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Em livro oriundo de uma aula magistral, Gustavo Rocha-Peixoto apresenta a “estratégia da aranha”, uma maneira possível de se ensinar história no estado contemporâneo do ensino, do projeto e da arquitetura.

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ZEIN, Ruth Verde. Tudo isso e muito mais. A estratégia aracnídea de Gustavo Rocha-Peixoto. Resenhas Online, São Paulo, ano 13, n. 145.01, Vitruvius, jan. 2014 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/13.145/5011>.


Fotograma de “Estratégia da Aranha” (“Strategia del Ragno”, no original italiano), direção de Bernardo Bertolucci, 1970
Foto divulgação

Qualquer que seja o universo em que o professor acredite, deve ser, de qualquer modo, um universo que se preste a um discurso prolongado. Um universo definível em duas palavras é alguma coisa para a qual o intelecto professoral não tem uso.
 William James, “Pragmatismo” [in] Pragmatismo e outros textos. Coleção Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979, p. 3.

Um livro fácil de ler, que captura o leitor da primeira à última página, é certamente incomum na área da arquitetura. Especialmente quando é um livro “de texto” (embora contenha várias e oportunas imagens ilustrativas) que magistralmente aborda a teoria e história de arquitetura, seu ensino e aprendizado; e o faz de maneira profunda, pertinente e sem qualquer pedantismo. Parece bom demais, mas é verdade: trata-se do mais recente livro de Gustavo Rocha-Peixoto, lançado em 2013 pela editora Rio Book’s. É um prazer desfrutá-lo, em todos os sentidos e aspectos, a começar pelo título: A estratégia da aranha. Poderia ser o nome de um eletrizante blockbuster de detetive – e de certa maneira, também é. Também poderia ser um relato de viagem, ou uma biografia de aventuras: é tudo isso, e mais.

Sua leitura tão agradável talvez se origine do fato do texto não ter sido escrito originalmente para ser lido, mas para ser ouvido: trata-se da aula magistral dada pelo autor na ocasião de seu concurso para professor titular na UFRJ, acontecido em 2011. Mas todos sabemos o quanto uma conferência pode ser enfadonha; e como não é nem foi o caso, sua atrativa leveza não se deve a essa peculiaridade, e sim, à qualidade intrínseca da sua narrativa. Que aliás, nada perdeu na adaptação para o livro, exceto talvez o prazer de escutar o autor de viva voz.

A estratégia da aranha é também uma biografia “científica”, pois o autor inicia contando o que viveu, fez e faz, sobre o que trabalha, como estuda, pesquisa e leciona, revelando suas experiências acumuladas e reflexões compartilhadas. Aproveitando desse lastro o autor transforma a ocasião de uma obrigação, que poderia ser penosa, em uma agradável “oportunidade”. Essa é a palavra chave de seu capítulo zero, onde Gustavo Rocha-Peixoto conta de qual cartola vai tirar seus coelhos, e como o fará – ou melhor, quais são os aparentes “acasos” que conformaram a possibilidade de organizar seu tema – o ensino de teoria e história da arquitetura – num discurso, ou conversa, ou aula. A qual, como declara o autor, vai se basear em uma constatação simples mas fundamental: “se sempre existiu o estudo do passado como quesito necessário à formação do arquiteto, esse estudo nem sempre foi motivado pelos mesmos interesses” [p. 26]. Sabendo-se que os interesses da arquitetura mudam ao longo do tempo, muda-se, com eles, a maneira de se compreender e ensinar a teoria e história da arquitetura. Lição número zero: quem ainda ingenuamente pensa que a história está pronta e posta em sossego, engana-se, ilude-se. Então preparem-se, que a fantástica (e porque não dizer, divertida) aventura de entender melhor as intrincadas e instigantes relações entre as mudanças na arquitetura, sua prática e seu ensino, já vai começar.

O livro se apresenta singelamente em os oito capítulos (além do zero, portanto um total de nove). Na minha opinião, estes poderiam ser entendidos como configurando uma estrutura triplamente trina. A primeira parte seria composta pelos três capítulos iniciais, nos quais Gustavo analisa cada um dos três modos do interesse da arquitetura pela história, correspondentes a “três maneiras da consciência do campo disciplinar [delimitar] o que cada época pode pensar e como pensou e o que não pode deixar de pensar” [p. 27, é dele a citação implícita de Michel Foucault]. Gustavo denomina-os “modo historicista”, “modo histórico-modernista” e “modo historiográfico-culturalista”. Embora correspondam, grosso modo, a uma certa sequência histórico-linear, vale relembrar o alerta do autor: “esses modos não são etapas ou fases sucessivas, mas três formas de articulação do pensamento arquitetônico em permanente debate” [p. 75]. Segue-se (também a meu ver) uma segunda parte ou intermezzo configurada pelo capítulo 4, denominado “cultura arquitetônica”. Ali o autor elabora mais detidamente sua reflexão sobre esse conceito chave, indispensável para a melhor compreensão do “modo” híbrido que vai propor adiante. A terceira parte seria a conformada pelos três capítulos finais, nos quais o autor desenvolve de maneira referenciada e detalhada as “possibilidades” do “ensino meta-histórico”, com base na “estratégia da aranha” – para citar os nomes desses capítulos de trás para diante.

Como se vê, o livro começa com oportunidades, e termina com possibilidades. A escolha dos termos não é inocente e afirma a posição do autor como não normativa, não ideológica, não impositiva, aberta, dialogante, inteligente. E como tal, assumindo o risco deliberado de se permitir o questionamento e a dúvida. Afinal, só os loucos e os tiranos tem certezas absolutas – e só os primeiros tem a seu favor estarem à mercê dos figmentos da imaginação (1).

Na primeira parte cada um dos “modos” é apresentado, como não poderia deixar de ser, abundantemente embasados nas referências de diversos autores que os configuram, e inteligentemente encadeados. De maneira que o livro também cumpre a meta-função de servir de hábil plataforma de lançamento: tanto para aqueles que estão apenas começando nas lides da arquitetura e seu ensino poderem se dedicar ao seu estudo com base nessas dicas; quanto para nos ajudar, os que estamos a mais tempo interessados nesse campo, a re-sistematizar de maneira hábil nossos conhecimentos e leituras. Só isso já bastaria para recomendar o livro a todos os que têm qualquer conexão com o assunto da arquitetura... Mas ainda há mais, bem mais.

No capitulo 4 “intermediário”, Gustavo explicita claramente a pergunta fundamental, aquela que anima toda sua empreitada: “como deve ser o ensino de história para o curso de arquitetura da FAU diante das transformações epistemológicas e estéticas operadas no campo da historia e da arquitetura nos últimos três decênios?” [p. 85]. Entende-se, claro, que embora a pergunta seja apresentada de forma circunstanciada – o autor não tem a pretensão de dar uma fórmula universal, pois se dirige a seus pares imediatos, no seio da sua escola – entretanto, certamente pode ser lida de maneira genérica, pois essa pergunta será sempre oportuna, em qualquer caso, em qualquer escola, de qualquer lugar que seja. E no melhor dos mundos possíveis, esse deveria ser, candidamente, o motor-imóvel aristotélico que animasse o (bom) ensino de arquitetura (e não apenas o ensino de sua história).

A pergunta que decorre dessa também é fundamental: “Para que serve ao ensino profissional de um arquiteto que há de projetar para o Brasil contemporâneo, estudar [a história da arquitetura] se esse ensino não conseguir se relacionar com o projeto?” [p. 86]. A resposta que Gustavo nos brinda não é uma receita, mas um método: “o pressuposto do estudo do passado é que ele é demandado pelo presente e o ajuda a compreender. Há algo no passado que interessa ainda. [...] E se é assim, toda reflexão deve partir do presente e dirigir-se à compreensão do presente” [p. 86].

Ninguém disse que é fácil: tal método exige, a priori, um domínio sábio, erudito e referenciado da cultura arquitetônica “em geral”, do passado ao presente. O exemplo absolutamente magistral que Rocha-Peixoto nos dá para ilustrar como se deve ensinar e estudar o passado é o denso roteiro que propõe para uma abordagem crítica da cultura arquitetônica, a partir de um singular edifício: a Casa França-Brasil, projeto original de Grandjean de Montigny. Não vou estragar a graça da leitura do seu livro, citando-a aqui au grand complet: por favor, leiam nas páginas 97-98. E depois me digam se este pequeno-grande livro é ou não uma rara lição de erudição sabiamente disfarçada, por modéstia e elegância, como uma leitura fácil e agradável... Chapeau!

Mas ainda há mais... Nos três últimos capítulos, Gustavo vai desenvolver sua estratégia aracnídea, complexa e contraditória como o artrópode peçonhento e inteligente que elege por imagem. Sedutoramente nos recorda uma das Ficções de Jorge Luiz Borges, um livro de ítalo Calvino e um filme de Bertolucci para dissertar sobre “a capacidade prática de se operar o repertório poético da arquitetura e da cidade com boa consciência de onde os fatos ocorreram e de onde se opera a observação, com que interesse e para que objetivos” [p.109]. Para finalmente explicar que “a história não é mais uma ‘procura’ ou uma ‘descoberta’ do conhecimento, mas a ‘invenção mesma do conhecimento’, provisório e incerto. [...] Inventar a história não é, de modo algum, falsear a verdade, mas é torná-la disponível mediante o recurso da narrativa” [p. 115, grifo do autor].

Segundo ele, é essa “estratégia da aranha” a maneira possível de se ensinar história no estado contemporâneo da arte (do ensino, do projeto, da arquitetura). Chama esse método de “meta-histórico”, e considera-o alternativo e não exclusivo. Em outros termos: os diferentes “modos” de ensino, sobre os quais ele nos explanou acima, não estão invalidados e obsoletos; e sim, podem seguir tendo uso e aplicação em determinadas circunstâncias. E além do mais, podem também servir de guia para ajudar a compreender os historiadores: cada um deles fornece referências e estabelecem narrativas que se baseiam, mais ou menos, em cada um dos diferentes modos – e se assim visto, se bem possam seguir sendo úteis, devem sempre ser lidos e aplicados com as devidas cautelas. Em outras palavras: “segundo o modo culturalista, a arquitetura é antes de tudo autoconsciência” [p. 127]. Nada é inocente, tudo é interpretação, e o bom projeto – para voltarmos ao coração daquilo que de fato interessa – tampouco. E é por isso que o modo historiográfico híbrido que propõe Rocha-Peixoto “deve mirar no objeto”, esclarecendo ele que “todas as relações a serem estabelecidas entre o objeto e as estruturas eleitas para interpretá-lo devem ser invocadas pela observação/experimentação objetiva, isto é, devem resultar de perguntas feitas ao objeto” [p.130].

Pessoalmente, costumo sugerir aos alunos entrevistarem as obras, em vez dos autores... Mas, sem querer radicalizar demais, o hábito de perguntar ao objeto deveria, isso sim, ser mais estimulado, sempre quando o ensino pretenda desenvolver a “autoconsciência” necessária e indispensável ao correto exercício do projeto de arquitetura. Ou seja: em vez de nos contentarmos com respostas já prontas para consumo, melhor ir às obras, que na sua mudez, falam volumes – se apenas nos dispusermos a ouvi-las.

No capítulo final Gustavo Rocha-Peixoto fala de possibilidades. Sente-se premido pelo tempo: afinal, era uma conferência, e não convinha cansar o ouvinte. Mas não podia deixar de contar como ele aplica, na prática, suas ideias – que aliás, não nascem antes mas conjuntamente com as práticas... Dá portanto alguns poucos mas preciosos exemplos, interessantíssimos, iluminadores, sobre “como venho pensando meu ofício de professor” [p. 148].

Esta resenha também poderia se estender, mas embora não seja suficiente, já basta. Vale porem mencionar que, em Post-Scriptum, Gustavo cita e homenageia seus colegas contemporâneos próximos e distantes, coisa que não cabia no concurso, mas graciosamente não podia faltar no livro; e até mesmo responde a alguns dos comentários críticos de colegas sobre sua aula magistral.

Dizem que um projeto não tem fim, e só acaba porque termina o prazo. Qualquer labor humano criativo sofre dessa mesma característica, de ser uma tarefa de Sísifo, interminável. Seja uma resenha, seja o ensino de arquitetura – e em especial, o de história e teoria – o tema será sempre inesgotável. Especialmente quando, como demonstra Gustavo Rocha-Peixoto, é o presente que anima e vivifica a história; e o tempo, não para e sempre muda tudo.

nota

1
NE – “Figmento” é um neologismo, pois se trata de uma palavra não existente na língua portuguesa. A autora refere-se ao termo em latim “figmentum”, que derivou na palavra em inglês “figment”. Em ambos os casos, o significado é “coisa puramente imaginária”.

sobre a autora

Ruth Verde Zein, arquiteta (FAU USP, 1977), mestre e doutora (Propar UFRGS, 2000 e 2005), professora e pesquisadora da FAU Mackenzie.

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