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Abilio Guerra faz resenha caótica sobre o filme Bacurau, tentando desvendar pelo avesso os mecanismos paródicos presentes na tessitura narrativa da obra de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.

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GUERRA, Abilio. Deus e o diabo no Fausto de Goethe. Ou sobre quando Bacurau deglutiu Hans Staden. Resenhas Online, São Paulo, ano 18, n. 212.06, Vitruvius, ago. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/18.212/7458>.


Se você, cara leitora, for ver o filme Bacurau (1), obedeça a advertência do Ministério da Sanidade Cultural: “use psicotrópicos com moderação!”

O filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles é uma viagem alucinada e alucinógena pelas realidades do país – a realidade histórica e a realidade realidade. Um filme que só mostra mentiras para falar a verdade. Penso melhor e concluo que não é uma definição adequada, então tento outra: Bacurau é um filme que só mostra verdades que parecem mentiras. Creio que ficou melhor, mas ainda não está perfeita. Tento mais uma vez: Bacurau é um filme que deveria ser a verdade.

Para não cometer spoilers – afinal, todos, todas, todXs e até você que me lê, cara leitora, vão assistir ao filme, pois eu estou mandando –, vou então me restringir às verdades que são verdades, portanto aos aspectos que não aparecem no filme. Tento despistar: Bacurau é um reconto de Os sertões de Euclides da Cunha. Os sertanejos estão lá no fim do mundo, num lugar que nem no mapa está – e só vai entrar depois do destino trágico –, seguindo seu destino, pacatos, cordatos, amorosos, tocando viola e cantando a vida corriqueira, fazendo sexo gostoso, algo semelhante a um meio termo entre a cordialidade sergiobuarquiana e a sensualidade gilbertofreyriana.

Eis que os astutos brancos praieiros da capital decidem liquidar aquela gente que eles ouviram dizer não simpatizar com a República, mas babar pelo Império. E segue a primeira expedição, formada por gatos pingados e derrotada sem sequer avistar Canudos, e vão a segunda e a terceira expedições, liquidadas sem sequer avistarem a túnica encardida de Antônio Conselheiro. Não tinham levado em conta que metamorfose é possível também na beirada do Vaza-barris, que sertão pode virar mar, que sertanejo pode virar jagunço, que pasmaceira pode virar chacina. E, quando vai partir a quarta tropa, o sinal da torre digital se mistura com outra frequência e as tropas federais se encontram com os cangaceiros liderados por Lampião e Maria Bonita, matam todos, lhes cortam as cabeças, as expõem em praça pública. Eu avisei, cara leitora, para evitar psicotrópicos…

O sinal correto volta a funcionar, irradia a mensagem certa e certeira, segue a quarta expedição do exército estrangeiro – e seria importante uma explicação histórica para se entender melhor minha narrativa: não existe nada mais estrangeiro para essa gente insulada, falante de um idioma próprio, do que um exército liderado por brancos que falam português castiço –, exército por sinal só não mais arrogante do que mal adestrado, mas fortemente armado, com armas capazes de matar mais pessoas do que o total de toda aquela gente.

A quarta expedição, armada até os dentes, com gentes de todas as cores e fardamentos, destroça Canudos, mata todos os homens com barba e até alguns sem barba, sobram poucas mulheres e crianças. Ódio sem igual, parece que estavam tomados pela vontade de matar. Euclides da Cunha – ex-militar, agora jornalista, ex-darwinista social, agora escritor de uma narrativa cheia de empatia com os retardatários – acaba sua epopeia trágica de forma melancólica, reclamando que não era necessário o genocídio. E o filme acaba.

Na verdade, acaba meu filme imaginário. Bacurau é tudo ao contrário, invertido, de ponta-cabeça. Não é uma vila insulada, mas conectada pelas redes da modernidade; não é invadida por brancos sulinos, mas por brancos nortistas ainda mais branquelos; seus moradores são tão pobres quanto, mas, altivos, não baixam a cabeça, muito menos curvam as costas diante da cartilha sebosa de Antonio Conselheiro; e – me permita um semi-spoiler, cara leitora – prezam muito por suas cabeças devidamente presas nos próprios pescoços. O final – bem, o final não é tão difícil de imaginar…

Os diretores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, também roteiristas, brincam de Tarantino – que ousou matar Adolf Hitler antes da hora em Bastardos inglórios. Em Bacurau, ousam contrariar a história verdadeira, que insiste em se repetir, em encenar o mesmo enredo onde os mocinhos são os Outros, e o “Nós” é feito de bandidos. Bacurau se insinua e se materializa no mapa secreto de nossos afetos, de nossos desejos, torna-se localidade mitológica onde nos sentimos nós mesmos, donos de nosso destino, narrando nossa história com nossa língua. E que coincidência assistir um filme tão iluminado um dia depois do anúncio do Apocalipse em São Paulo, quando pesadas nuvens tornaram quatro da tarde em madrugada fechada!

Um filme catártico, que causa empatia e simpatia, regozijo e satisfação, onde se ri em profusão. E não se ri de medo, não se ri de susto. Ouso dizer que se ri de prazer. Se obras de arte têm algum poder em transformar a realidade, seria melhor que ao invés de formar fila indiana para pedir asilo na República do Recife, a gente tome vergonha na cara e comece a reescrever nossa história na métrica que queremos. Talvez sobre sangue para usar como tinta.

Post Scriptum

Emprestei e não vou devolver o título do livro de Haroldo de Campos para encabeçar esse arremedo de resenha cinematográfica. Aliviando para o lado de Goethe, acusado de plágio, o mestre paulista afirma a potência da paródia e o direito ao saque da arte alheia, afinal essa sempre é bem comum da humanidade. Campos evoca as palavras do poeta alemão:

"Não pertence tudo o que se fez, desde Antiguidade até ao mundo contemporâneo, de fure, ao poeta? Por que ele haveria de hesitar em colher flores onde as encontrasse? Somente se pode produzir algo grande mediante apropriação dos tesouros alheios. Eu não me apropriei de Jó para Mefistófeles e da canção de Shakespeare?” (2).

Assim é justo que eu roube Haroldo de Campos na cara dura, e que a dupla Mendonça-Dornelles exproprie nossa rica cultura sertaneja, tanto a boazinha da viola, como a maldosa do cangaço. Não tem não líder místico milenarista, afinal na Canudos parodicamente renovada de Bacurau tem luz elétrica, motocicleta, celular e Sonia Braga de médica, meio cientista, meio bêbada, bonita como ela só, vestindo pele nova encarquilhada. No filme tem até alemão de verdade – Udo Kier – a contrabandear para o sertão a maldade tola de cada dia que caracteriza o capitalismo globalizado, maldade convertida em rastilho de pólvora que incendeia a tudo e a todos, que converte sertanejo em jagunço apetrechado das conquistas modernas, que ressuscita cangaceiro em corpo melado de erotismo pagão.

Em Bacurau se vê também referências a Glauber Rocha e seu filme magistral, Deus e o diabo na terra do sol, de 1964, que por sua vez havia picado, transformado em comida típica e deglutido sem cerimônia a premiada película de Anselmo Duarte, O pagador de promessas, de 1962, e o cerimonioso – mas também plagiário, como já tive a oportunidade de comentar em outra ocasião – Os sertões, de 1902, de Euclides da Cunha (3). Como diz o ditado popular, “ladrão que rouba ladrão merece cem anos de perdão”.

Para finalizar, não custa lembrar a forma esperta com que Campos justifica o roubo seguido de arte:

“Do seus direitos paródicos, ou seja, da plena assunção daquilo que se poderia chamar movimento plagiotrópico da literatura (também no sentido etimológico, do gr. plágios), derivação por ramificação ‘oblíqua’, como em botânica se diz do esgalhar de certas plantas, Goethe mostrou-se, de resto, plenamente consciente, ao rebater com a altanaria uma censura de Byron, que o acusou de ter ‘plagiado’ a canção de amor da louca Ofélia (Hamlet, IV, 5), na cena em que Mefistófeles canta, acompanhando-se de cítara, em frente à casa de Margarida (Nacht. Strasse vor Gretchens Türe). Respondeu Goethe: ‘Então meu Mefistófeles entoa uma canção de Shakespeare? E por que não poderia fazê-lo? Por que eu me deveria dar ao trabalho de encontrar algo próprio, quando a canção de Shakespeare cabia à maravilha e dizia exatamente aquilo que era preciso?’ (a Eckermann, em 18.1.1825)” (4).

notas

1
Bacurau, ficção, Brasil/França, 2019, 2h12min. Direção e roteiro de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Com Sônia Braga, Barbara Colen, Sônia Braga, Udo Kier.

2
CAMPOS, Haroldo de. Deus e o diabo no Fausto de Goethe. São Paulo, Perspectiva, 1981, p. 76.

3
Ver o subcapítulo “A trilogia taineana em Euclides da Cunha” no livro: GUERRA, Abilio. O primitivismo em Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Raul Bopp. Origem e conformação no universo intelectual brasileiro. Coleção RG bolso, volume 3. São Paulo, Romano Guerra, 2010, p.116-128.

4
CAMPOS, Haroldo de. Op. cit., p. 75.

sobre o autor

Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.

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