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Para a publicação da segunda edição do livro Jardim América, a autora Sylvia Wolff escreve nova apresentação, refletindo sobre a preservação do legado do empreendimento.

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WOLFF, Silvia Ferreira Santos. Refletindo sobre a preservação do legado do Jardim América. Resenhas Online, São Paulo, ano 15, n. 172.01, Vitruvius, abr. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/15.172/5987>.


A presente edição (1) vem a público quase uma década depois da primeira, e quinze anos após a escrita do texto, originalmente minha Tese de Doutoramento defendida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Esta publicação se dá vinte cinco anos após o tombamento da área chamada “Jardins” pelo Condephaat, conselho estadual de preservação do patrimônio cultural.

Essa mancha urbana, “Jardins”, que se contrapõe a bairros densos e altamente verticalizados da paisagem paulistana, é caracterizada por sua baixa taxa de edificações cercadas por amplas áreas ajardinadas. Esse setor da cidade compôs-se da soma de loteamentos criados e denominados a partir do modelo do Jardim América, lançado no final dos anos 1910 pela Companha City of San Paulo e Freehold Company. Em continuidade espacial a ele somaram-se: os Europa, Paulista e Paulistano. Sua preservação oficial resulta de tombamento estadual em 1986, em atendimento a movimento de moradores e cidadãos paulistanos que resistiram à transformação, então já em curso, do zoneamento e das características da área.

O trabalho acadêmico que corresponde a esse livro originou-se impulsionado por minha perplexidade diante das dificuldades de atuar profissionalmente para preservar o que pretendi expressar sem palavras na imagem da capa do livro: a qualidade da paisagem criada pelos loteamentos ajardinados, fruto de especificações rígidas, em contraste com a cidade vertical, modificada com menor controle, ao menos nos regramentos para novas construções.

Tinha por meta, ao final da pós-graduação, estar melhor aparelhada para exercer a atividade profissional de efetivar a preservação almejada, tanto da paisagem como de exemplares arquitetônicos. No trabalho, em síntese, busquei entender as origens do modelo paisagístico; a história da ocupação do loteamento pioneiro na aplicação do modelo, o Jardim América; os métodos da empresa que o criou, a Cia. City; suas transformações e a arquitetura que se implantou na fase de consolidação da ocupação dos lotes por residências.

Na introdução do trabalho trato de como isso foi feito com mais detalhes.  Nesta nova edição gostaria de refletir sobre os rumos que tomou a ação oficial depois do ato do tombamento em 1986. Busco entender os desdobramentos para o bairro residencial ajardinado, para o órgão, para a cidade e para a preservação em geral.

Casa de Charles Miller, um dos primeiros moradores do Jardim América
Foto divulgação

* * *

Trabalho desde 1980 no Condephaat, órgão estadual de preservação do patrimônio cultural paulista. Tive minha vida profissional e até pessoal desenhada por este vínculo. Entre vários temas e questões com os quais lidei nesses anos esteve a preservação das paisagens dos bairros jardins. Assisti interessada, mas sem participar como técnica, à luta pela preservação dos "Jardins" a partir da resistência à construção de um shopping center no terreno em que, resultado do mesmo embate, implantou-se o Museu Brasileiro de Escultura. Por outro lado, participei da delimitação da área a ser preservada no Pacaembu e por algum tempo da aprovação das transformações de suas edificações.

Quando da solicitação do tombamento dos “Jardins” pelo medo da alteração das características do bairro-jardim representada pela construção do edifício comercial, de fato havia muita insensibilidade por parte da Prefeitura Municipal e, principalmente da Câmara de Vereadores. Freqüentemente eram referendadas sem alarde alterações de elementos que até então haviam garantido juridicamente a manutenção das disposições gerais das áreas.

As regras da loteadora, Cia. City, estabeleceram um modelo de ocupação e uso que limitavam os lotes a residências para apenas uma família. Nesse sentido não criavam propriamente bairros, nos quais haveria funções variadas, mas zonas de casas. As construções eram afastadas dos limites dos terrenos e deviam ter recuos ajardinados. Do mesmo modo, as ruas recebiam arborização publica. Essas cláusulas concebidas nos anos 1910 foram replicadas por outras empresas e, posteriormente, pela própria legislação municipal. Em São Paulo e também em outros municípios brasileiros. Criou-se assim um padrão para loteamento residencial de casas para uma família.

Mas, nos anos 1980 na metrópole de São Paulo, isso não era mais tão conveniente e as zonas limites progressivamente recebiam pressão por transformações de uso e ocupação. Desde a década anterior, a Cia. City que exercera com pulso de ferro, desde o início, o controle sobre a ocupação de todos seus loteamentos, deixou esse encargo exclusivamente para o poder municipal.

Após uma lei nos anos 1970 que permitia a substituição do uso das residências em vias de maior trânsito, em corredores de comércio e serviço, seguiram outras mudanças no zoneamento que transformavam, de um dia para o outro, ruas de construções baixas, de residências unifamiliares, em uma seqüência de prédios de apartamentos. Casas foram substituídas por espigões de alto luxo, com bela e valorizada vista, para os próprios bairros jardim. Prédios que por sua vez bloqueavam as visuais a partir de outros mais antigos, nos quais se tinha sonhado com horizontes verdes imutáveis. Alteravam-se os limites e as características de bairros homogêneos.

Parte da população não se conformou com as perdas e a solução pensada foi logo o tombamento, entendido como garantia contra mudanças indesejáveis. O pedido de preservação dos “Jardins” foi referendado por expressivo número de assinaturas e o Condephaat, viu-se quase compelido a atendê-lo. A tentar abrigar o desejo de manter um tipo de paisagem urbana que era reconhecida como de inegável valor por, pelo menos, arquitetos e urbanistas. Paisagem urbana que seguramente estava ameaçada senão pelo centro de compras, limitado a um grande lote, pela recorrência de flexibilizações irrefletidas nos rígidos padrões legais que haviam desenhado os loteamentos que compunham a mancha de paisagem verde. Alterações muitas vezes conduzidas por interesses econômicos imediatistas e que não pensavam a cidade em suas especificidades culturais e em suas interrelações com o conjunto urbano. É neste contexto que se concretizaram os dois primeiros (e únicos) tombamentos de bairro jardim pelo Condephaat – Jardins e Pacaembu.

Inicialmente, é necessário lembrar que nos anos 1980 não havia conselho municipal de preservação e o próprio Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo encaminhava pedidos de tombamento ao Condephaat, já que não havia dispositivos municipais de preservação com esta perspectiva. Foi assim que se deu a preservação do Estádio do Pacaembu entre outros. O órgão estadual era considerado pelos cidadãos, como aliás ainda o é quase sempre, como último recurso de resistência contra mudanças intempestivas.

A partir da repercussão desses dois atos, o tombamento dos “Jardins” e do bairro Pacaembu, seguiu-se a demanda por preservação encaminhada por moradores de outras áreas de paisagens semelhantes. Muitos pedidos, que permaneceram aguardando avaliação, enquanto a dura etapa de como lidar com as intervenções representadas por reformas e novas construções nessas áreas ia sendo enfrentada.  Na falta de um modelo de controle do conjunto da paisagem, de conhecimento específico sobre a arquitetura de cada lote, de mecanismos que não cerceassem excessivamente o direito de proprietários, as regras inspiraram-se em procedimentos próprios às leis de zoneamento, funcionando paralelamente a esses dispostos municipais, mas criando restrições específicas.

Com relação aos demais pedidos de preservação, hoje, é possível perceber que o Estado, através de seu conselho de preservação, ainda que sem consciência plena, houve por bem não acatar mais nenhum pedido de tal complexidade, e “Jardins” e Pacaembu permanecem os dois únicos tombamentos efetivados. O sistema criado, porém, foi totalmente incorporado pela PMSP, agora já com seu próprio conselho municipal, o Conpresp, em muitas outras regiões da cidade com características semelhantes.

Mas, relembrando o primeiro tombamento de 1986: Quanta coragem e generosidade podem ser atribuídos ao Condephaat naquele momento. Porque não quanta ingenuidade?!  Da coragem de inovar e arriscar-se, resultou um legado: o inegável reconhecimento do valor dessa paisagem para cada vez mais cidadãos. A partir da interrupção de um ritmo irrefletido de destruição da cidade e, em particular de áreas com altas taxas de verde criou-se um tempo para que a sociedade acordasse para valores de paisagem que não teriam sobrevivido – grande e inegável contribuição.

Foto aérea da Avenida Brasil na década de 1930, imagem da 2ª edição
Foto divulgação

A consciência pela preservação de grandes setores urbanos de paisagem homogênea ameaçados pelas transformações no zoneamento era pequena, quase limitada aos moradores, interessados em manter as características das áreas em que viviam, e a profissionais do urbanismo. Os moradores destas áreas sentiam-se acuados e utilizavam o Condephaat como último reduto de acolhimento aos seus temores.  Ao mesmo tempo para empreendedores, cidadãos não envolvidos e mesmo membros do poder público, preservar era sinônimo de frear o progresso – e de um certo modo, esta ainda é uma das maneiras pelas quais o tombamento é visto.

Mas, assim como foi criado o conselho do município de São Paulo, outros tantos foram criados no interior do Estado e vão aos poucos se fortalecendo.  Associações de defesa dos interesses de grupos urbanos também nasceram, organizaram-se e adquiriram força. Hoje mesmo o político mais insensível pensa duas vezes antes de participar do processo de alteração de diretrizes que signifiquem a descaracterização de uma área de valor paisagístico.

Para o Condephaat, por outro lado, a tentativa de regulação e de controle das transformações dessas duas áreas na cidade de São Paulo, somada às análises das intervenções em zonas urbanas no entorno imediato das edificações tombadas por todo o Estado estão na origem de graves problemas do órgão, talvez até sejam parte do veneno que vem corroendo sua ação e comprometendo a efetividade dos tombamentos.

Se a coragem exigida para o tombamento dos “Jardins” teve o grande valor de permitir o tempo de salvamento de algumas estruturas urbanas, o tempo para que os cidadãos percebessem o valor de manter determinadas áreas protegidas do ritmo desregrado de alteração urbana e o tempo de criação de associações de moradores. A ingenuidade por sua vez não permitiu lembrar que o instrumento primordial para regulamentação urbana são as legislações criadas dentro de uma visão de planejamento, não permitiu prever tampouco a asfixia progressiva que acarretaria às suas possibilidades de atuar condignamente no amplo escopo de atribuições a que constitucionalmente está afeito.

As diretrizes dos tombamentos dos bairros-jardins foram criadas paralelamente às leis municipais, sendo que o instrumento legal baseia-se no decreto criado originalmente no Brasil nos anos 1930 para preservar igrejas, fortalezas sem uso e casas coloniais sem senhorios. E não para enfrentar o dinamismo complexo das grandes cidades contemporâneas. Ao sobrepor-se, além de criar pesado ônus para os cidadãos envolvidos que devem percorrer várias instâncias para aprovar seus projetos, também se deu pouco valor ao conhecimento acumulado nas leis de zoneamento, e em um dado que lhes é inerente e fundamental, a revisão crítica, seguida por flexibilizações periódicas.

A principal consequência cruel dessa ação para o Condephaat foi a de que a dedicação exigida para a análise de intervenções em lotes desses bairros jardins e das áreas urbanas no entorno de bens tombados tem sido de tal ordem que pouca energia sobra para se exercer suas outras funções primordiais. As de identificar novos exemplares representativos da cultura material paulista para serem preservados e zelar pela conservação dos bens já eleitos. Lembrando ainda a necessidade sempre adiada de sensibilização e esclarecimento dos cidadãos para o valor de seu patrimônio cultural, tarefa para qual o ato do tombamento isoladamente não conseguirá jamais ser suficiente.

Acresce-se aí que a também benéfica e inegável organização da sociedade civil obtida após a Constituição de 1988, em cada vez mais poderosas associações de moradores alicerçadas pelo Ministério Público, tem paradoxalmente funcionado como estruturas algozes dos órgãos de preservação. Suas  demandas exigentes e, muitas vezes insensíveis, dificultam, se não impedem,  necessárias revisões de desacertos das primeiras regulamentações de tombamento, feitas na urgência de impedir descaracterizações irreversíveis.

Há ainda outras dimensões da preservação sempre adiadas, por um lado identificar exemplares arquitetônicos a serem destacados individualmente por sua representatividade no panorama da arquitetura residencial urbana do século 20. Por outro a inegável necessidade de equilibrar legalmente os valores coletivos que esses exemplares assumem e os direitos individuais de quem os possui.

São todos aspectos percebidos no convívio diário com as contradições entre o que se pretendeu preservar, o espírito que regeu a decisão de tombamento: o caráter modelar e histórico dado pelo valor das experiências pioneiras de uma paisagem. Paisagem rarefeita, percebida em seu conjunto, e que equilibra os volumes, cheios e vazios, áreas construídas e massas verdes em contraste com a cidade vertical, densa e sempre mutante e o que se vem efetivamente exercendo: o controle minucioso de taxas de ocupação, recuos e determinação de espécies arbóreas.

Ao concluir o trabalho acadêmico, e mesmo ao lançar esse livro anos atrás, tinha aprendido muito sobre a constituição histórica dos bairros verdes de São Paulo e sobre a arquitetura residencial da primeira metade do século 20. Pouco tinha avançado no entendimento sobre como exercer sua preservação. À época, ao concluir a Tese de Doutorado, ainda que cobrada por alguns, não ousei manifestar-me sobre a preservação do Jardim América e seus vizinhos. Hoje posso esboçar estas reflexões críticas.

Mais de um quarto de século depois da preservação oficial dos “Jardins”, reconheço o grande e inegável benefício que o tombamento significou para a valorização dessas paisagens. Porém, tendo observado o rumo tomado pela tutela e desdobramentos desse ato oficial, sou obrigada a mencionar também o que vejo como o grande ônus que representou para o instrumento e para as instituições que o aplicam na cidade de São Paulo.

Mapa do Jardim América, com a evolução cronológica da sua ocupação, das cores mais claras, indo para as mais fortes, de 1917 à década de 1940
Imagem divulgação

Assim como o tombamento de Jardins e Pacaembu promoveu positivamente o debate e a consciência necessárias à preservação desse tipo de paisagem, promoveu excessos, desviou-se em minúcias de dimensões de lotes e restrições de fundo de quintal.

A corroborar que o enorme desgaste para  dia a dia dos órgãos de preservação e para os cidadãos diretamente envolvidos hoje talvez seja excessivo e mesmo desnecessário está a constatação de que a comparação entre as mudanças e manutenção da paisagem havidas em bairros jardins tombados e não tombados, não é significativa. Apenas as regras de zoneamento, herdadas do projeto elaborado pela Cia. City, e ações propositivas de controle de trânsito levadas ao cabo por associações de moradores no Alto de Pinheiros, por exemplo, foram suficientes para a preservação da paisagem que tanto se valoriza. Talvez com mais eficiência que o que se obteve com a sobreposição de tombamentos estadual e municipal e de zoneamento em “Jardins” e Pacaembu. É possível verificar que, ao menos nas regiões citadas, não há diferença expressiva entre as duas realidades – zonas tombadas ou não.

Se há mudanças significativas, essas se dão mais por agentes tais como fluxo mais ou menos intenso de trânsito, maior ou menor proximidade com o centro e com zonas valorizadas pelo mercado imobiliário, alteração do perfil de moradores significando demolição e construção de novas casas ou ainda invasões veladas por comércio e serviços. Esse último fenômeno, aliás, bem mais presente nos bairros tombados, Jardins e Pacaembu, do que, por exemplo, em Alto de Pinheiros e nas regiões preservadas como de uso residencial no Alto da Lapa.

Outra observação a indicar que quem melhor detém os instrumentos de regulação de amplos aspectos urbanos são as municipalidades é dado em outro contexto: o banimento dos excessos de propaganda da paisagem da cidade  de São Paulo. Esse assunto exigira muito e desgastara órgãos de preservação, com resultados sempre muito limitados no espaço e no tempo. O tema, com ganhos incontestáveis para a paisagem urbana, foi resolvido em São Paulo por legislação municipal, na conhecida “Lei Cidade Limpa”, aliás realizada em discussões das quais estiveram alheios os órgãos de preservação que não participaram de sua elaboração, embora tivessem experiência prévia no assunto.

Assim, reconhecendo que os maiores objetivos da preservação pretendida quando do tombamento pioneiro dos “Jardins”: a inegável interrupção do processo de destruição de características essenciais dessa área e a atribuição de valor ao tipo de paisagem foram alcançados, creio que uma etapa foi concluída.  E verificando o sacrifício de tempo e de pessoal técnico que a aprovação de intervenções nas construções dessas grandes zonas tem imposto aos órgãos de preservação, ouso sugerir que estes retornem às suas funções de identificação e manutenção de bens com dimensões controláveis através de seu instrumento legal – o tombamento.

Ouso pensar que assim haverá melhores condições para que os órgãos de preservação busquem alternativas para fortalecimento desse dispositivo, divulgação de seus princípios e das justificativas de suas escolhas e que busquem, ainda, alternativas para garantir a efetiva preservação material dos bens escolhidos. Que colaborem elucidando seus parâmetros e propósitos e criando formas de delegação e interação solidária com os órgãos de planejamento, mas deixando a gestão do espaço urbano, a fiscalização minuciosa das intervenções, dos usos dos imóveis e das zonas passíveis de adensamento para as instâncias municipais.

Quem sabe assim poderão cuidar do patrimônio cultural com perspectivas mais amplas e parâmetros mais gerais e próprios, reassumindo seu papel de antecipar-se e propor novos temas para valorização pública.

nota

1
O presente texto é a apresentação da segunda edição do livro.

sobre a autora

Silvia Ferreira Santos Wolff é arquiteta formada pelo Mackenzie, mestre, doutora em História da Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP e funcionária do Condephaat.

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