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Lívia e o cemitério africano, de Alberto Martins, contém uma reflexão sobre as cidades presentes no amplo mapa das viagens de Lívia, um dos personagens do romance. A autora faz uma leitura do texto a partir de Aldo Rossi e outros autores.

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PEIXOTO, Fernanda Arêas. Derivas urbanas, memória e composição literária. Resenhas Online, São Paulo, ano 13, n. 154.02, Vitruvius, out. 2014 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/13.154/5319>.


Gravura de Alberto Martins [Lívia e o cemitério africano]

As relações entre as cidades e a memória podem ser pensadas de diferentes formas, indica a ampla bibliografia sobre o tema, que inclui, entre muitas outras, as discussões sobre a memória urbana e sobre o patrimônio, como também o exame dos “lugares de memória”, definidos em função de experiências históricas e da violência política, que contribuem para a produção do espaço público e para o esboço de “topografias conflitivas” (1). Inscrições do passado e da história nas urbes; memórias de locais, eventos e traumas; cidades memoráveis como Jerusalém e Tebas (2), todos esses são caminhos percorridos, e que continuam a ser explorados, com resultados surpreendentes.

Aldo Rossi, em Arquitetura da cidade, de 1966, já chamara a atenção para o nexo íntimo e inextrincável entre cidade e memória, defendendo ser esta parte constitutiva do fato urbano (3). Um dos muitos interesses da reflexão do arquiteto italiano é sua concepção de cidade como artefato e cosa mentale, o que não significa postular determinismos na relação entre a materialidade construída e o universo ideacional. Ao contrário, os dois planos, dotados de relativa autonomia, se entrelaçam, desenhando derivas que podem, no limite, se descolar uma da outra. “Atenas, Roma, Constantinopla, Paris”, diz ele, “constituem ideias de cidade que vão além de sua forma física, além de sua permanência” (4).

São os nexos entre as cidades, imaginação e memória, centrais no estudo de Rossi, que interessam a esta reflexão. A proposta é pensá-los aqui com o auxílio de um texto literário específico, que possui a vantagem adicional de nos dirigir às implicações propriamente narrativas da trama composta por experiências urbanas e memórias.

Lívia e o cemitério africano (2013), de Alberto Martins, contém uma reflexão forte sobre as cidades. Cidades que se apresentam espalhadas em amplo mapa que as viagens de Lívia, e os cartões postais por ela enviados ao longo dos seus sucessivos deslocamentos, arrolam em uma lista disparatada: Paranaguá, Santa Cruz de la Sierra, Dourados, Recife, Goiânia, Lagoa Santa, Montevidéu, Madri, Moscou, Mainz, Belo Horizonte etc. O percurso errático da personagem por entre paisagens e espaços urbanos distantes no espaço desenha geografia mais concentrada nos roteiros percorridos pelo narrador do relato, que se movimenta entre Santos e São Paulo acompanhado da mãe e do menino, conhecendo ainda momentos de relativa expansão na viagem que realizam (ele e o menino) por estradinhas vicinais entre São Paulo e Santa Catarina. Mas em cada um dos percursos efetuados pela capital paulista e adjacências, ruas, recantos e fachadas se mostram no texto por meio do mesmo recurso enumerativo proposto pelos postais de Lívia ainda que, nesses casos especificamente, os termos da lista pareçam se encadear tal qual os fotogramas de um filme: ao longo dos passeios noturnos por São Paulo, por exemplo, a cidade se apresenta como uma “bobina que se desenrolava” deixando “cair suas cascas de ferro, de vidro, de plástico, de cimento, de celuloide até que, por cima do asfalto, tudo o que restava era uma crosta de gelo negro, quebradiço” (p. 50-1).

Não importa qual seja o roteiro traçado, ou a forma mais ou menos coerente que ele venha a adquirir, a apreensão da paisagem urbana no relato se faz por partes, resistindo a qualquer esforço de totalização. Seja nas andanças dentro da cidade, quando as imagens de São Paulo adquirem nome próprio (a Aurélia, a Cerro Corá, a rua Camilo...), seja nas subidas ou descidas da serra, só há pedaços, o litoral definido também como “cacos de cidades ligadas e desligadas ao sabor dos acidentes geográficos” (p. 107). A dificuldade em apanhar os contornos da urbe mostra-se ainda desde os seus limites, sempre abruptos e improvisados, e/ou nas zonas intermediárias e indefinidas, “avessa [s] a toda nomenclatura” (p. 97).

Para melhor compreendermos os problemas anunciados, duas palavras sobre o enredo. O que diz ele? Um arquiteto se vê, de uma hora para outra, responsável pelo sobrinho adolescente, portador de uma doença degenerativa, em função das viagens algo incompreensíveis de Lívia, namorada do irmão falecido e mãe do menino. Os cuidados do sobrinho doente e da mãe idosa dão novo ritmo e sentido à vida do arquiteto, em crise com a profissão.

Um arquiteto e uma paleontóloga situam-se, não por acaso, no centro de um relato que contem uma reflexão sobre as cidades, e faz das memórias sua matéria primeira. Afinal, tanto a arquitetura quanto a paleontologia fornecem metáforas- chave para os trabalhos de rememoração: memória como construção (a arquitetura); memória como escavação (a paleontologia e/ou a arqueologia).

Do ponto de vista de suas práticas profissionais, os personagens funcionam como opostos complementares, compondo uma espécie de dobradiça que articula distintas capas temporais por meio das quais a narrativa se movimenta. O arquiteto, comprometido com a organização do espaço, tem no projeto um vetor apontado para a construção futura que o plano antecipa. A paleontóloga, debruçada sobre os restos materiais de vidas pretéritas, se orienta para o passado geológico da terra em função de vestígios fossilizados. Mas as tarefas de construção e reconstrução em que ambos se encontram envolvidos tangenciam, de um modo ou de outro, a morte: ela tira o seu “sustento dos mortos”; ele se equilibra entre a construção e a destruição, mimetizando o movimento das cidades, “lugares de progresso e ruína, abandono e criação, de permanência e demolição” (5).

Os impasses colocados por seus ofícios conhecem soluções diferentes em cada um dos casos: ela se converte em contrabandista de fósseis, arriscando-se na ilegalidade; ele tenta escapar dos constrangimentos colocados pela clientela, dos “labirintos políticos” das obras públicas e ainda dos “clichês” para o qual a profissão o empurra, encontrando refúgio no experimentação criadora, curiosamente mais próxima da “vida real das cidades” do que as artes aplicadas (6).

A morte – a que as ossadas, sistematicamente mencionadas, se referem – e a memória estabelecem vínculos firmes entre os termos do outro par complementar da estória formado pela mãe e pelo menino (7). Separados pela idade, ambos se veem diante de processos de degeneração do corpo: o afrouxamento dos músculos transforma os ossos do jovem em “casquinhas de vidro”; a idade avançada da mãe explicita o paradoxo colocado pela velhice, ao mesmo tempo fase de acúmulo, de conhecimento e experiências, e de perdas, física e mental.

Mas é a memória o móvel central de aproximação e afastamento do par: “o menino tinha memórias de mais; minha mãe, memória de menos” (p. 65). Memórias pessoais e familiares que os dois personagens relatam pouco a pouco, e que são indissociáveis da vida das cidades, dos trajetos nelas experimentados e das memórias de outrem.

A história da mãe liga-se à história da imigração italiana e à cidade de Santos nos anos 1940, cidade que emerge no ritmo entrecortado das recordações: o Grande Hotel com sua vida noturna regada a música e uísque; o reveillon e o carnaval de 1948. À cidade materna mistura-se a Santos dos anos 1960 experimentada por Lívia e pelo irmão: os cursos nos “salões envidraçados” da Associação Humanitária Universal que contaminaram o palco do Cine Independência e outros espaços, traduções de um momento de florescimento cultural da cidade que o golpe militar de 1964 abortou.

As memórias da mãe carregam outras, afinando a sonda da rememoração e permitindo que ela atinja camadas mais profundas. Daí afloram, por exemplo, as lembranças do primo Guido, da guerra e de sua morte trágica; a chegada dos italianos pelo porto de Santos; a mudança posterior da família para São Paulo; as sucessivas travessias do mar ao planalto (e vice-versa). História pessoal, familiar e das cidades encontram-se assim intimamente enlaçadas nos esforços rememorativos empreendidos pela mãe. As memórias do menino, por sua vez, reconstituem a infância de Lívia e dos pais em relatos lacunares e exagerados, ao mesmo tempo verídicos e fantasiosos, como são, aliás, todas as memórias, produzidas entre a invenção e o inventário (8).

Curioso notar que, em ambos os casos, a produção de lembranças tem lugar ao sabor de deslocamentos: a mãe “desanda a falar” na travessia para o Guarujá; o menino, por sua vez, sai de seu mutismo habitual durante os passeios de carro por São Paulo, que estimulam outros mais prolongados: parque da Água Branca, Ibirapuera, Jardim Botânico, Cantareira. Os deslocamentos no espaço têm assim função “terapêutica”: a tosse do menino cessa e ele fica sereno durante os circuitos pela cidade de São Paulo; as ausências da mãe são preenchidas ao longo dos périplos realizados. O próprio arquiteto encontra novas possibilidades criadoras ao recuperar o hábito de caminhar pela cidade, de explorar ruas com o caderninho na mão, todas essas situações que remetem ao tópico das virtudes curativas da viagem, e das produções engendradas ao sabor das derivas espaciais.

O narrador é parte do relato e seu artífice: é ele quem ouve, recolhe e coleciona fragmentos, restos de histórias que ligam o irmão, a mãe, o menino, Lívia (e ele próprio) a um mesmo enredo que, embora encadeado, não alcança jamais a completude – exatamente como as cidades contemporâneas. A impossibilidade de toda e qualquer totalização se associa à rejeição da cronologia (o texto procede por recuos e avanços concomitantes no tempo) e à recusa do aplainamento narrativo: o relato deixa propositalmente à mostra as linhas da colagem, fazendo visíveis os seus procedimentos de encaixe e composição de lembranças, materializadas em cartas, retratos, canhotos de passagem, matérias de jornais e trechos de obras literárias que o narrador-colecionador acumula, organiza e compõe.

Os trabalhos da memória que se expressam por meio das falas “tortas, cheia de saltos e pedaços faltando” da mãe se completam no ouvinte que vai, aos poucos, “preenchendo, corrigindo, emendando” (p. 59). Do mesmo modo, diante dos relatos biográficos produzidos pelo menino, trechos que parecem desconexos vão sendo encaixados e articulados pelo escritor.

O procedimento composicional posto a nu evidencia os processos criadores da memória, aproximando-os da criação literária. “Toda história que se ouve” – e toda lembrança, poderíamos acrescentar – “é feita do eco de outras histórias. Mas nem por isso é menos verdadeira” (p. 74) (9). Além disso, ambas as criações – memorialística e literária – só se realizam no ouvinte das experiências vividas, ou no leitor dos textos.

Lívia e o cemitério africano associa cidades, memória e narrativa literária em função dos procedimentos compositivos que estão na origem de cada uma delas; trata-se de composições fragmentárias, em permanente movimento, mesmo quando parecem se apresentar como totalidades dotadas de estabilidade. Cidades, memória e narrativa literária feitas de cacos, compostos e recompostos na experiência do transeunte, na prática da leitura e nas “artes da memória”.

Gravura de Alberto Martins [Lívia e o cemitério africano]

notas

NE
Publicação original: PEIXOTO, Fernanda Áreas. Derivas urbanas, memória e composição literária. Redobra, n. 13, ano 5, Salvador, UFBA, 2014 <www.redobra.ufba.br/>.

1
HUFFSCHMID, Anne; DURÁN, Valeria. Topografías conflictivas. Memorias, espacios y ciudades en disputa. Buenos Aires, Nueva Trilce, 2012.

2
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Formas e transformações da memória cultural. Coordenação da Tradução Paulo Soethe. Campinas, Editora da Unicamp, 2011.

3
ROSSI, Aldo (1966). A arquitetura da cidade. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2001. As sugestões de Rossi vem sendo desenvolvidas por outros autores, na tentativa de associar artes da memória, território e arquitetura, como é o caso, por exemplo, de: MAROT, Sébastien. L’art de la mémoire, le territoire et l’architecture. Paris, Éditions de la Villete, 2010.

4
ROSSI, Aldo. Op. cit., p. 194.

5
LIRA, José Tavares Corrêa. De patrimônio, ruínas urbanas e existências breves. Redobra, n. 12, ano 4, Salvador, UFBA, 2013, p. 169.

6
Em suas palavras: “Meus trabalhos como arquiteto, por mais inventivos que fossem, pareciam separados da vida real da cidade por uma barreira quase intransponível – ao passo que os esforços que eu realizava de forma anônima na bancada do escritório, esforços que não tinham outro fim a não ser a própria experimentação, esses, eu tinha certeza, faziam parte do trabalho comum da cidade” (p. 92). Isso, entre outras coisas, porque diante de uma “cidade de exceção”, “que cresce a todo o vapor” sob os ditames do mercado, o trabalho do arquiteto é “pouco mais do que uma impostura”, afirma o narrador- arquiteto (p. 103).

7
A própria ideia de memória, notemos, se alimenta da morte, do apagamento de traços, do esquecimento.

8
Segundo Mary Curruthers, duas palavras distintas no inglês moderno, invention e inventory possuem a mesma origem latina inventio, indica a autora. CURRUTHERS, Mary. A técnica do pensamento. Meditação, retórica e a construção de imagens (400-1200). Tradução José Emílio Maiorino. Campinas, Editora da Unicamp, 2011, p. 36.

9
Remeto o leitor ao célebre texto de Freud sobre as lembranças de infância e sua proximidade com a invenção poética. Cf. FREUD, Sigmund (1899). Sur les souvenirs- écrans. In: Huit études sur la mémoire et ses troubles. Tradução Denis Messier. Paris, Gallimard, 2010.

sobre a autora

Fernanda Arêas Peixoto, professora do Departamento de Antropologia da USP e pesquisadora do CNPq.

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Lívia e o cemitério africano

Lívia e o cemitério africano

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