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Resenha de Abilio Guerra comenta o filme “Visages, Villages”, documentário sobre a viagem dos artistas Agnès Varda e JR por cidadezinhas do interior da França.

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GUERRA, Abilio. Visages, Villages. As faces e as aldeias francesas registradas por Agnès Varda e JR. Resenhas Online, São Paulo, ano 17, n. 194.02, Vitruvius, fev. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/18.194/6883>.


Tendo a cigarra em cantigas
Passado todo o verão
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.

Não lhe restando migalha
Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.

Rogou-lhe que lhe emprestasse,
Pois tinha riqueza e brilho,
Algum grão com que manter-se
Té voltar o aceso estio.

– “Amiga”, diz a cigarra,
– “Prometo, à fé d'animal,
Pagar-vos antes d'agosto
Os juros e o principal”.

A formiga nunca empresta,
Nunca dá, por isso junta.
– “No verão em que lidavas?”
À pedinte ela pergunta.

Responde a outra: – “Eu cantava
Noite e dia, a toda a hora”.
– “Oh! bravo!”, torna a formiga.
– “Cantavas? Pois dança agora!”

A cigarra e a formiga, tradução de Bocage

A antiga fábula do poeta grego Esopo, escrita cerca de cinco séculos antes de Cristo, reescrita pelo moralista La Fontaine no século 17 e disposta acima na tradução do poeta português Bocage do século seguinte, atravessa os milênios com sua pergunta incômoda acerca do papel social do artista. A fartura de alimentos no verão permite à alegre cigarra divertir-se à farta, mas o inverno chega e cobra alto a falta de previsão. A prudente formiga, que acumula durante o ano, pode desdenhar da amiga devassa no recôndito do seu abrigo aquecido. A moral da história – quem é precavido e sensato se sobrepõe a quem é libertino e desregrado – pode ser facilmente ampliada para a própria vida, onde o inverno ocupa o lugar da velhice.

O filme Visages, Villages, documentário realizado pela cineasta Agnès Varda e pelo artista visual JR (1), de uma beleza rara nos dias correntes, é uma espécie de enésima versão da fábula da cigarra e da formiga; versão tardia, contudo, ensopada de existencialismo aos moldes de Albert Camus, que diante do suicídio como resposta a uma existência sem sentido, opta pelo milagre da vida, mesmo que destituído de qualquer valor transcendente.

Fotograma de Visages, Villages, filme de Agnès Varda e JR
Foto divulgação

Agnès Varda, belga de nascimento, radicada há muito na França, onde construiu trajetória vigorosa e vencedora dos prêmios mais importantes do cinema – Leão de Ouro de Veneza, Palma de Ouro de Cannes, César e o Oscar pela trajetória –, se associa ao fotógrafo Jean Réné – o “JR”, seu pseudônimo artístico – para rodar um filme ambientado nas aldeias do interior francês, onde o rural e o industrial se encontram na vida cotidiana. Em conversa no início do filme, os dois artistas estabelecem as regras para a realização e fica clara a abertura para o acaso, o eventual, o episódico, sem roteiro prévio, seja do filme, seja do percurso, que será feito no interior do curioso caminhão de JR, um misto de utilitário e estúdio fotográfico.

Fotograma de Visages, Villages, filme de Agnès Varda e JR
Foto divulgação

A narrativa se enquadrada no gênero dos filmes de viagens – os road movies – iniciado por Sem Destino (“Easy Rider”, de Dennis Hopper, 1968) e com pontos altos em películas como Priscila, a rainha do deserto (“The Adventures of Priscilla, Queen of the Desert”, de Stephan Elliott, 1994), Paris, Texas (Win Wenders, 1984) e Família rodante ("Rolling Family", de Pablo Trapero, 2004). Nesses filmes, ao se percorrer o território, se vê a contínua transformação da paisagem circundante e a constante renovação dos personagens secundários. Visages, Villages se beneficia também de estratégias da rapsódia, gênero literário que encadeia pequenas narrativas com começo, meio e fim, que se juntam para amoldar uma macro-narrativa (no Brasil, os casos mais famosos são Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, e Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade).

Fotograma de Visages, Villages, filme de Agnès Varda e JR
Foto divulgação

As pequenas histórias de Visages, Villages são deliciosas, transbordam de emoção e graça, que levam às lágrimas disfarçadas e aos risos contidos da plateia. Mas qual seria a macro-narrativa que unirá os recortes em uma colcha de retalhos? Em se tratando de um documentário, podemos nos apoiar no que dizem os dois diretores, roteiristas e protagonistas principais do filme – mesmo que possamos assumir a dúvida presente nos filmes de Eduardo Coutinho, onde é tênue a linha que separa ficção da realidade. A partir desses depoimentos e da montagem final do filme é possível detectar ao menos três planos de articulação da obra.

Fotograma de Visages, Villages, filme de Agnès Varda e JR
Foto divulgação

“É isso que proponho: capturar o máximo de imagens antes que tudo se esvaneça”, diz Agnès Varda. Assim, aponta o primeiro plano de articulação do filme: o mergulho no interior profundo do país para registrar a vida coletiva dos pequenos aglomerados. Ali, as relações de sociabilidade contam com qualidades e defeitos fundados em valores arcaicos raros ou extintos nas grandes cidades. Assim, a solidariedade, a espontaneidade e a simplicidade condimentam a vida pacata dos pequenos núcleos, onde os habitantes se conhecem pelo nome e se identificam pelo papel que cumprem na comunidade – ou seja, pela profissão. Ao registrar cada personagem inserido no contexto do seu trabalho, Agnès e JR se portam como cigarras dispostas a contar histórias das laboriosas formigas.

Fotograma de Visages, Villages, filme de Agnès Varda e JR
Foto divulgação

O registro não se limita à superfície das atividades profissionais, mas revela valores e sentimentos que as motivam ou as justificam, de forma consciente ou inconsciente. “Fico me perguntando o que ela vai sentir quando estas casas forem demolidas”, comenta JR, sentado ao lado de Agnés em um banco de praça pública, ambos mirando as antigas casas de mineiros, construídas em tijolos, agora desabitadas. A fala se refere a uma viúva que resiste ao despejo. “É muito difícil abandonar nossa casa”, diz Agnès em outro contexto, mas uma resposta possível à pergunta do companheiro de viagem. Aqui se revela o segundo plano de articulação do filme: registrar o quanto cada trabalhador carrega de sagrado e elevado em um mundo desencantado, mostrar o lado cigarra de cada formiga. O episódio rodado na localidade mergulha na memória da mineração, denuncia o trabalho duro nas profundezas da terra, o retorno dos operários extenuados para casa, o banho demorado para extrair a fuligem negra grudada na pele, o convívio com mulher e filhos, o alimento parco e compartilhado. Toda essa faina coletiva de gerações se afunila na figura solitária da viúva, guardiã da memória e da resistência de um modo de vida fadado à desaparição.

Fotograma de Visages, Villages, filme de Agnès Varda e JR
Foto divulgação

Da pesquisa realizada pelos dois artistas resultam fotografias de grande formato afixadas sobre as fachadas das casas condenadas: homens vestidos para o trabalho, numa primeira instalação; e uma segunda, com o rosto da viúva estampada na própria casa. Aqui temos o terceiro plano de articulação do filme: a produção de obras para lugares específicos – manifestações típicas da site specific art –, planejadas caso a caso após o contato preliminar com a realidade local. Diante de uma instalação já finalizada, Agnès Vardam explica a um trabalhador como registra, de forma livre e artística, o trabalho alheio. Sorri e diz: “o objetivo é o poder da imaginação”.

Assim, cada episódio da rapsódia se estrutura dentro da mesma lógica narrativa – a chegada a uma cidadezinha, a relação com os trabalhadores da localidade, a seleção de personagens e temas síntese, o desenvolvimento e instalação de uma ou mais obras de arte, o retorno à estrada. A operação é complexa, demanda planejamento, recursos e infraestrutura, passos que se tornam mais árduos graças ao improviso do roteiro de viagem, que demora dezoito meses para ser cumprido. JR, responsável pelas instalações, conta com equipe de apoio para medir os suportes, investigar as condições de aplicação dos painéis fotográficos, resolver pendências burocráticas e institucionais etc. Na realização das obras se trabalha muito; as cigarras, portanto, na verdade são formigas diligentes e aplicadas.

Fotograma de Visages, Villages, filme de Agnès Varda e JR
Foto divulgação

Um dos muitos episódios do filme exemplifica os três planos de articulação do filme, além de puxar o fio que nos conduzirá ao final dessa resenha. Em uma pequena cidade litorânea, a trupe se depara com um bunker construído pelos nazistas durante a ocupação da França na Segunda Guerra Mundial. O enorme de bloco de concreto despencou de uma falésia e se fincou inclinado na areia da praia. Em conversa com a dupla de artistas, o prefeito da cidade comenta de forma tímida que a peça arqueológica estava correndo o risco de cair e provocar um acidente grave, o que o levou a jogá-lo na praia; ao final, confidencia satisfeito: “adorei o resultado, pois parece uma enorme obra de arte”. Decidem pelo bunker como suporte da instalação e revelam o processo criativo: após descartarem uma fotografia de homens nus recostados em construção arruinada, optam por outra foto antiga de Agnès realizada na região. Diferente das outras instalações, tributárias da interação com os habitantes e o meio local, o resultado final se apoia na memória individual da artista, assumida como memória dos próprios moradores da região.

Fotograma de Visages, Villages, filme de Agnès Varda e JR
Foto divulgação

Devido a maré, a montagem da obra é uma operação complexa. A fixação da fotografia deve se realizar antes do mar subir e submergir parte da estrutura de concreto. A finalização é exitosa, mas ao voltar no dia seguinte a equipe descobre que o mar levou embora a imagem magnífica. A obra de arte não dura sequer um dia inteiro e o apagamento da fotografia sinaliza a condição de efemeridade da arte instalada no território – JR é especialista em criar grandes galerias de arte em espaços livres –, mas também revela a transitoriedade de todas as coisas humanas diante a temporalidade infinita da natureza, tema desenvolvido em outro episódio. Em outra localidade, após ser fotografado, o hippie Pogé apresenta sua casa-instalação, construída longe de tudo e de todos. Sua aparente alienação se torna lucidez extrema ao revelar o básico necessário à vida: paz, tranquilidade e um silencioso trabalho de conversão dos restos da sociedade industrial em talismãs que enlaçam sua vida terrena ao cosmos. Uma cigarra-formiga ou, quem sabe, uma formiga-cigarra.

Fotograma de Visages, Villages, filme de Agnès Varda e JR
Foto divulgação

Agnès Varda, nascida em 30 de maio de 1928, está prestes a cumprir noventa anos de idade. Com doença degenerativa nos olhos, colabora no filme com a inteligência, a experiência, a perspicácia, o bom humor, a memória. JR, nascido em 22 de fevereiro de 1983, está no vigor dos seus quase 35 anos de idade, que chegarão em menos de uma semana. Ele monopoliza os olhos da dupla e fotografa as coisas para que elas “não se percam logo nos buracos de minha memória”, segundo Agnés. Na relação fraterna que estabelecem aos poucos sobra espaço para farpas amistosas, várias delas relacionadas aos olhos, órgãos fundamentais aos cineastas e aos fotógrafos. Em um momento, JR brinca sobre as “rugas bonitas” que recortam os olhos de Agnés; em outro, ironiza sobre como ela é feliz apesar de “enxergar tudo fora de foco”, recebendo de imediato o troco inteligente e bem humorado – “você vê tudo escuro e está contente”, alusão ao óculos escuros que o rapaz se nega a tirar.

Fotograma de Visages, Villages, filme de Agnès Varda e JR
Foto divulgação

Densos, inteligentes, os artistas estão visivelmente à vontade nas cenas, e o relacionamento amistoso que estabelecem de início vai se solidificando em amizade, o que abre espaço para o compartilhamento de intimidades e confidências. JR leva a amiga para conhecer a avó de quase cem anos; Agnès retribui e leva o amigo para conhecer o “menor cemitério do mundo” onde está enterrado Henri Cartier-Bresson, para o jovem artista o cara que fez a foto “do homem pulando a poça d’água”. Por fim, a cineasta ousa levá-lo à casa do seu amigo Jean-Luc Godard, história que não conto aqui, mas não deixo de adiantar a intensa dramaticidade alcançada pela cena. 

Fotograma de Visages, Villages, filme de Agnès Varda e JR
Foto divulgação

A enorme diferença de idade entre os dois artistas é o mote para diversas situações, onde a ingenuidade de um tem como contraponto a decrepitude da outra. A morte aparece de forma velada ou explícita ao longo do filme, rondando os moradores das aldeias, as profissões, os comportamentos, os modos de vida, mas também a cineasta, personagem principal do documentário. Desse ponto de vista é possível vislumbrar um segundo sentido – a própria morte – para a fala já citada de Agnès Varda: “é isso que proponho: capturar o máximo de imagens antes que tudo se esvaneça”. O tema ressurge na pergunta direta de JR – “você tem medo da morte”? – e se sublima em obra de arte, com fotografias gigantescas dos olhos, pés, mãos e braços de Agnès aplicadas aos vagões de uma composição. “Esse trem irá a vários lugares aonde você jamais irá”, afirma JR.

Fotograma de Visages, Villages, filme de Agnès Varda e JR
Foto divulgação

nota

1
Visages, Villages. Direção e roteiro de Agnès Varda e JR. França, Fênix Filmes, 2017, 89 min. Com Agnès Varda e JR.

sobre o autor

Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.

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