequenta o Castelões” (3).

O mesmo historiador explica quem frequentava esta confeitaria: “No princípio do século atual [século 20], parece que o Largo do Rosário é que se tornou a localização preferida das confeitarias de luxo. Ali, nas confeitarias reuniam-se os rapazes paulistanos. Confeitarias entre as quais se destaca a Castelões, com suas três portas abertas até às dez horas da noite. As famílias se encaminhavam para lá por volta das duas e meia às quatro da tarde, para tomarem seus sorvetes e comerem seus doces” (História e tradições da cidade de São Paulo, vol. III). Em suas memórias, Oswald de Andrade refere a “freguesia distinta” da confeitaria, que após certo tempo mudou-se para “o ‘Progrédior’, vasto e elegante local que se abria na Rua 15”. Quando aquela “má frequência” popular se generalizou, a partir dos lados da Sé, por todos os cafés e confeitarias do Triângulo – inclusive o Castelões – a elite retirou-se para o outro lado do Viaduto do Chá.

A foto de Guilherme Gaensly colorizada por Victor Miranda para destacar a confeitaria e a brasserie
Imagem divulgação

A praça recebeu o nome do prefeito Antonio Prado (que fora ministro do Império e daí o título de “conselheiro”) em razão da remodelação que ela sofreu durante a sua longa gestão da cidade (1899-1911). Ele foi a primeira pessoa a receber formalmente o título de prefeito em São Paulo. Oswald de Andrade – cujo pai era vereador no período – diz que a administração Prado “foi um período decisivo de transformação da cidade”. Dada a irregularidade das vias centrais, houve um extenso trabalho tanto de regularização quanto de alargamento delas. O mesmo Oswald escreve que a Líbero Badaró, por exemplo, era uma “angusta passagem” (4).

O historiador Nuto Santana, que trabalhou com Mário de Andrade no Departamento de Cultura, conta que “Antonio Prado realinhou a rua Quinze de Novembro, a Álvares Penteado, a Quintino Bocaiúva, entre outras. Deve-se-lhe também o alargamento do pátio do Rosário, que foi batizado com o seu nome” (5). O que ele não conta é que o alargamento implicou a desapropriação amigável (autorizado pela Lei nº 698, de 24/12/1903) e posterior demolição da Igreja do Rosário dos Homens Pretos, construída no século 18 pelos escravos. Ali – numa área “nobre” da cidade, extremamente valorizada na época – praticavam-se ritos de religiões africanas, com o uso de dentes de onça, figas de guiné, olhos de cabra etc., que atemorizavam as famílias burguesas de São Paulo. Havia liturgias, festas e enterros noturnos. Como indenização, deu-se à Irmandade um valor em dinheiro e uma pequena área no largo do Paissandu para levantamento de nova igreja. De modo expresso, a lei de 1903 diz que o acordo envolvia “uma pequena área de terreno no largo do Paysandú (sic), exclusivamente destinado à construção por aquela Irmandade de uma nova igreja”. Pela inclusão do advérbio vê-se que a Irmandade não poderia vender a nova área.

É certo que houve duas leis a respeito, ambas do final de 1903: uma de setembro e outra de dezembro. A de setembro (Lei nº 670, de 16/09) declara de utilidade pública “os terrenos e prédios necessários ao aumento do largo do Rosário”. Já a outra, antes referida (Lei nº 698, de 24/12), aprova o acordo da Prefeitura com a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, para o pagamento da indenização.

A desapropriação amigável atingiu “a igreja e outras dependências” que ficavam do lado oposto ao retratado na imagem (no lugar onde está o fotógrafo). Estas outras dependências incluíam um cemitério que, não se sabe exatamente como, acabou parando nas mãos do próprio prefeito e da família Prado. Talvez a indefinição dos limites dominiais tenha contribuído para isso. Rapidamente, eles construíram lá o Palacete Martinico Prado (nome de um irmão do prefeito), que hoje, bastante modificado, é a sede da Bolsa de Mercadorias & Futuros (Bovespa). Em 1906, houve a inauguração do palacete – primeiro edifício destinado a escritórios da capital – que abrigou neste mesmo ano o jornal O Estado de S. Paulo, também a Light and Power e, em 1930, o National City Bank of New York – tendo projeto de Ramos de Azevedo. Já a nova igreja do Rosário foi construída entre 1904 – portanto após o recebimento da indenização – e 1906, quando recebeu a consagração, e está de pé até hoje.

O nome “largo do Rosário” estava ligado ao antigo nome da rua 15 de Novembro, que era “rua do Rosário” (= “rua que vai para o Rosário”) por força da igreja. Em 1846, a rua chamou-se “rua da Imperatriz” em homenagem à Teresa Cristina que no ano anterior dera à luz um menino. Com a República e a demolição da igreja, alterou-se o nome da rua e logo depois, em 1905, o do largo que fica no fim dela. Apagou-se de vez a memória dos negros, suas religiões e seus ritos, e até do nome de sua igreja no centro velho da cidade tornado área comercial elegante (com estabelecimentos refinados como La Grande Duchesse, um salão de cabeleireiro, ou Pendule Suisse, uma joalheira, ambos na rua 15, além de outros como Au Palais Royal, Notre Dame de Paris, Au Printemps, Au Louvre).

A cultura negra não tinha lugar no centro da metrópole. Nascia a cidade frenética que, no dizer de Alcântara Machado, enriqueceu muito depressa e, por isso, como num verso modernista: “Estonteia. Entusiasma. Orgulhece”. Hoje a praça ainda conserva o único relógio público de Nichile (ideia do publicitário Octávio de Nichile) que ainda existe na cidade. O relógio, instalado a 8m de altura, foi inaugurado em 1935 pelo prefeito Fabio da Silva Prado, sobrinho de Antonio Prado (filho de Martinico). Está tombado desde 1992. Não aparece na foto porque esta é bem anterior e, além disso, ele se encontra em outro ponto da praça.

A cidade é mesmo um palimpsesto – “um imenso pergaminho cuja escrita é raspada de tempos em tempos” diz Benedito Lima de Toledo – e seus lugares estão longe de ser apenas realidade física tridimensional. Como o espaço se forma numa sucessão de tempos, uma foto num cartão-postal, como aquela acima, pode suscitar diversos textos que remetem a impressões e fatos, histórias e interpretações daquilo que ocorreu ali ao correr dos séculos, numa verdadeira arqueologia urbana. A partir de uma foto é que vão se puxando os fios da história.

O verso do postal, com a destinatária
Imagem divulgação

notas

1
TOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo: três cidades em um século. 4ª edição. São Paulo, Cosac, 2007.

2
MACHADO, Antonio de Alcântara. Cavaquinho e saxofone (solos) 1926-1935. Rio de Janeiro, José Olympio, 1940.

3
BRUNO, Ernani da Silva. História e tradições da cidade de São Paulo. Volume III, 4ª edição. São Paulo, Hucitec, 1991.

4
ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão – sob as ordens de mamãe. 2ª edição. São Paulo, Globo, 1990.

5
SANTANA, Nuto. São Paulo Histórico (aspectos, lendas e costumes). São Paulo, Departamento de Cultura, 1944.

sobre o autor

José Roberto Fernandes Castilho é autor é professor de Direito Urbanístico e de Direito da Arquitetura na FCT/Unesp.

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