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Em junho de 1960, quado a independência do Congo foi oficializada em uma cerimônia no parlamento, e Lumumba, Primeiro Ministro, denunciou todos os crimes cometidos na colonização do Congo pela Bélgica. Um ano depois, ele seria violentamente assassinado.

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In June 1960 the independence of the Congo was made official at a ceremony in parliament, and Lumumba, Prime Minister, denounced all the crimes committed in the colonization of the Congo by Belgium. A year later, he was violently murdered.

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LIMA, Adson Cristiano Bozzi Ramatis. O rei, o presidente e o primeiro ministro do Congo. Sobre os três discursos proferidos na cerimônia da independência. Resenhas Online, São Paulo, ano 14, n. 164.02, Vitruvius, ago. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/14.164/5631>.


A partir do ano de 1908 o Reino da Bélgica apossou-se de um enorme território no coração da África, o Congo, que até então pertencia, a título pessoal, ao seu soberano, o rei Leopoldo II. O processo de colonização desse país sempre foi marcado por uma inaudita violência, mesmo se levarmos em consideração que a colonização de um território por uma potência estrangeira quase nunca é pacífica. E nesse caso específico, populações inteiras foram deportadas, milhões morreram de fome ou de maus tratos, mutilações com caráter punitivo foram aplicadas e o sistema econômico baseava-se, sobretudo, no trabalho forçado. Este repertório torna-se ainda mais terrível se pensarmos na justificativa dos países europeus para a colonização, que seria uma pretensa “missão civilizatória”. A descoberta e a posterior divulgação desse legado fizeram com que Leopoldo II se visse obrigado, a contragosto, a vender o Congo ao seu país. Contudo, assim como estava ocorrendo com as outras potências coloniais no segundo Pós-Guerra, a Bélgica viu-se obrigada a reconhecer a independência do seu território africano. No dia 30 de junho de 1960 esta independência foi oficializada em uma cerimônia no recém inaugurado parlamento congolês, com a presença do Rei dos Belgas, Balduíno I, que, na ocasião, pronunciou um discurso autocomplacente e paternalista:

“Senhor Presidente, senhores,

A independência do Congo constitui o resultado da obra concedida pelo gênio de Leopoldo II, realizada por ele com uma coragem tenaz e prosseguida com perseverança pela Bélgica. Ela marca uma hora no destino, não somente do próprio Congo, mas – e eu não hesito em afirmá-lo – de toda a África. Durante oitenta anos a Bélgica enviou ao seu solo os seus melhores filhos, inicialmente para livrar a bacia do Congo do odioso tráfico de escravos que dizimava sua população, em seguida para aproximar umas das outras as etnias que antigamente eram inimigas e [agora] estão prontas para constituir juntas o maior dos Estados independentes da África; enfim, para conclamar a uma vida mais feliz as diversas regiões do Congo que vocês representam aqui unidas em um mesmo parlamento” (1).

Como vimos, não houve no discurso nenhuma menção sobre as deportações, sobre o trabalho forçado ou sobre as mutilações que eram frequentemente cometidas como punição quando o Congo era uma posse do seu tio-avô, e nem sobre as discriminações cotidianas que sofriam os nativos congoleses, como a proibição do simples e elementar direito de circulação, uma vez que havia lojas, restaurantes e cinemas nos quais era permitida unicamente a entrada de europeus, consistindo este regime em um sistema de apartheid tal como este era praticado na África do Sul, sobretudo se somarmos a estas restrições a punição por chicotadas, abolida apenas no ano da independência (2). E ainda continha uma menção extremamente elogiosa a Leopoldo II, que com o seu “gênio” teria permitido que a mais absoluta das barbáries recaísse sobre a população congolesa. E no discurso houve espaço até para uma “gentil admoestação”, como a que faz um pai aos filhos que deixam o lar paterno: “Não comprometam o futuro com reformas apressadas, e não substituam os organismos que lhes entrega a Bélgica enquanto vocês não tiverem certeza de que poderão melhorá-los” (3).

Este extrato deixa claro que, apesar da independência, o Estado belga queria, por razões geopolíticas e econômicas, continuar a ter influência no país africano. Na realidade, a pretensão da Bélgica era “conceder” uma independência apenas formal, estando as autoridades locais na posição de executoras de políticas de interesse da antiga metrópole (4). Por outro lado, a independência “concedida” foi, na realidade, conquistada por meio de uma luta que consistiu em greves e rebeliões. O discurso do Presidente eleito, Joseph Kasa-Vubu, por sua vez, não mudou de dicção, contendo inúmeras referências elogiosas ao país colonizador e mesmo à figura do Rei:

“A Bélgica teve, então, a sabedoria de não se opor ao curso da história, e compreendendo a grandeza do ideal da liberdade que anima todos os corações congoleses, ela soube – fato sem precedente na história de uma colonização pacífica – passar diretamente e sem transição nosso país da dominação estrangeira à independência, na plena soberania nacional.

A presença de Vossa Augusta Majestade nas cerimônias deste dia memorável constitui um evidente e novo testemunho da Vossa solicitude em relação a todas as populações que amaste e protegeste. Elas estão felizes de poder comunicar, hoje, ao mesmo tempo o seu reconhecimento pelas melhorias que Vós e Vossos ilustres predecessores lhes prodigastes, e a sua alegria pela compreensão recebida pelas suas aspirações” (5).

Ora, se é justo pensar que haveria prepostos do Estado Belga no governo congolês, já sabemos quem o seria... E, sabemos, igualmente, quem não o seria: o Primeiro Ministro, Patrice Emery Lumumba, que em um discurso não programado e cujo conteúdo o governo belga desconhecia e, portanto, não havia autorizado – o que, diga-se de passagem, não era o caso do discurso de Kasa-Vubu, previamente lido e autorizado (6) – procurou restabelecer a verdade do processo colonizador:

“Congoleses e Congolesas,

Combatentes da independência, hoje vitoriosos, eu lhes saúdo em nome do governo congolense. A todos vocês, meus amigos, que lutaram sem trégua ao nosso lado, eu peço para fazer deste dia 30 de junho de 1960 uma data ilustre que ficará para sempre gravada nos seus corações, uma data a qual vocês contarão com orgulho aos seus filhos, para que estes, por sua vez, contem aos seus netos a história gloriosa da nossa luta pela liberdade” (7).

Inicialmente, devemos entender quem foi o autor deste discurso que se tornou célebre, um verdadeiro playdoyer da causa dos colonizados (8). Se Patrice Lumumba foi filho de um miserável agricultor perdido nos confins do Congo, ele recebeu certa educação formal (nos estritos limites permitidos pelos colonizadores) nas missões religiosas, inicialmente católica e posteriormente protestante. Desta maneira, ele conseguiu se tornar um “evoluído”, estatuto instituído pelo colonizador que lhe permitia acesso às funções públicas, desde que, naturalmente, fossem respeitados certos limites; no Exército, por exemplo, um congolês jamais se tornaria oficial, e no fim de uma longa carreira seria, no máximo, sargento. E foi nessa condição que Lumumba deixou o campo e foi trabalhar na cidade realizando atividades burocráticas em uma Companhia belga (9). Mas voltemos ao seu discurso:

“Pois a independência do Congo – se ela é proclamada hoje com o acordo da Bélgica, país amigo com quem nós negociamos de igual para igual –, nenhum congolense digno deste nome poderá esquecer que é pela luta que ela foi conquistada, uma luta de todos os dias, uma luta ardente e idealista, uma luta na qual nós não poupamos nem as nossas forças, nem as nossas privações, nem o nosso sofrimento e nem o nosso sangue.

Desta luta, que foi feita de lágrimas, de fogo e de sangue, nós estamos orgulhosos até o âmago de nós mesmos, pois foi uma luta nobre e justa, uma luta indispensável para colocar um fim na humilhante escravidão que nos era imposta pela força” (10).

Como podemos observar, o discurso “clandestino” de Lumumba contrariava abertamente e de maneira incisiva o discurso do ex-chefe de Estado, Balduíno I, e do atual, Kasa-Vubu. O Primeiro Ministro afirmou que a independência do seu país não foi, de maneira nenhuma, uma concessão, como sugeriram os dois discursadores anteriores, mas uma conquista feita de “lágrimas, de fogo e de sangue”, e realizada em detrimento da vontade do colonizador. Podemos imaginar – e sabemos que isto, de fato, aconteceu – a indignação e a mesmo a fúria das autoridades belgas, diante daquele discurso imprevisto que contrariava todo o protocolo, e que, transmitido ao vivo pelo rádio, poderia facilmente inflamar a população congolesa colocando-as contra os brancos residentes no país, os tais “melhores filhos” enviados pela Bélgica (11). E o discurso continuou:

“Este foi o nosso destino nestes oitenta anos de regime colonialista, nossas feridas são recentes e dolorosas demais para que nós possamos esquecê-las. Nós conhecemos o trabalho fatigante exigido em troca de um salário que não permitia saciar a nossa fome nem nos vestir ou nos abrigar decentemente, e nem de educar as nossas crianças como entes queridos. Nós conhecemos a ironia, os insultos, a violência que deveríamos sofrer pela manhã, tarde e noite, porque nós éramos “crioulos” [nègres no original, termo pejorativo]. Quem esquecerá que um negro era tratado por “você”, não porque era um amigo, mas porque o “senhor” honorável era reservado unicamente aos brancos? Nós sabemos que as nossas terras eram espoliadas em nome de textos pretensamente legais e que não faziam senão reconhecer a lei do mais forte” (12).

O Primeiro Ministro que proferiu este discurso que fugia completamente ao script (aliá, zelosamente traçado pelas autoridades belgas) não era mais um “evoluído” destacado do resto da população congolesa por ser instruído e por trabalhar de maneira diligente (ora, ele não teria a preguiça atávica dos indigènes, se espantavam alguns brancos...), mas havia se tornado um líder carismático, um excelente orador que havia contribuído, junto com outros líderes (inclusive o agora complacente Kasa-Vubu) a instaurar a independência do Congo (13). Neste discurso tudo foi dito, de maneira clara, tanto aos Belgas quanto aos Congoleses: os castigos físicos, as constantes humilhações, o regime de segregação, a espoliação das terras legitimada por lei e o trabalho forçado. E que fim teria levado o Primeiro Ministro que ousou afrontar o Rei dos Belgas? Um ano mais tarde, caído em desgraça, ele foi caçado como um animal, preso, torturado e, finalmente, fuzilado em plena selva. O seu corpo foi serrado em partes e dissolvido em ácido (14). Estava-se em plena Guerra Fria, e Lumumba havia realizado a sua última ousadia: solicitara ajuda militar à União Soviética para reprimir uma rebelião separatista na rica província congolesa de Katanga. A memória do seu nome e da sua saga, contudo, entraram para a História, e Lumumba se tornou o representante da grandeza e do martírio da África.

notas

1
Les discours prononcés par le Roi Baudouin Ier, le Président Joseph Kasa-Vubu et le Premier Ministre Patrice-Emery Lumumba lors de la cérémonie de l’indépendance du Congo (30 juin 1960) à Léopoldville (actuellement Kinshasa). Disponível em: http://www.kongo-kinshasa.de/dokumente/lekture/disc_indep.pdf. Tradução do autor.

2
REDAÇÃO. Exclusif: Le discours de Lumumba, texte-fondateur. Le Vif, Bruxelas, 15 jun. 2015. Tradução do autor.

3
Les discours prononcés par le Roi Baudouin... (op. cit.). Tradução do autor.

4
“A elite belga, bastante inquieta, tem dúvidas. Contra toda expectativa, o nacionalista Patrice Lumumba havia conseguido formar um governo. A Bélgica poderia manter os seus interesses na ex-colônia? Durante meses, levado pelo entourage de seu pai Leopoldo III, o jovem rei Balduíno previne o seu governo que os ‘direitos imprescritíveis’ da Bélgica no Congo deveriam ser mantidos”. REDAÇÃO. Exclusif: Le discours de Lumumba, texte-fondateur. Le Vif, Bruxelas, 15 jun. 2015. Tradução do autor.

5
Les discours prononcés par le Roi Baudouin... (op. cit.). Tradução do autor.

6
“Após o discurso do Presidente Kasa Vubu, o Presidente da Câmera, Kasongo, concedeu a palavra a Lumumba. Consternação de Balduíno e de Eyskens [Primeiro Ministro belga], pois o serviço de informações foi negligente e não enviou um exemplar do texto que, no entanto, ele conhecia previamente. O conteúdo do discurso surpreendeu ainda mais.” REDAÇÃO. Exclusif: Le discours de Lumumba, texte-fondateur. Le Vif, Bruxelas, 15 jun. 2015. Tradução do autor.

7
Les discours prononcés par le Roi Baudouin... (op. cit.). Tradução do autor. Sobre o início do discurso, uma importante observação: “Na sua introdução, O primeiro-ministro não se dirige aos antigos “senhores”, mas aos ‘Congoleses e Congolesas, combatentes da independência, hoje vitoriosos’. No texto datilografado, ele se dirige primeiramente ao ‘Sire, Excelências, Senhores e Senhores’. Mas ele não pronuncia estas palavras, escolhendo dirigir-se diretamente ao seu povo. De repente, as autoridades estrangeiras se tornam os espectadores de uma celebração do movimento nacionalista e dos seus primeiros êxitos”. REDAÇÃO. Exclusiv: Le discours de Lumumba, texte-fondateur. Le Vif, Bruxelas, 15 jun. 2015. Tradução do autor.

8
“uma pessoa pode ser um herói simplesmente sendo vítima da violência de alguém em uma ocasião e circunstâncias particulares. É nesta terceira categoria que Lumumba se enquadra.” MAZRUI, Ali A. Thoughts on Assassination in Africa. Political Science Quarterly, vol. 83, n. 1, mar. 1968, p. 53. Tradução do autor.

9
SARTRE, Jean-Paul. El pensamiento político de Patrice Lumumba. Em: Pensamiento Crítico, Habana, n. 2-3, mar./abr. 1967.

10
Les discours prononcés par le Roi Baudouin... (op. cit.). Tradução do autor.

11
“O discurso de Lumumba foi interrompido oito vezes pelos aplausos engrossados pelos Congoleses presentes. O seu discurso terminou com uma ovação. Ele foi ouvido no rádio por milhares de Congoleses. Muitos não imaginavam que se pudesse falar assim a um homem branco”. REDAÇÃO. Exclusiv: Le discours de Lumumba, texte-fondateur. Le Vif, Bruxelas, 15 jun. 2015. Tradução do autor.

12
Les discours prononcés par le Roi Baudouin... (op. cit.). Tradução do autor.

13
SARTRE, Jean-Paul. Op. cit.

14
MAZRUI, Ali A. Op. cit.

sobre o autor

Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima é Arquiteto e Urbanista pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Mestre em Estudos Literários pela UFES, Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP. Professor Assistente do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Maringá.

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