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Cotejando uma obra de Glauco Campelo com o “Roteiro para Construir no Nordeste” de Armando Holanda, manifesto que integra pensamentos antecedentes, procurou-se refletir sobre as especificidades e singularidades da arquitetura moderna produzida na Região

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COSTA LIMA, Helio; MARIA LEDER, Solange. O Terminal Rodoviário e o “Roteiro para construir no nordeste”. Projetos, São Paulo, ano 11, n. 129.04, Vitruvius, set. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/11.129/4022>.



Discurso e materialização de um manifesto modernista tropical

Obra representativa das últimas manifestações da fase áurea da Arquitetura Moderna no Nordeste Brasileiro, o Terminal Rodoviário de João Pessoa, projetado pelo Arquiteto Glauco Campelo em 1973, materializa os princípios de adequação da arquitetura ao clima que serão consubstanciados em 1976 pelo Arquiteto Armando Holanda, no seu seminal “Roteiro para Construir no Nordeste”.

A reflexão que se segue, partindo do cotejamento dessas duas obras de referência (uma escrita e outra materializada) e do pensamento desses dois profissionais, visa alimentar o debate sobre as especificidades e singularidades da arquitetura moderna produzida no Nordeste. Por um lado, sublinhando a importância do Roteiro de Armando Holanda no ambiente cultural em que brotou, enquanto manifesto modernista por uma arquitetura adaptada aos trópicos úmidos, síntese de um movimento que integra idéias de Gilberto Freyre, de Burle Marx, de Luiz Nunes e de Augusto Reinaldo, entre outros antecedentes. E, por outro lado, demonstrando, através da obra construída de Glauco Campelo, que tais idéias, uma vez concretizadas, produzem uma arquitetura cuja eficiência bio-climática e energética pode ser comprovada hoje, se avaliada por métodos e ferramentas desenvolvidos por estudos científicos realizados posteriormente a ela.

A seguir, vamos confrontar imagens do Terminal Rodoviário de João Pessoa, captadas pelo fotógrafo Roberto Coura, com os desenhos e palavras de ordem de autoria de Armando Holanda – que constituem os princípios do seu roteiro –, para estabelecer as bases da reflexão que propomos.

“Comecemos por uma ampla sombra”...

1. Criar uma sombra

Abrigo protetor do sol e das chuvas tropicais

“... por um abrigo protetor do sol e das chuvas tropicais; por uma sombra aberta, onde a brisa penetre e circule livremente, retirando o calor e a umidade;...”(1)

2. Recuar as paredes

Sombra e espaços amplos

“... por uma sombra alta, com desafogo de espaço e muito ar para se respirar.”

Paredes em sombra

“Lancemos as paredes sob esta sombra, recuadas, protegidas do sol e do calor, das chuvas e da umidade,...”

Áreas de viver com contato com a natureza

“...exploremos a longa projeção, a fachada sombreada e aberta,...”

Projeção da cobertura

“...de forma a surgirem lugares abrigados, donde se possa participar do desenrolar dos dias e das noites, animados pela luz, pelos ventos e pelas chuvas...”

3. Vazar os muros

Panos vazados

“Combinemos as paredes compactas com os panos vazados, para que filtrem a luz e deixem a brisa penetrar.”

Cobogo(2)

“Tiremos partido das imensas possibilidades construtivas e plásticas do elemento vazado de parede – o combogó –...”

4. Proteger as janelas

Aberturas protegidas


“...protejamos as aberturas externas com projeções...”

5. Abrir as portas

Portas convite

“...portas que sejam um convite aos contatos entre os mundos coletivo e individual; portas protegidas e sombreadas que possam permanecer abertas...”

6. Continuar os espaços

Continuidade dos espaços


“Deixemos o espaço fluir, fazendo-o livre, contínuo e desafogado.”

7. Construir com pouco

Materiais refrescantes ao tato e à vista

“Empreguemos materiais refrescantes ao tato e à vista... façamos uma redução no edifício;... no sentido de evitarmos a demasiada variedade de materiais...”

Racionalização e padronização

“Promovamos a racionalização e a padronização da construção, contribuindo para a repetição dos processos construtivos e para a redução dos custos da construção.”

8. Conviver com a natureza

Integração com a paisagem natural

“Não permitamos que a paisagem natural – que já foi contínua e grandiosa – continue a ser amesquinhada e destruída.”

Articulação com a vegetação

“Utilizemos generosamente o sombreamento vegetal, fazendo com que as árvores dos jardins, das vias, dos estacionamentos, das praças e dos parques se articulem e se prolonguem...”

9. Construir frondoso

Arquitetura vigorosa

“...trabalhemos no sentido de uma arquitetura sombreada, aberta, contínua, vigorosa, acolhedora e envolvente..."

Discussão

As imagens acima falam por si. E são eloqüentes de que o Terminal Rodoviário de João Pessoa é a própria materialização arquitetônica do Roteiro para Construir no Nordeste.

De maneira muito significativa, Armando Holanda inicia sua série de expressivos esboços com um esquema que é, como consta na nota escrita logo abaixo dele, um “redesenho segundo traço original de Glauco Campelo” (HOLANDA, 1973, p.11). Outras notas e alusões explícitas, além daquelas que estão nas entrelinhas do discurso, revelam que há mais do que apenas uma convergência fortuita de idéias e princípios de projeto entre esses dois expoentes da Arquitetura Moderna no Nordeste.

Glauco e Armando tiveram íntima convivência profissional e intelectual no Recife, onde compartilharam escritório à Rua da Aurora e atuaram, individualmente ou em parceria, em alguns projetos, comungando em idéias e posturas – como é o caso de um conjunto habitacional no bairro de Boa Viagem, e do texto “Proposições para o ensino na FAUFPE”, de que dividem a autoria(3).

O gesto de Armando, porém, vai mais longe do que apenas prestar um justo tributo ao amigo e parceiro intelectual. No Roteiro, ele assume o papel de porta voz do verdadeiro movimento arquitetônico que foi gestado no Recife, desde que os primeiros ventos do modernismo sopraram no Brasil. Este movimento defendia uma identidade regional da arquitetura moderna, em contraponto, e mesmo resistência, ao equivocado internacionalismo que animou a produção da arquitetura moderna no vórtice da reconstrução da Europa.

Ao citar explicitamente os grandes panos de cobogó utilizados por Luiz Nunes desde 1934-36 e o peitoril ventilado de Augusto Reinaldo, Armando patenteia esse papel. E, para além das citações explícitas, vemos outros militantes da adequação da arquitetura aos trópicos aparecerem em espectro no Roteiro: Roberto Burle Marx e Gilberto Freyre.

Roberto Burle Marx, que forjou no Recife boa parte do seu paisagismo tropical, como diretor do Setor de Parques e Jardins da Diretoria de Arquitetura e Urbanismo do Governo do Estado de Pernambuco (SÁ CARNEIRO e PESSOA, 2003), aparece nas figuras de vegetais que Armando desenha para ilustrar o oitavo princípio do seu Roteiro: “conviver com a natureza”. É a ele que o autor alude quando convoca: “Rejeitemos os jardins de vegetação delicada e miúda, arrumada sobre bem comportados gramados, e acolhamos o caráter selvático e agigantado da natureza tropical”. E lá está Burle Marx na bibliografia...

Gilberto Freyre, não comparece explicitamente no Roteiro, é verdade, mas está em muitas das entrelinhas do discurso de exaltação da adaptação da arquitetura ao clima e à cultura do Nordeste, para a qual o Mestre de Apipucos chamava recorrentemente a atenção dos arquitetos, ao insistir na exemplaridade tanto das casas de fazenda e de chácara (seus alpendres, seus pomares e quintais), quanto das vernaculares casas do caboclo e do pescador:

Há uma casa brasileira – casa de residência – desenvolvida através do tempo que marca a existência histórica do Brasil (...), que é expressão coletiva, anônima, de um ajustamento (...) a uma ecologia e a um conjunto de atividades socioculturais ecologicamente condicionadas.

Dessa casa de residência assim ecológica e funcionalmente brasileira a culminância foi, decerto, a casa-grande patriarcal de engenho, de fazenda, de estância, de sitio ou de chácara...

Mas além da casa-grande patriarcal rural – agrária ou pastoril – o brasileiro em sua arquitetura doméstica desenvolveu subtipos igualmente e expressivamente seus, igualmente ecológicos, igualmente funcionais de residência... Tais as casas médias de residência, quer rural, quer urbana ou suburbana ou rurbana, a casa do caboclo rural, o mucambo rural ou urbano. Isto sem nos esquecermos do sobrado urbano de residência, (...) com características de casas-grandes rurais adaptadas à ecologia urbana (...)(FREYRE, 1971:19).

Na mesma linha de raciocínio, Armando tece um discurso com conteúdo e expressões muito próximas do discurso de Freyre:

As casas dos antigos engenhos e fazendas brasileiros possuíam esses locais sombreados: varandas corridas em torno do corpo da edificação, ou ao longo da fachada principal. Durante o século passado, as varandas foram sendo incorporadas às habitações urbanas, resultando no chalé solto no lote, circundado por terraços altos. A arquitetura moderna dos volumes puros cortou essa evolução, reafirmando a platibanda que esconde o telhado e cria fachadas planas expostas ao sol(HOLANDA, 1973, p. 43).

Se Gilberto Freyre tivesse lido o Roteiro, certamente teria gostado. Todos os seus apelos estão ali acolhidos, e o Terminal Rodoviário se encarrega de mostrar que eles são materializáveis. Armando Holanda e Glauco Campelo, sem ceder a regionalismos superficiais, vão materializar idéias que traduzem em arquitetura a natureza e a cultura do Nordeste, sendo ao mesmo tempo em tudo fiéis aos valores fundamentais da Arquitetura Moderna da melhor qualidade produzida no país. E Freyre antevia uma arquitetura moderna sensível ao ambiente tropical:

Mais do que qualquer outro sistema nacional de vida e de cultura (...) o sistema brasileiro se apresenta como criador de um tipo ecológico de casa de residência que, patriarcal em sua origem, apresenta-se atualmente arcaico em algumas de suas expressões ou soluções arquitetônicas, sendo, entretanto, suscetível de continuar válido em suas formas ecológicas e estéticas, através de modernizações que o ajustem a circunstancias crescentemente pós-patriarcais, de vida brasileira. Modernizações que já se tem verificado (FREYRE, 1971:18).

Aquilo que, na ocasião, resultou da intuição e sensibilidade de Glauco Campelo no projeto do Terminal Rodoviário, e que era preconizado por Armando no Roteiro, pode ser averiguado se confrontado aos princípios de adequação da arquitetura ao clima, hoje ratificados por estudos científicos detalhados.

No que se refere ao regime climático, João Pessoa está sob o domínio do clima tropical quente-úmido, com temperatura média do ar no trimestre mais quente apresentando valores de 26,4ºC a 29ºC, e no trimestre menos quente valores de 24,7ºC a 26,1ºC (SOBREIRA, 2010). Nessas condições, o conforto ambiental pode ser proporcionado através da amenização das inconveniências e da potencialização de vantagens climáticas, como a ventilação natural. O Terminal Rodoviário de João Pessoa é um excelente exemplo de utilização das principais estratégias passivas de adequação da arquitetura ao clima quente e úmido(4), encontradas em obras referenciais de estudiosos como Koenigsberger et al. (1977), Hertz (1998), Serra (1999), entre outros.

Os efeitos da principal adversidade climática local – a radiação solar direta – são minimizados por uma ampla cobertura que se projeta para além dos fechamentos verticais, criando uma grande sombra. Esta cobertura também controla o impacto de outro fenômeno climático ali excessivo – as chuvas tropicais.

O generoso plano de cobertura favorece ainda a que a luz no espaço interno seja difusa, já que suas projeções formam um espaço de “condução da luz”(5), como fazem os alpendres tão comuns na região. A iluminação natural também está presente no espaço interno, através de uma abertura zenital que corta o centro da edificação no sentido longitudinal.

O espaço interior é um convite à ventilação natural - estratégia maior de promoção de conforto térmico nos trópicos úmidos, sem aporte energético de fontes artificiais. O pé-direito elevado, a continuidade dos espaços, o intenso uso de paredes vazadas, os grandes vazios e o despojamento do edifício, resultam em um conjunto com poucas barreiras ao fluxo da ventilação.

Finalmente, na obra do Terminal, a integração com a natureza, tão almejada no Roteiro, proporciona sombreamento não somente à edificação, mas também ao espaço aberto do entorno, tornando o ambiente ameno e agradável. A vegetação invade visualmente o espaço interno, e está de tal forma conectada à edificação, que parece dela fazer parte.

O Terminal Rodoviário se traduz em um espaço confortável e aprazível, não somente pelas características citadas acima, mas ainda pelas qualidades estéticas e funcionais do edifício, pela sensível implantação e notável relação com o entorno. Aspectos que estão de acordo com uma visão da adaptação da arquitetura aos trópicos, não apenas preocupada em amenizar os rigores do clima, mas também em proporcionar a fruição sensível e estetizada da brisa, da luz, do céu e do sol tropicais, tal como exprime Armando Holanda no parágrafo final do Roteiro:

Trabalhemos no sentido de uma arquitetura livre e espontânea, que seja uma clara expressão de nossa cultura e revele uma sensível apropriação do nosso espaço; trabalhemos no sentido de uma arquitetura sombreada, aberta, contínua, vigorosa, acolhedora e envolvente, que ao nos colocar em harmonia com o ambiente tropical nos incite a nele viver integralmente. (HOLANDA, 1973, p. 43).

Estas qualidades arquitetônicas, que não são mensuráveis por instrumentos ou fórmulas matemáticas, se refletem, entretanto, na sensação dos usuários. Na imagem abaixo, captada em uma tarde ensolarada de verão, a postura relaxada e descontraída dos usuários revela a amenidade, a generosidade e o aconchego do Terminal Rodoviário de João Pessoa...

...Um lugar de “uma arquitetura da experiência humana do ambiente natural ou urbano” (HOLANDA, 1973, p.17).

Conclusão

O Roteiro é o último dos “manifestos” modernistas. Foi escrito quando a arquitetura moderna já era considerada superada na Europa e nos Estados Unidos. O uso da primeira pessoa do plural no imperativo, em seus “rappells à l’ordre” no mais puro sotaque corbusiano, faz dele o Vers une Archicteture do Nordeste brasileiro – região onde a arquitetura moderna sobreviveu quase íntegra até os anos 1990, e deixou muitos descendentes.

Como tal, esta pequena obra teve um alcance muito maior do que o de um simples receituário de passos a serem seguidos. Sua valiosa contribuição estendeu-se ao influenciar uma nova geração de profissionais formados na Escola de Recife; muitos dos quais viajaram para a Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte e outros estados da região, levando o Roteiro debaixo do braço.

O Roteiro, conforme vimos, não é uma obra individual, no sentido de expressão do pensamento singular de um indivíduo, mas senão uma depuração intelectual de um ideário de origem plural, já longamente em gestação na Região, com vistas à sua divulgação e disseminação. Essa constatação nada tem de demérito à obra e à memória de Armando Holanda, ao contrário, ela é condizente com a generosidade, o espírito público e a vocação pedagógica ímpar que o caracterizava. Através dele, Armando Holanda se faz o principal porta voz de uma arquitetura moderna no Nordeste brasileiro como “um lugar ameno nos trópicos ensolarados”; e Glauco Campelo, ao materializá-la no Terminal Rodoviário de João Pessoa, prova que essas idéias, cujas raízes alcançam proposições pretéritas de Gilberto Freyre por uma arquitetura tropical, não são apenas utopia e retórica, e que não há incompatibilidade da arquitetura moderna com esse escopo.

notas

1
As citações a seguir são extratos do Roteiro segundo a ordem estabelecida por Armando Holanda ao longo das páginas 10 a 43. 

2
Cobogó o mesmo que Combogó (CORONA; LEMOS, 1989).

3
CAMPELO, G.; HOLANDA, A.; PONTUAL, A.; CARNEIRO, V.; COUTINHO, S. Seminário sobre o ensino da arquitetura. Proposições para o ensino na FAUPE. Recife, 1970. Obra constante na bibliografia do Roteiro para construir no Nordeste.   

4
Intento alcançado há quase 40 anos atrás, portanto, quando a questão da sustentabilidade ainda não estava, como hoje, na ordem do dia.

5
Segundo classificação feita por Baker (1998), espaços de condução intermediários são partes da zona perimetral da edificação que direcionam e distribuem luz natural aos espaços internos contíguos.

sobre o autor

Helio Costa Lima é Prof. Dr. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Economia e Gestão (1994), pela Université de Picardie Amiens (França); mestre em Engenharia de Produção (1987), pela Universidade Federal da Paraíba e Graduado em Arquitetura e Urbanismo (1974), pela Universidade Federal de Pernambuco.

Solange Maria Leder é Profª. Dra. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e Pós-Graduação em Engenharia Urbana e Ambiental, Universidade Federal da Paraíba. Doutora em Engenharia Civil (2007); mestre em Engenharia de Produção (1999) e Graduada em Arquitetura e Urbanismo (1991), pela Universidade Federal de Santa Catarina.

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