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LEMOS, Carlos Alberto Cerqueira. A invenção da casa bandeirista. Resenhas Online, São Paulo, ano 08, n. 088.03, Vitruvius, abr. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/08.088/3042>.


Este excelente livro da arquiteta Lia Mayumi fundamentalmente trata de certo paradigma seguido nas restaurações de algumas casas bandeiristas tombadas pelo Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura em São Paulo, mas, no entanto, seu texto ainda permite sejam vislumbrados, nas entrelinhas, aspectos e situações mal divulgados das atividades dos órgãos encarregados da salvaguarda do nosso patrimônio arquitetônico. Sem dúvida, isso não passará despercebido aos curiosos dos bastidores dos trabalhos cotidianos dos guardiões da memória.

É interessante notarmos que a primeira entidade preservacionista a agir na nossa cidade foi, em 1937, o então Sphan – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, criado nos primeiros dias do Estado Novo de Getúlio Vargas; depois, em 1968, veio o Condephaat, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo, surgido da vontade e persistência de uma inteligente senhora amante do passado, dona Lúcia Figueira de Mello Falkemberg e, finalmente, o já mencionado DPH, em 1975, mais tarde, transformado em repartição de apoio do Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da cidade de São Paulo).

Assim, o município foi a última circunscrição administrativa a cuidar de sua própria herança edificada vinda de nossos antecessores. Esse fato fez com que fatalmente houvessem intromissões e parcerias nas atuações municipais. E daí ter vindo do primitivo Sphan o tal paradigma analisado por Lia Mayumi.

Em suma, aquela expressão empregada pela autora envolve duas conceituações tornadas dessa forma paradigmáticas nas ações de recuperação de bens tombados pelo órgão federal em São Paulo. A primeira refere-se à estabilização de velhas construções de taipa de pilão com o uso de tecnologia contemporânea, como sugeriam as Cartas de Atenas e de Veneza. A técnica escolhida foi a do concreto armado, que deveria ficar à vista, como ordenavam as regras emanadas daqueles conclaves que desejavam, assim, manter visível e identificada a intervenção reparadora no monumento. Aqui, isso não foi seguido. No Brasil, o Sphan acompanhou as primeiras recuperações dos preservacionistas portugueses, que avidamente expurgavam acréscimos posteriores a edificações medievais visando a integridade original e a unidade estilística, arrancando aderências barrocas significativas de seus suportes românicos. Entre nós, os técnicos comandados por Lúcio Costa rapidamente revestiam as próteses e cintamentos de concreto armado escondendo-os sob bem desempenados e caiados panos de argamassa cimentícia.

A segunda conceituação, abonada por todos, inclusive com bastante empenho, por Luís Saia, o arquiteto chefe do Sphan em São Paulo, era a que via na singeleza chã das construções antigas uma expressão precursora de nossa arquitetura moderna. O citado paradigma tentava trazer à tona uma pretensa modernidade a ser aposta ao bem arquitetônico restaurado; isso às custas desta receita cosmetizadora: após garantida a estabilização estrutural da velha construção com o emprego de inclusões invasivas de concreto armado, as paredes ganhavam novo revestimento. Depois de caiadas adquiriam uma brancura nunca vista, fazendo contraponto com todo o madeirame uniformizado em tons escuros obtidos com solução de estrato de nogueira. Essa pureza asséptica seria a recuperação de uma despojada “saúde plástica” constatada por Lúcio Costa nas construções de outrora, que teria sido a fonte natural de nossa arquitetura moderna. Pelo pensamento orientador daquele arquiteto, teria havido em nossa história um salto pulando todo o ecletismo do século XIX no desenvolvimento da arquitetura nacional. Assim, o mestre-de-obras de nossas construções coloniais teria sido o patrono dos arquitetos modernistas, por sinal, naquele momento, bastante atentos aos ensinamentos de Le Corbusier (1).

Todos sabemos que a taipa de pilão foi uma exclusividade mameluca adaptada às condições especiais do planalto de Piratininga e, nessa situação, espalhada pelo mundo conquistado pelas andanças do bandeirante. Uma das alterações foi a eliminação total de alicerces e baldrames de pedra, a exigência fundamental da técnica árabe no Algarve, donde nos veio aquele modo de construir. Aqui, o paulista simplesmente socava a terra em valas abertas no próprio solo sem qualquer precaução quanto à umidade e a recalques diferenciais. Nos cantos das paredes, havia sempre uma tentativa de travamento fazendo com que os blocos saídos dos taipais se cruzassem na forma de malhetes. A taipa de terra socada não tem nenhuma resistência ao risco, nem trabalha à tração e é altamente erodível. O que o paulista fazia bem era apiloar valentemente sua única matéria-prima disponível em região falta das demais conhecidas então e encontráveis no litoral. Com o tempo, com as chuvas inclementes que zombavam dos beirais e devido às surpresas causadas, ou  pelas camadas subjacentes do solo advindas de recalques, ou pela presença de formigueiros e cupins, as paredes se desaprumavam sobretudo onde poderia haver eventuais empuxos da armação dos telhados. Nos monumentos tombados foram encontrados, aqui e ali, trincas, fendas bem largas, paredes se separando e um festival de trabalhos de contenção amadorísticos e de mau gosto executados há anos e mais anos. Como Luís Saia, com a anuência de seus maiores, enfrentou toda essa problemática ? Refazer as paredes combalidas de taipa usando a técnica antiga ? Foi desaconselhado pela chefia carioca. Espaços e paredes faltantes seriam refeitos com tijolos. Acabou fazendo “pacotes”, como dizia, amarrando toda a construção por fora com vigas de concreto embutidas nas paredes na altura do frechal, à meia altura e em baixo, e solidarizadas entre si por peças verticais à guisa de colunas, obtendo estruturas mistas, isto é, muros contínuos pontualmente intercalados por pilaretes. Coisa complicada. No curso de especialização havido em São Paulo, em 1974, essa prática foi condenada por dois especialistas, os arquitetos peruanos Victor Pimentel e Roberto Samanez, mas ela continuou a ser empregada esporadicamente.

O revestimento dos paramentos de taipa de pilão também oferece dificuldade e o povo antigo, amparado por experiências seguidas, usava emboços compostos de várias camadas, sendo a primeira levando a mesma terra da parede acrescida de alguma terra “mais grudenta” à qual também se juntava esterco de gado para evitar fissuras, nas seguintes, a mesma receita ganhando areia aos poucos e se houvesse cal a última demão seria com a ausência total de terra e esterco. Se não comparecesse a cal de Santos, usava-se a tabatinga na pintura. Havia ali uma gradação responsável por uma fixação perfeita do revestimento. Procedimento difícil naqueles dias das primeiras intervenções recuperadoras. Optou-se por argamassa com cimento, que volta e meia está a cair. Muita gente lamenta o fato das construções tombadas não sugerirem a idade que têm. Recém saídas do forno, são verdadeiramente “modernas”. Para nós, isso é uma fatalidade, porque a vetustez aparente das casas e igrejas por cair é irrecuperável. Qualquer tentativa de pátina envelhecedora é condenável. Bastam-nos o partido arquitetônico e os estilemas para situar no tempo a construção-documento.

Essa nossa retro-digressão passando rapidamente pelos assuntos tratados com clareza e isenção neste livro por Lia Mayumi esclarece alguns aspectos não esmiuçados pela autora e procura fazer o leitor entender melhor o clima existente em São Paulo nesse setor da proteção de bens arquitetônicos tombados, no qual as idéias e procedimentos não são equânimes, mas, onde todos os envolvidos desejam ardentemente fugir daqueles paradigmas.

notas

1
Ver a publicação organizada pelo arquiteto Alberto Xavier Sobre Arquitetura, com textos originais de Lúcio Costa, Porto Alegre, CEUA, 1972, p. 80.

[o presente artigo é o texto de apresentação do livro]

sobre o autor

Carlos Alberto Cerqueira Lemos é formado em arquitetura pela FAU/Mackenzie, atualmente é professor titular de pós-graduação no departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Desenvolveu atividades ligadas ao projeto de edifícios e de urbanizações, à docência e à pesquisa histórica. É autor de diversos livros, tais como: Cozinhas etc. São Paulo, Editora Perspectiva, 1976; A Casa Paulista. São Paulo, EDUSP, 1999

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