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my city ISSN 1982-9922

abstracts

português
O presente artigo traz reflexões sobre a relação de “gênese-apocalipse” entre cidades e minerações, abordando questões relativas ao município de Congonhas/MG e a necessidade de qualificar tal relação.

english
This paper presents reflections about the relation of “genesis-apocalypse” between cities and mining, approaching issues related to the municipality of Congonhas/MG and the need to qualify such relation.

español
El presente artículo trae reflexiones sobre la relación de "génesis-apocalipsis" entre ciudades y minerías, abordando cuestiones relativas al municipio de Congonhas/MG y la necesidad de calificar tal relación.

how to quote

BARBOSA, Douglas Montes. Ao vizinho das brumas. Reflexões sobre a mineração a partir da cidade de Congonhas MG. Minha Cidade, São Paulo, ano 19, n. 227.02, Vitruvius, jun. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/19.227/7383>.


Barragem Casa de Pedra e malha urbana, Congonhas MG
Foto divulgação [Google Maps]


Impossível não ter a voz embargada pela dor de um vizinho. Por entre as portas e fronteiras invisíveis que nos separam percebemos o quanto somos parecidos, sobretudo em nossas fragilidades. Enquanto no vizinho ainda voavam pelas serras as brumas que lhe batizaram, por aqui, os morros se faziam habitados pela planta que alimenta. Hoje pelas serras, habitam brumas densas de poeira e plantas agora industriais. Por aqui, mataram o “Campo” do nosso nome, e parecem aceitar a possibilidade de que matem também sob a lama parte do nosso urbano. Quanto paradoxo e dor cabem nesta relação de gênese e apocalipse. Desde os remotos tempos da corrida pelo metal precioso, quanto se destruiu e quanto se construíram coisas do mais alto nível do intelecto humano, vide a arte que se desdobrou do minério. Porém, entre o barroco e as barrocas há uma lacuna de milhões de toneladas de rejeitos, temos então: origens similares, caminhos e destinos distintos.

Por aqui, permanece a incrível obra do mestre Aleijadinho, em um cenário de reverência mundial. Por outro lado, aleija-se o tecido urbano e social. Nas memórias de quem viveu ainda permanecem a Vila Casa de Pedra e o bairro Plataforma, suprimidos pela mineração, e na rotina de quem vive, resistem as localidades Pires e Motta. Hoje, depois da recorrência de rompimentos de barragens, é este o elemento que mais aterroriza as comunidades do entorno, porém, agora não se configura apenas uma pauta de resistência social, mas também de sobrevivência.

A barragem Casa de Pedra, tida como uma das maiores do mundo situada em área urbana, apresenta hoje uma estrutura com 76 metros de altura e capacidade de 50 milhões de metros cúbicos de rejeito. A mesma está classificada na mais alta categoria de risco e danos associados, tendo sido projetada em três etapas com a capacidade máxima prevista em 76 milhões de metros cúbicos de rejeito. Somente entre os anos 2004 e 2014 foi solicitado pela Companhia Siderúrgica Nacional o alteamento de 22 metros.

Já é sabido que não se deve trocar a experiência pelo conhecimento teórico. Por exemplo, o domínio dos postulados da física sobre movimento e equilíbrio não substituem o saber andar de bicicleta. Podemos ainda considerar a visão dos médicos quando dizem que “a clínica é soberana”, portanto, apesar da importância dos exames complementares a evidência de sintomas pode sugerir condutas distintas ou mesmo tidas como exageradas perante tais recursos. Nesta ótica, já se provou pela experiência prática que tal sistema de deposição de rejeitos, que mesmo analisados, rotulados, carimbados e certificados por detentores do mais alto nível de conhecimento da engenharia mundial não inspiram segurança, e, portanto, não se trata mais de discutir reforços e inspeções nestas, cabe discutir a alteração do método e o aproveitamento do rejeito, custe o que custar.

Não cabe mais assistir Pires e Motta sendo encurralados por pressão imobiliária, intervenção na paisagem e contaminação dos mananciais. Não cabe assistir ao blefe na região do Joana Vieira, que inviabilizou inúmeras propriedades rurais. Não cabe assistir à barganha no tombamento/destombamento da Serra Casa de Pedra, onde se insere manancial fundamental para abastecimento da cidade. Não cabe assistir ao xeque-mate em outros “Plataformas” e outras “Vilas Casa de Pedra”. E nesse xadrez repleto de Reis com movimentos dilatados, não cabe mais espectar, é preciso ser peça.

O desastre extremo que provocou uma enxurrada de lágrimas e lama, também se apresenta diuturnamente em fractais onde apenas mudam-se as escalas e os meios. Não há como se acostumar com a poeira que cresce por trás da Serra Casa de Pedra e de repente se transforma em uma grande nuvem que sobe desbotando o céu e desce dando emprego aos nebulizadores, broncodilatadores e vasoconstritores. Nem a bela Cachoeira de Santo Antônio, mesmo com as bênçãos do batismo, tem conseguido se livrar de eventos de lama e das areias enferrujadas.

Conjunto da Basílica do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, Congonhas MG
Foto Silvia Schumacher [Wikimedia Commons]

Feliciano Mendes eventualmente teria escolhido como local de implantação da Basílica o alto do morro do maranhão como estratégia para defender sua mais importante obra de devoção das intercorrências do Rio homônimo que sempre serviu de fonte de riquezas e de latrina à Freguesia de Congonhas. Este território de riquezas e oportunidades fez em 1746 figurar na lista dos mais abastados da capitania, nada menos que dez nomes da Freguesia de Congonhas, todos envolvidos com mineração. Isto demonstra que não é de hoje que se acostumou a arrancar da terra o que ela tem de precioso gerando fortunas e esperar que o dom divino recupere as chagas ali deixadas. Ainda hoje, o Maranhão escorre pelo fundo do vale em uma triste policromia tingida de rejeitos.

No mesmo alto de morro, Aleijadinho profeticamente inseriu a escultura de Abdias com vistas para a Serra Casa de Pedra segurando na mão esquerda os dizeres: “Eu vos arguo, indumeus e gentios. Anuncio-vos e vos prevejo pranto e destruição”. Tão emblemático quanto Abdias, o Profeta Joel, olhando na direção da Barragem Casa de Pedra traz a inscrição: “Exponho à Judéia que mal hão de trazer à Terra, a lagarta, o gafanhoto, o brugo e a alforra (ferrugem)”.

Acreditando ou não nas profecias, é fundamental qualificar esta relação de Gênesis e Apocalipse. O fato de a cidade ter sua origem ligada à mineração não delega aos mineradores o direito de escolherem seu destino. Não se pode mais aceitar os recorrentes discursos e chantagens que escamoteiam problemas reais em função de promessas virtuais. Muito menos se pode engolir tratativas entabuladas em cantos desalumiados das repartições. Em momento algum se deve ceder à tentação polarizadora que se insere no âmbito das novas facetas da república, este texto não se ocupa em momento algum de demonizar e pregar o fim da mineração, pelo contrário, defende-se uma atuação de fato preocupada e ocupada com as questões locais, que extrapolem a temática das barragens. Temos plena convicção de que a atividade minerária é altamente rentável ainda que conjugada com um modus operandi seguro e efetivamente dotado de consciência social e ambiental, bem como temos a convicção de que não é possível sujeitar o destino de uma cidade às oscilações do mercado internacional inviabilizando o planejamento municipal e extrapolando a capacidade de suporte ambiental do sítio.

Que sejam bem-vindos os mineradores de nova mentalidade, ainda que os mesmos se reinventem, e que sejamos intolerantes e hostis com estas velhas práticas. À nossa querida vizinha das Brumas, juntamente com Mariana, as nossas eternas condolências e eterna gratidão por tentar acordar o país para esta questão vital, ainda que do modo mais dramático, valendo de seu próprio sangue.

Escultura de Abdias voltado para a Serra Casa de Pedra, Congonhas MG
Foto Wakawakaphoto [Wikimedia Commons]

sobre o autor

Douglas Montes Barbosa é arquiteto pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense – UFF e professor do Departamento de Planejamento e Configuração da Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais e Urbanista da Prefeitura Municipal de Congonhas MG.

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