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LESSA, Carlos. Sobre a cidade. Resenhas Online, São Paulo, ano 01, n. 006.02, Vitruvius, jun. 2002 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/01.006/3239>.


Fui honrado pelo convite do autor e me senti estimulado a alinhavar uma apresentação do “Sobre a Cidade”.

Pela avenida de suas idéias, Sérgio Magalhães constrói uma exposição reta, direta e coerente que nos conduz, na cidade, para mais além da modernidade. Rejeita a vulgar pós-modernidade submissa à religião do mercado. A cidade do seu sonho é o espaço público aberto e integrado que preserva os esforços, a memória e o orgulho de seus habitantes, universalizando o acesso aos bens públicos.

O autor sublinha, como essencial à urbanicidade, a contigüidade dos espaços.

Contrapõe a produção coletiva da cidade à solução familiar da moradia. O processo político do coletivo construindo a ambiência urbana é a moldura que delimita o espaço individual restrito à família. Chama atenção que esta construção pode ser o resultado explícito da vontade política – domínio do urbanista como demiurgo - ou pode ser o resultado não planejado da interação de iniciativas individuais. Rejeita o urbanista como demiurgo autoritário e pseudo-onipotente. Recusa a proposta da especialização das zonas urbanas e a correspondente estratificação de seus usos. Não vislumbra qualquer Admirável Mundo Novo a ser construído pela demolição da cidade.

Sérgio Magalhães não seria subscritor da Carta de Athenas, cujo recado foi plenamente acolhido no Planalto Central Brasileiro, no final dos anos 50. O Plano Diretor de Brasília, como ocupação plástica e funcional do campo aberto, é imponente e, em parte, aceitável. Contudo, a idéia de construir um novo homem brasiliense plasmado pelo traço do projetista urbano e pelas regras arquitetônicas da superquadra é uma fantasia complacente com a modernização autoritária. A cidade capital, projetada como codificação da ideologia nacional, é clássica: Washington foi o protótipo moderno. Pierre C. L’Enfant criou quinze praças, uma para cada unidade da federação americana. Afastou a Casa Branca do Capitólio e projetou uma via principal com um quilômetro e meio por 120 metros de largura. É pontilhada por guetos raciais que expressam a anatomia social americana, por baixo do código federativo.

Brasília tem um código que, na Esplanada, coloca o poder executivo como uma colunata monumental. Ao mesmo tempo, retira o legislativo da perspectiva executiva. O isolacionacismo e a segregação do carro particular reduzem os contatos intersociais. A cidade moderna, idealizada por Athenas, foi pensada para o auto. A cidade universitária, no Rio, supõe todo o pessoal universitário como dono de carros. Em Brasília, a conversão de uso da W3, a especialização comercial das ruas das superquadras, a especulação imobiliária alterando a integração intersocial e a presença de catadores de lixo no Plano Piloto são algumas entre muitas recusas sociais às diretivas da modernização autoritária e voluntarística. Na pós-modernidade, a multiplicação da frota de veículos automotores, as facilidades da rede de comunicações e a privatização de funções públicas nos centros comerciais, sucessores da calçada no abastecimento e conviviabilidade da rua, modificou radicalmente o padrão de uso do solo característico da cidade moderna.

O elevador Otis, inventado em 1853, e o aço barato da I Revolução Industrial possibilitaram estruturas cada vez mais elevadas e verticalizaram a cidade moderna. Contraponto da verticalização, o automóvel espalhou horizontalmente a cidade. Desqualificou o comércio de rua, degradou a malha viária pré-automobilística, depredou o centro tradicional. O sucessor do Palais Royal da Paris do século XVIII, privativo da nobreza, é o centro comercial na periferia urbana, vocacionado para os donos de veículos automotores. A mobilidade do auto e a estocagem de perecíveis, com a geladeira, condensaram no supermercado o antigo comércio de bairro.

O auto implicou na demolição das construções anteriores ao motor a explosão, e foi o principal agente no apagar a memória e a rede de micro-relações urbanas. Trouxe a descaracterização da “paisagem conhecida” - um dos elementos da carta de pertinência do residente urbano. O fechamento pós-moderno, com centros comerciais, garagens superpostas e áreas de lazer fechadas fragmenta a visão do tecido urbano. Entretanto, a identidade coletiva é salvo-conduto para o convívio das diferenças. Cobertura social insuficiente e desatenção do poder público originam a outra fragmentação.

Sérgio Magalhães sabe que o território se unifica pela garantia de serviços públicos a todos os cidadãos e pelo império da lei, em todos os lugares. O povo é a principal referência do autor como urbanista – é preciso partir do esforço coletivo já realizado. A cidade é a materialidade dos esforços combinados e da cultura viva do povo em utilizá-los. O uso, a volumetria, as referências culturais e existenciais compõem a paisagem criada pelo povo. A continuidade intergeneracional é essencial à identidade de um povo. O autor percebe como perturbadora a busca pela cidade em grandes espaços de novos vazios, quando associada ao risco de degradação e de desqualificação das áreas já construídas.

Sérgio Magalhães é comprometido com a re-singularização da cidade, o que impõe preservar o espaço urbano como referência e memória de vida coletiva. A cidade deve perseguir como máxima: todos devem ter orgulho do bairro em que vivem. Esta é uma dimensão de auto-estima e identidade. Intencionalmente, deve ser reforçada sua identidade, com traços sensíveis, perceptíveis por todos os citadinos. Diversificar tipologias, localizar equipamentos únicos ajudam a criar orgulho pela diferença. O lazer coletivo e gratuito é suporte desta requalificação. O impacto positivo do Piscinão de Ramos ilustra este ponto. Qualquer bairro deve ser retirado do anonimato. A auto-estima popular deve ser alavancada: desconhecer a favela como solução coloca o urbanista e arquiteto como senhor dos destinos das famílias populares.

A cidade como símbolo na memória social tem imagem composta pela topografia, pela utilização do espaço, pela apropriação patrimonial, pelas tipologias arquitetônicas etc. Sérgio Magalhães vê na cidade um sistema de sinais, um vocabulário dominado pelo citadino. Os lugares vivos constituem referências para a memória e a cultura locais. É essencial o cultivo de memória urbana. O historiador, o poeta e o músico popular fazem, do todo e dos fragmentos da cidade, focos de organização de lembranças e liberação de emoções. O povo se apropria e produz, culturalmente, certos lugares, que passam a ser depositários de seu afeto. A emoção impregna o meio ambiente popular urbano. A cidade é um compósito de pedras e tijolos acumulados, e de costumes e afetos praticados pela população urbana.

O gaúcho Sérgio Magalhães, carioca por opção, vê na solução da favela uma das chaves para um Rio pós-moderno civilizado e integrado. Sabe que a Revolução Industrial no Rio prosperou pelo consumo, não pela produção. Sabe que é antiga e longamente sedimentada a distância social. Tudo isto conduziu Sérgio Magalhães a mergulhar na historicidade da solução urbana popular brasileira. No Brasil, especialmente no Rio de Janeiro - o grande laboratório popular da nação - o povo, na ausência de políticas sociais inclusivas e redistributivas, criou a favela como um microcosmo de subsistência no espaço urbano.

Na evolução da favela, tudo foi conquista. O povo pobre e livre do Rio do século XIX foi projetado para os morros e para os eixos de subúrbio pela Reforma Pereira Passos. A partir dos anos 20, a favela foi romantizada. Pouco depois, tem início sua problematização, que inspirou proposta de padrões específicos de habitação – conjuntos habitacionais etc.

O território da favela foi constituído por uma mansa transgressão. Pela luta política, o povo ganhou o direito à não-remoção. Foi um ato fundador de cidadania, que modificou a dinâmica destas aglomerações populares. Os ocupantes na não tinham certeza da permanência. Foram os fundadores (ocupantes iniciais) que regularam o acesso de novas famílias ao território em formação. Do Estado, nos tempos iniciais apenas emanaram proibições. Em algum momento desta trajetória se desenvolve o aprendizado clientelístico, e com ele a figura clássica do vereador de bica d’água.

A favela se agigantou no Rio pós-moderno, mas preservou padrões de socialização pré-automobilísticos. Continua cultivando a praça, a rua e a esquina como lugares de encontro. Preserva a idéia do público em contraposição à atual tendência de hipertrofiar o privado (nos condomínios e suas redes internas de abastecimento, centros comerciais etc.). Existem indícios de favelamento no Plano Piloto de Brasília. É a demonstração inequívoca de que o mesmo povo, submetido a condições histórico-sociais equivalentes, premido pelo imperativo categórico da subsistência, desenha, pela moradia e na urbanidade, o mesmo tipo de solução. Houve, entretanto, relativo sucesso em bloquear a espontaneidade residencial popular nas terras do Plano. O Planalto Central reproduziu a clássica baixada fluminense do Rio de Janeiro, ao desviar a pressão migratória para a nova capital para o anel de cidades-satélites dos sem-auto.

Sérgio Magalhães, cônscio das pré-existências urbanas, olha a favela não como problema, mas como uma solução plasmada em condições sociais adversas. Apenas para as moradias em faixa de alto risco o autor sugere o deslocamento espacial da família, mantendo-a nas imediações da anterior residência. Valoriza a favela como uma criação historicamente construída pelos “cidadãos de segunda classe”, precariamente inseridos na cidade moderna, numa sociedade marcada por distâncias e desigualdades sociais ampliadas.

Se por um lado a favela preserva uma sensibilidade e uma sociabilidade que recordam a vida rural idealizada, por outro, ao contrário do isolamento e dos grandes espaços rurais, nela a contigüidade facilita o convívio regular, ou seja, reforça a convivialidade. A precariedade da incorporação à cidade sublinha a necessidade de laços de solidariedade. As relações humanas nas comunidade refletem com nitidez as estratégias de subsistência. O favelado é um habitante eminentemente urbano, que depende de renda monetária para sobreviver.

A favela é uma complexa e dinâmica organização social concreta. Surge da adaptação da pobreza à necessidade de subsistir no vácuo do estado social. A pobreza inventa um território e constrói suas instituições. Nele, existe intensa troca de informações, favores e proteção recíproca. Pela comunidade de vizinhos, é possível reduzir a vulnerabilidade às oscilações do fluxo de renda monetária. Preserva a família patriarcal, com a segunda e a terceira lajes. O autor diz que a habitação popular preserva o idoso da solidão.

É intenso o sentimento de importância do público na cultura favelada. O jardim é privado e a praça é pública. Esta dicotomia é essencial à cidade. Na favela, o jardim, se existe, é minúsculo. Porém, o favelado valoriza a cultura da praça, que se desenvolve na ausência do jardim. a não ser na laje. O popular utiliza como praça tudo que não é sua residência essencial: a viela, a escadaria, a barra da birosca são as praças de seu território. A viela é uma praça pública. Inicialmente foi acesso a uma residência; pelo uso e por convenções não escritas, tornou-se pública. Na favela, é visível a importância do espaço aberto para o padrão de vida popular. O privado interpenetra o público.

A favela é um território que, implantado, segue marcha lenta de auto-aperfeiçoamento. É um sistema potencialmente virtuoso. Os bairros da cidade inclusiva se deterioram. Edifícios se degradam (elevadores quebrados, escadas com lixo, janelas sem vidros etc. O fazer e refazer é contínuo na favela. O morador tem liberdade para aperfeiçoar e adaptar sua residência. A progressiva qualificação é hoje a estratégia consagrada: uma Alfama de Lisboa, uma Juderia de Sevilha foram “favelas” no passado em que o povo criou sua solução residencial. A qualificação posterior conferiu sua inserção decisiva para a identidade de povos e respectivas cidades.

Nesta perspectiva de respeito ao esforço popular, “Sobre a Cidade” se alinha com um urbanismo radicalmente democrático e inspirado pela criatividade social. Na comunidade popular, a idéia de pertinência aparece claramente no orgulho de bairro. O morador se diz nascido e criado e o fundador é percebido como herói. O processo se concluirá quando a favela se tenha convertido num bairro popular na cidade. Sérgio Magalhães concebeu e implementou o Programa Favela-Bairro. No futuro, os bairros populares do Rio terão o mesmo papel e a cidade estará em débito com o autor deste trabalho.

sobre o autor

Carlos Lessa é economista e trabalhou na Cepal e no BNDES. Professor fundador dos cursos de economia da Universidade de Campinas e da Universidade Federal Fluminense. Atualmente é professor titular de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde exerce o cargo de Decano do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas.

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