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Gustavo Rocha-Peixoto resenha livro "O interior da história", de Marina Waisman, recém traduzido para a língua portuguesa.

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ROCHA-PEIXOTO, Gustavo. Marina Waisman: o interior da história. Resenhas Online, São Paulo, ano 13, n. 145.02, Vitruvius, jan. 2014 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/13.145/5035>.


Marina Waisman
Foto Imoisset [Wikimedia Commons]

A Perspectiva lançou em 2013 O interior da história de Marina Waisman em português. A capa indica um subtítulo: Historiografia arquitetônica para uso de latino-americanos. Com esse nome e sobrenome, o livro constitui uma espécie de manual de instruções para quem quiser ler ou escrever a história da arquitetura. A heróica editora paulistana ajunta essas 206 páginas essenciais à sua vasta coleção de clássicos, no tradicional formato compacto da coleção “Estudos”, para a compreensão da arquitetura em nossa obscura parte do planeta.

Imaginemos a história como uma máquina: pois o livro abre a embalagem, descreve o produto, tira a tampa do capô e mostra as peças, explica o funcionamento, adverte contra os defeitos mais freqüentes e maus usos. Depois desmonta. Separa peça por peça, exibe, esclarece uma a uma e monta novamente os componentes enquanto ensina a operar a traquitana sob o céu do Sul.

Marina Waisman nasceu em Buenos Aires em 1920, fincou raízes em Córdoba, segunda maior cidade da Argentina. Formou-se em arquitetura em 1945 na tradicional Universidad Nacional de Córdoba onde lecionou a partir de 1948. Entre 1956 e 1959 deu aulas em Tucumán onde também ensinava Francisco Bullrich e onde se fixou o arquiteto e historiador italiano Francisco Tedeschi. Esse grupo configurou um inusitado sistema descentrado de pensamento arquitetônico no interior da Argentina.

Entre 1974 e 1991 esteve afastada da UNC por motivos políticos. Lecionou então na Universidad Católica de Córdoba. Em cada um desses lugares, juntando os melhores dentre seus pares e discípulos, deixou plantada uma semente que deu raiz e fruto: a primeira Cátedra de Arquitetura Contemporânea em Córdoba; em Tucumán, o Instituto Interuniversitário de História de la Arquitectura (IIDEHA); na Católica de Córdoba fundou o Instituto de História y Preservación del Patrimônio que hoje se chama Instituto Marina Waisman. Depois de seu retorno à UNC criou e o Centro para la Formación de Investigadores en História, Teoria y Crítica de la Arquitectura que hoje também ostenta o seu nome.

Além disso teve liderança e presença constante desde a primeira edição dos Seminários de Arquitetura Latinoamericana – SAL e militou o tempo todo pela preservação do patrimônio cultural. Esses dados dão alguma medida da nossa autora como organizadora e gestora de iniciativas relevantes e duradouras, mas também de como as instituições por que passou reconhecem e veneram seus méritos.

Desde os anos 1970 até a sua morte em 1997 foi assídua colaboradora da prestigiosa revista Summa e de sua sucessora Summa+. Criou e dirigiu o suplemento de resenhas Summarios a partir de 1976. Seus livros são o resultado direto desse cotidiano duplo de professora e jornalista. Cada capítulo de O interior da História é resultado de prolongada e amadurecida reflexão de professora, foi provavelmente ensaiado com os alunos, submetido à prova e adensado em sala de aula. Por outro lado – e ao mesmo tempo – a redação fluente e ‘fácil’ que seduz o leitor vem do treino e da disciplina impostos pela lida jornalística.

Waisman publicou em vida três livros monográficos. O primeiro, La estructura histórica del entorno, saído em 1972, já era uma interpretação do mundo contemporâneo a partir da visada própria da América Latina. O título anuncia algo do pensamento estruturalista que Ruth Verde Zein descreveu assim:

“Em seus escritos Marina Waisman desenvolveu um enfoque estruturalista da história da arquitetura, baseado numa análise tipológica que, ao contrário de outros estudos no gênero, considera o organismo arquitetônico como o resultado da combinação de diversos componentes: as tipologias estruturais, formais, funcionais, de relação obra/entorno, de modo de emprego das técnicas” (1)

Não se trata aqui do clássico estruturalismo francês, mas de uma disposição interpretativa. Ela olha os fenômenos que se apresentam à interpretação e procura configurá-los em um sistema de relações formais. O termo ‘estrutura’ para ela parece menos com uma ossatura arquitetônica do que com algo orgânico como aponta Ruth. E ela faz isso com enorme erudição, em diálogo com uma constelação de pensadores e historiadores da arquitetura (2).

Waisman se desloca com sabedoria nesse espaço interestelar. A posição de pesquisadora universitária e a prática no patrimônio histórico lhe dão amplo domínio da produção arquitetônica latino-americana. Mas o contato com a pescaria viva do material que chega ainda pulsante na redação da revista demandando interpretação acrescentam um sabor fresco ao seu conhecimento.

O Interior da história foi o segundo dos livros monográficos que publicou e é o primeiro que ganha edição em português. O terceiro e último – La arquitectura descentrada – de 1995, é continuação natural do raciocínio de O interior da história. Analisa a fragmentação da arquitetura no mundo contemporâneo ‘sem centro’.

Os temas do Interior da história são complexos e perigosos. A estratégia para enfrentá-los é fragmentária e progressiva. Como na velha e boa pedagogia escolástica, cada capítulo propõe um problema. Apresenta a questão, desenvolve, exemplifica e conclui. A conclusão abre caminho para a próxima lição onde o mesmo sistema é retomado.

O livro tem duas partes. A primeira parece nem merecer o subtítulo porque não é diretamente dirigida ao caso da América Latina. Propõe-se a ser uma “caracterização” da historiografia arquitetônica enquanto disciplina. Ela procura delimitar o objeto de estudo. Passo a passo define história e historiografia. Distingue a história geral da história da arte e esta da história da arquitetura. Explora as fronteiras entre história, teoria e crítica. Essas sutilezas de conceituação, freqüentemente negligenciadas, são necessárias para o seu raciocínio na segunda parte. Mas são precisões muito relevantes para os leitores de história da arquitetura e lições utilíssimas para pesquisadores e escritores. Nada disso se parece como uma velha enciclopédia que impõe limites restritivos a definições acadêmicas. O que ela faz é advertir sobre as sutilezas do texto sobre arquitetura a partir do interior mesmo da história. E, para isso, ela conversa com as vozes mais autorizadas do pensamento filosófico, histórico e arquitetônico.

A parte termina com dois capítulos (‘Reflexão e práxis’ e ‘Subjetividade e objetividade’) que indicam como toda a parafernália teórica posta em vinha d’alhos até aqui vai permitir a leitura da história da arquitetura a partir do nosso sub-continente. Se a América Latina não é tema nem personagem nessa metade do livro, é de seu interior que fala a autora, que ela conclama a constelação de seus interlocutores. É daí que examina edifícios e cidades a partir dos pressupostos geográficos que vão em seguida permitir a brilhante tessitura do resto do livro. Silvia Arango, na apresentação feita para a primeira edição do livro (Bogotá: Escala, 1990), explicou assim o projeto do livro:

“Marina Waisman utiliza os recursos do caçador. Com premeditação minuciosa, na primeira parte vai recortando, delimitando o tema [...] Na segunda parte, uma vez capturada a presa, a autora a ataca sem contemplações: alcança-a, agarra-a, examina-a cuidadosamente. Percorre, um a um, todos os aspectos pertinentes à historiografia arquitetônica, sem deixar resquícios, por todos os lados.”[p. XII]

De fato é na segunda parte que o livro enfrenta as questões particulares do escrever de arquitetura na América Latina. Logo de saída, Waisman reflete sobre o problema da adoção acrítica de uma periodização histórica inventada para caracterizar os estilos europeus enquanto processos com um início, um desenvolvimento e uma fase de decadência. É que nós, latino-americanos, temos tradicionalmente trabalhado a periodização da arquitetura do nosso continente em conexão com as definições européias. Parece mesmo que existe uma dependência necessária dessas definições de períodos e durações. Mas Marina Waisman adverte que as idéias e formas da arquitetura não chegaram aqui como produtos acabados, mas em um processo de transculturação de idéias. Os conceitos europeus foram livremente interpretados conforme as circunstâncias locais. E as condições políticas, econômicas e outros fatores extra-arquitetônicos determinaram muitas vezes as permanências e descontinuidades.

É inegável que houve propagação de idéias da Europa para a América. Mas isso não foi uma transmissão uniforme, porém lenta e irregular. Em nosso caso há durações próprias e formas peculiares de articulação. Daí que muitas das categorias elaboradas nos centros do velho mundo acabaram por colidir no ambiente americano.

Para enfrentar esse problema, Waisman propõe uma periodização que não procure as continuidades, mas os pontos de inflexão (Foucault). E escolhe construir a história da arquitetura na nossa região “já não como articulações e mudanças de rumo em um contexto mais ou menos unitário, mas como rupturas, como desgarramentos de tecidos apenas esboçados” (p. 64). Nessa história capitulada assim por esgarçamentos, nossa autora consegue descobrir elementos de estabilidade que constituem possíveis invariantes latino-americanas. (ela segue aqui uma pista de Fernando Chueca Goitia) Isso a leva a explorar as diferentes durações históricas. Distingue durações curtas e médias das longas. As longas (aqui se ouve Braudel) estão de tal modo entranhadas nos hábitos regionais que já não mais nos damos conta deles porque foram naturalizados no interior do nosso modo de ver o mundo. Além dessas durações contínuas Waisman identifica recorrências; momentos intermitentes em que valores e formas reafloram de tempos em tempos na prática continental.

Feito isso, Marina nos conduz à contribuição mais original e profunda do livro. Ela aparece no capítulo ‘Centro/Periferia/Região’. Aqui ela introduz a antinomia ‘centro–periferia’ no debate contemporâneo sobre ‘regionalismo’. O conceito de regionalismo crítico foi cunhado nos anos oitenta por Alexander Tzonis e Liane Lefaivre que o fazem remontar a Vitrúvio. Mas foi a voz poderosa de Kenneth Frampton que o fincou com firmeza na historiografia e na teoria contemporânesa.  Para esses autores o Regionalismo é resposta a uma arquitetura pós-moderna tectonicamente vazia e superficial na era da globalização midiática. De certo modo o assunto repercute a reação de Lewis Mumford nos anos 1930 ao modernismo internacional, à uniformidade dos edifícios naquilo que se definira como Estilo Internacional. A região, nessa concepção, serviria de meio de resistência contra a globalização uniformizante e outras dominâncias centralizadas.

Marina Waisman intervém no debate para notar que os defensores do regionalismo crítico o interpretam como reação passiva contra o avanço da monotonia estéril que vem do centro. Haveria algo na região que deve ser defendido para que permaneça como sempre foi a fim de não sucumbir diante da modernidade avassaladora que é pessoal e desumana. Pois é aí que Waisman entra na conversa a partir de seu centro regional no interior da Argentina, a 720km de Buenos Aires, e chama atenção de que Frampton e os outros autores norte-americanos e europeus falam de região a partir do centro. Córdoba, aquela periferia da periferia, a margem da margem, se converte assim em lócus central de reflexão orgânica.

Em vez de definir o regionalismo como resistência contra a modernidade a favor de algo que deve ficar como sempre foi, ela fala de uma divergência. Já não se trata de fincar pé contra a modernidade, mas de assumir compromisso tanto com o lugar como com o hoje. Seu conceito de regionalismo tem um caráter dinâmico e a região passa a ser o lugar da possível invenção do vir a ser.

Mas ilude-se quem imagina aqui um debate chão entre centro e periferia, com dogmatismos e palavras de ordem. Marina não se deixa seduzir por nenhum dos extremos fáceis de quem se sente numa espécie de assentamento marginal da história. Não se conforma em considerar a sua “periferia” como lugar de um eco destorcido das emanações do centro. Mas também não postula uma ilusória primazia da periferia em relação ao centro.

É coisa complicada e perigosíssima esse jogo de xadrez. Trata-se de driblar os dois hábitos atávicos entre os quais oscila a auto-imagem latino-americana: de um lado a atitude rasteira que parte de uma vanglória subdesenvolvida, nega Europa e América do Norte e acha que pode tratar do quintal de casa como se aquilo fosse o Centro do Mundo. Na extremidade oposta há os bovaristas – passivos e colonizados. Com insuperável complexo de inferioridade declaram a impotência da periferia.

Marina domina o tabuleiro. Esquiva-se habilmente de uma torre que impede o movimento do rei e do cavalo que ataca sorrateiramente pelo flanco. Nem ativismo subdesenvolvido, nem niilismo colonizado. Com notável clareza de raciocínio finura de escrita ela enfrenta a complexidade do tema apoiada no pensamento contemporâneo mais reconhecido.

... (É curioso que, diante desse programa, Marina Waisman invoque poucos autores latino-americanos. A grande e articulada coleção de filósofos e historiadores em meio à qual ela se desloca confortavelmente praticamente  não inclui pensadores do subcontinente.)

Cumprida essa tarefa, o livro passa a desvendar conceitos caros ao campo profissional para o uso de latino-americanos, como tipo e tipologia; linguagem e significado. E, para concluir, explora desdobramentos de tudo isso no patrimônio arquitetônico e urbano.

Se, de fato, a estrutura do livro é fragmentária, a leitura dessas partículas revela uma tessitura coerente que fica por trás dos pedaços aparentemente dispersos. E, didaticamente como em um curso, a seqüência de capítulos constrói, passo a passo o conhecimento.

Vem daí o seu reconhecimento geral entre os arquitetos: a mexicana Louise Noelle a descreveu como “uma das vozes mais autorizadas da arquitetura latino-americana e a quem muitos consideramos como uma grande mestra e guia” (3). O argentino César Naselli a chamou de “formidável agricultora da reflexão crítica latino-americana de arquitetura”. O catalão Josep Maria Montaner a considerou nada menos que “A mais importante crítica de arquitetura latino-americana. Mas os chilenos Enrique Browne e Cristián Fernándes Cox foram mais longe. Fazendo as vezes do Arcebispo de Cantuária, puseram-lhe a coroa de Santo Eduardo: “...en la teoría y crítica de la arquitectura latinoamericana, Marina Waisman es como la Reina de Inglaterra” (4)

Pois agora já temos em português O interior da história de Marina Waisman. É trabalho profundo e sistemático sobre historiografia da arquitetura. Torna-se, daqui para a frente, leitura obrigatória para historiadores, estudantes e professores de história da arquitetura, para os gestores do patrimônio cultual. Mas, melhor que isso, é um texto claro, de agradabilíssima literatura. Quem gosta de arquitetura – e quer entender como tem funcionado essa coisa aqui na América Latina – vai devorar num trago só.

notas

1
ZEIN, Ruth Verde. O lugar da crítica: ensaios oportunos de arquitetura. Porto Alegre: Ritter dos Reis, 2002.

2
Na raiz do sistema de pensamento de Marina Waisman devem estar certamente Croce e Dilthey. Mas em seu raciocínio ela dialoga com os pensadores Aron, Ricœur, Bachelard, Foucault com Lyotard, Derrida e Vattimo; com os historiadores Bloch, Braudel e Veyne; e também com os historiadores da arquitetura Tafuri, Argan, De Fusco e Zevi; Frampton, Virilio, Scott, e Scully, Banham e Panofsky entre outros tantos.

3
Louise Noelle. ‘Regionalismo’ Cuadernos de arquitectura. México: Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, Instituto Nacional de Bellas Artes, Dirección de Arquitectura y Conservación del Patrimonio Artístico Inmueble, 2003 [p.10]

4
Citações retiradas da homenagem feita na revista SUMMA+ (Buenos Aires, número 24, março de 1997)

sobre o autor

Gustavo Rocha-Peixoto é professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro; doutor em História Social (UFRJ 2004); mestre em Arquitetura (UFRJ 1995); especialista em filosofia (UFRJ 1985); graduado em Arquitetura e Urbanismo (UFRJ 1980). Tem experiência profissional na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em História da Arquitetura e Urbanismo, e Preservação e pesquisa do Patrimônio Cultural. Atua principalmente nos temas: pensamento, história e crítica da arquitetura e da cidade, arquitetura e urbanismo no rio de janeiro, patrimônio cultural, restauração arquitetônica. Entre 2006 e abril de 2010 foi o diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ e presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo entre 2010-2012.

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O interior da história

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Marina Waisman

2013

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