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BARKI, José. Desenhos iluminados. Resenhas Online, São Paulo, ano 01, n. 003.01, Vitruvius, mar. 2002 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/01.003/3247>.


O livro/catálogo de Emili Donato Folch, com o título Dibujos de arquitectura / Dessins d'architecture, é uma coletânea de trabalhos arquitetônicos onde podemos acompanhar o desenvolvimento e as reflexões projetuais do arquiteto em um conjunto de trabalhos muito expressivos. A edição, resulta do esforço conjunto das Edition Poïesis de Toulouse e Ediciones Serbal de Barcelona em materializar uma obra que reúne parte essencial da produção profissional do autor. No livro/catálogo estão contemplados vinte e oito projetos arquitetônicos e seis projetos urbanísticos, desenvolvidos entre 1976 e 2000, sendo que deste total quinze foram efetivamente executados. A estrutura da obra procura fazer o resgate da trajetória individual do arquiteto, passando pelas primeiras realizações até chegar à obra madura e consolidada. Filho de um professor de filosofia e escritor e de uma pintora, Emili Donato obteve seu título de Arquitetura em 1961, em primeiro lugar, pela Escola de Arquitetura de Barcelona e em 1972 obteve seu doutorado. Desde 1963 vive e trabalha em Barcelona.

As qualidades do livro/catálogo são imensas. De um ponto de vista restrito poderíamos nos alongar no elogio ao resultado de uma prática, apresentada através de vários projetos e estudos, que implica em uma arquitetura com um caráter tectônico sólido e que nos remete a uma saudável influência de Le Corbusier e Louis Khan. Uma arquitetura discreta que, com uma grande economia de gestos formais, é ao mesmo tempo bruta e delicada. Uma arquitetura de qualidade que, como não poderia deixar de ser, se revela tecnicamente muito bem fundamentada.

Em uma visada mais abrangente, o livro/catálogo relaciona os âmbitos diversos da própria prática da concepção do projeto. Uma intensa paixão pelo risco a mão livre é, talvez, a melhor explicação para esta obra. Composto por dois ensaios, o registro de uma conversa com o arquiteto, uma bem organizada e extensa coletânea de desenhos de concepção de arquitetura e um caderno de desenhos de viagens, é uma bela e refinada produção editorial que, além de documentar um conjunto significativo de projetos de grande qualidade, serve como referência de consulta para jovens arquitetos e estudantes. É uma verdadeira lição de prática da arquitetura. Isso não se deve apenas ao modo de exposição didática dos desenhos. Indo além, o livro/catálogo demonstra a importância, a vitalidade e a beleza de um tipo de abordagem mais realista para o desenho de concepção.

Para arquitetos o registro evocativo mais significativo do desenho talvez se dê na forma de notações gráficas simples e imediatas, principalmente aqueles apontamentos e notações esquemáticas de estudo inicial. A quantidade considerável de publicações que tratam dos arquivos pessoais de arquitetos notáveis e o cuidado especial que, de maneira geral, os arquitetos manifestam com esse tipo de registro, demonstram inequivocamente sua importância simbólica.

Por se tratar de um tipo de registro que combina pequenas ilustrações e esquemas gráficos de natureza variada, palavras e anotações, números e operações de cálculo, além de riscos e marcas pessoais, de uma maneira livre e com poucas convenções, essas notações recebem uma gama variada de denominações: esquemas, diagramas, esboços, croquis, entre outras. Michael Graves (1) nomeia esse tipo de notação como desenho referencial [referential drawing] e o define como um registro ‘taquigráfico’ ou ‘pictográfico’. Uma espécie de notação abreviada, simplificada e de natureza fragmentada com a qual é possível notar e anotar com a mesma rapidez com que se pensa. Graves compara, de forma até enfática, esta maneira de representar com a estruturação de um diário ou com uma espécie de registro de descoberta.

São muitas as circunstâncias para a criação e apresentação de qualquer material visual. Em geral, qualquer material visual comunica alguma coisa e produz algum tipo de expressão que ultrapassa o conteúdo que representa, tenha esse material uma intenção artística ou seja meramente casual. Uma representação material não é só um suporte que indica uma idéia ou remete para algo ausente, se apresenta por si mesmo como algo real que provoca algum tipo de reflexão. No campo da arquitetura sempre houve um grande interesse em colecionar, divulgar e apreciar essas notações gráficas com um tipo de enfoque mais inspirador e elogioso do que crítico ou analítico. Hoje o interesse por esse tipo de registro extrapolou o âmbito da arquitetura, estudiosos de muitas áreas do conhecimento, principalmente aqueles envolvidos com a Ciência da Cognição, que têm dado atenção considerável para esse tipo de representação. Este interesse renovado influiu na maneira com que os pesquisadores de áreas ligadas às Ciências do Projeto passaram a tratar esses registros gráficos.

Projetar é, no seu sentido mais abstrato, o processo de produzir e transformar representações. Para o projetista, toda a seqüência referente às notações gráficas iniciais desse processo implica em, ao menos, três relações: uma relação interna com o seu viés particular e método de trabalho; uma segunda que trata da realidade dos usos, dos espaços e das possibilidades construtivas, e uma terceira relação que se refere ao desenvolvimento objetivo de um programa de desejos e necessidades demandado por um cliente. Nessa sucessão de estados e de mudanças na produção e transformação de representações, os projetistas farão uso de um repertório variado de sistemas gráficos e cada um deles, conforme a aplicação, contendo um determinado valor simbólico.

Os projetistas quando realizam desenhos técnicos fazem uso intensivo de instrumentos e papéis especiais e procuram preservar relações de escala e a ilusão espacial; quando elaboram as notações gráficas usam somente a caneta ou lapiseira em qualquer superfície disponível e se concentram nas proporções e nas qualidades abstratas de um tema plástico-formal. Croquis, gráficos, diagramas, esboços, esquemas ou até mesmo anotações manuscritas servem, não só como auxilio à memória, mas, principalmente, para facilitar a inferência, solução e compreensão. A emergência da forma arquitetônica decorre da interação entre a ação de produzir a representação e os processos cognitivos da sua reinterpretação pelo próprio agente que a produziu. Arquitetos marcam o papel com os riscos que esboçam na busca de idéias e os inspecionam continuamente. Nesse processo percebem relações, aspectos e qualidades que não haviam sido antecipadas e que, por sua vez, indicam possibilidades de desenvolvimento, revisão e refinamento. Esse ciclo – esboço, inspeção, interpretação, revisão, esboço… – se desdobra como um monólogo ou mesmo uma espécie de solilóquio gráfico (2).

Esses tipos de notação são elaborados sem maiores compromissos com códigos preestabelecidos e, mesmo empregando uma forma particular e pessoal de registro, possuem uma espécie de sintaxe; portanto, podem ser compreendidos, mesmo que alguma dificuldade. No entanto, como são produzidos com grande liberdade, alguns serão ambíguos e imprecisos. Por vezes um desenho pode não ficar claro mesmo para quem o elaborou. Ainda assim, o croqui a mão livre é um tipo de desenho fundamental, um estimulante criativo que abre caminhos para a descoberta formal. São desenhos que não podem revelar tudo que está na mente do projetista porque, naquele momento, nem ele mesmo ainda tem completa noção do caminho que irá percorrer (3). No seu processo de trabalho existirão momentos em que não estará preocupado em apresentar desenhos que venham a ser compreendidos por outros: a própria incerteza será o centro do processo criativo de concepção (4).

Para Arnheim (5) esboços e croquis são perceptos visuais tangíveis que, transformados em novas imagens mentais, realimentam e provocam novos argumentos formais que, por sua vez, provocam uma reestruturação contínua de imagens necessariamente difusas. De acordo com Arnheim:

"[o] processo criativo da concepção do projeto, sendo uma atividade da mente, não pode ser diretamente observado. Os esboços, feitos para os olhos e dirigidos por eles, fazem os planos da concepção visíveis […] permitem ao observador ou teórico vislumbrar alguns quadros fixos do fluxo criativo."

A mão hábil aliada àquilo que Goldschmidt define como ‘pensamento visual de projeto’ [visual design thinking] de Emili Donato o possibilita a empregar o desenho para a descoberta do projeto de maneira exemplar. Não há como negar que sua expressão gráfica, seca e límpida, é magnífica em sua estruturação e na sua fluência. Na conversa registrada no livro/catálogo, Emili Donato argumenta:

"[o croquis] penso que este, mais que palavra é como uma caricatura, uma sombra com vontade totalizadora e unitária com respeito ao objeto final. Não é parte ou fragmento como o é a palavra em uma frase ou discurso, mas uma totalidade em si mesmo, ainda balbuciante porém plena de intençãocomo um aforismo."

Na obra destacam-se especialmente a produção de desenhos voltados para a concepção de edificações. No entanto, Um outro aspecto digno de nota é que à medida em que avançamos na observação dos desenhos merece menção especial a habilidade gráfica do autor ao lidar com escalas muito diferentes do projeto urbano. Uma das grandes dificuldades na notação gráfica a mão livre é o tratamento expressivo e preciso das distintas escalas da arquitetura e do urbanismo.

No dois ensaios, a clareza da escrita e as posições de Stéphane Gruet e de Carles Martí Artís estabelecem um coroamento coerente que valoriza a produção gráfica de Emili Donato como um encontro da imaginação com a matéria e a construção. Na conversa com os arquitetos Armando Oyarzun Kong e Willy Müller Zappettini, também de forma incisiva, o arquiteto traça um panorama a respeito de questões filosóficas e estéticas acerca do desenho que o preocupam e que de certa forma nortearam sua prática projetual.

É surpreendente, apesar da sedução e fascínio da computação gráfica, como o desenho a mão livre de um arquiteto ainda possa despertar tanto interesse. É bem verdade que os novos recursos computacionais revolucionaram as formas de representação e, conseqüentemente, modificaram os paradigmas de projeto, as maneiras de produção de objetos artificiais e a própria ação na natureza. Contudo, no livro/catálogo Emili Donato nos resgata uma prática e nos demonstra sua força e vigor diante das promessas ruidosas promovidas pela mídia da arquitetura internacional. É importante este frescor, sobretudo num momento onde os modismos e as novidades se sucedem e os recursos digitais estão tendo uma aceitação generalizada e, de certa forma, acrítica.

Considerando-se a grande maioria dos artigos acadêmicos, divulgações especializadas ou até mesmo as propagandas de divulgação das software houses, constata-se, que os aplicativos disponíveis e as maneiras de uso do meio digital ainda não superaram os recursos de representação tradicionais; grande parte da produção digital atual se dá de uma maneira paralela, recriando, por meio de mimese, os recursos técnicos de representação tradicionais. Aparentemente há um ganho produtivo de tempo, mas além do fato das pranchetas terem cedido lugar as workstations, não se pode afirmar ainda que tenha ocorrido mudança fundamental na prática conceptual da arquitetura.

Muitos autores (6), muito embora sem comprovação empírica significativa, são unânimes em constatar que apesar do uso intensivo de sistemas CAD para a manipulação e edição de desenhos métodos convencionais de desenho são os mais recomendados, tanto para os primeiros riscos como para desenvolvimento criativo da concepção do projeto.

O exercício do desenho, como meio e método para estudar e representar o objeto, constitui-se cada vez mais na única relação concreta e real que o arquiteto pode manter com a matéria física que deverá criar. A expressão de síntese e liberdade, a rapidez e intimidade com que a mão trabalha o lápis sobre o papel e o simples prazer do risco natural, são, e provavelmente deverão continuar sendo, insubstituíveis para um grande número de profissionais. O croqui, continua tendo sua utilidade reconhecida como veículo para a concepção arquitetônica.

Dessa forma, o livro/catálogo não somente desperta interesses diversificados como também permite variadas interpretações, cabendo aqui alguns poucos comentários que não pretendem esgotar sua complexidade e beleza gráfica.

notas

1
GRAVES, M. (1977), “The Necessity of Drawing: Tangible Especulation”. In Architectural Design, Vol. 47, n.º 6. Londres: Academy Editions.

2
GÖEL, V. (1995), Sketches of Thought. Cambridge: MIT Press. GOLDSCHMIDT, G. (1991), “The Dialectics of Sketching”. In Design Studies vol. 4, Londres: Elsevier Science.

3
Goldschmidt conjectura que é o próprio ato de esboçar que dará acesso às varias imagens mentais, figurais ou conceituais, que potencialmente resultarão em alternativas para o problema de projeto em questão. Ou seja, para Goldschmidt sem o desenho não se pode conceber o projeto. A autora argumenta que o ‘pensamento visual de projeto’ [visual design thinking] é um modo de raciocínio com uma lógica própria, mas tão racional quanto aquela que se poderia descrever no contexto de um raciocínio discursivo convencional.

4
Göel, de acordo com a teoria simbólica de Nelson Goodman, argumenta que o esboço é uma forma particular de sistema simbólico, que se caracteriza por ‘densidade’ semântica e sintática e por ‘ambigüidade’. É por serem ‘densos’ e ‘ambíguos’, ou seja plenos de possibilidades, que se tornam perfeitamente adequados para a exploração de idéias e de ‘reinterpretação oportunista’.

5
ARNHEIM, R. (1995), “Sketching and the Psycology of Design”. In MARGOLIN, M. & BUCHANAN, R. eds., The Idea f Design, Cambridge: MIT Press.

6
Entre outros: B. Lawson (With Design in Mind, 1994) I. Frazer e R. Henmi (Envisioning Architecture, 1994), P. Laseau (Graphic Thinking for Architects and Designers, 1989), E. Robbins (Why Architects Draw, 1994), D. M. Herbert (Architectural Study Drawings, 1993).

nota

Uma versão menor desse texto foi publicada em Arcos, Rio de Janeiro, ESDI/UERJ, v. 2, n. único, 1999, p. 144-148. Republicação em Vitruvius autorizada pelo autor.

sobre o autor

José Barki é arquiteto do DARF e professor da FAU/UFRJ

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