Em abril de 2013, viajamos a San Francisco, na Califórnia, para participar da 43rd Annual Conference of the Urban Affairs Association. Tendo alguns dias livres, visitamos vários bairros de San Francisco e municípios vizinhos, mas nada nos chamou mais a atenção do que duas áreas particulares – Castro e Mission –, que são objeto do presente texto.
Nos anos 1970, o Castro foi progressivamente ocupado por indivíduos e firmas ligados ao Universo LGBT, devido à vacância de casas, gerada pela migração dos então residentes afluentes aos subúrbios, e à tendência desse grupo social aglutinar-se em áreas específicas de San Francisco, no período pós-Segunda Guerra Mundial. Seu principal logradouro, Castro Avenue, deixa claro que se trata de um território LGBT, mas não de um gueto – para quem sai da área central, chegar ao Castro é receber uma lufada de hospitalidade.
Houve três sensações dominantes quando visitamos a Castro Avenue e adjacências, e outra bem diferente, quando saímos dessa área. Primeiro, há a clara tentativa, por parte da prefeitura e organizações não governamentais, de “patrimonializar” o Castro, através de pequenos roteiros turísticos, memoriais a ícones do Universo LGBT norte-americano e criação de The LGBT History Museum. Ele funciona como centro patrimonial, centrado na trajetória do Universo LGBT de San Francisco (indivíduos, movimentos sociais, políticas públicas etc.) É como se o Castro fosse uma espécie de repositório da identidade e conquistas de um grupo social que, mesmo em San Francisco, ainda sofre corriqueiramente ataques homofóbicos.
Segundo, as fachadas e janelas das casas funcionam como vitrines para o ativismo político; a exigência de direitos iguais para todos e os direitos das minorias impõem-se, no conjunto de mensagens. Além das bandeiras do Movimento LGBT, veem-se cartazes, bonecos e pôsteres exibindo mensagens de cunho libertário e de reivindicação de direitos.
Terceiro, o comércio varejista é uma atração à parte. Como se trata de um bairro turístico e relativamente afluente, encontra-se o composto de sempre: floriculturas, cafeterias, bares e restaurantes, mercados sofisticados etc. Contudo, muitos negócios fazem referência ao Universo LGBT, através de placas e bandeiras do movimento; também não faltam sex shops e varejistas de roupas, com claras referências e produtos voltados a esse grupo social.
Contudo, ao sair da área turística, outro ponto fica claro: o quanto o Castro é parecido – em muitas ruas, praticamente igual – a outros bairros da cidade. Em cinco minutos de caminhada, a partir da Castro Avenue, chegamos a ruas tomadas por casas de arquitetura vernacular, com suas características bow windows, e comércio varejista ligado às necessidades cotidianas. Em uma ou outra casa, destaca-se um pequeno cartaz colado na janela, de suporte ao Universo LGBT. E só. No que tange o meio urbano, o bairro não reproduz a impressão deixada pela Castro Avenue e adjacências. E reforça nosso conceito de que, para além dos atavismos e hábitos culturais particulares, somos todos iguais – e merecemos ter o mesmo conjunto de direitos.
O Bairro de Mission District conta com a maior concentração de latino-americanos da cidade; isso transparece nos residentes, comércio local e na arte de rua, principalmente nos grafites. Alguns logradouros, principalmente vielas, transformaram-se em galerias a céu aberto, com murais que retratam desde a Primavera Árabe até os movimentos sociais contra a gentrificação do bairro, que caminha a passos largos. O interesse de visita é óbvio; somos brasileiros e latinos, e gostamos de arte e arquitetura.
No bairro, chamou-nos a atenção a existência de vários centros comunitários; aqui, sua função é marcadamente prover um espaço de lazer e reunião aos residentes locais. O comércio varejista é dominado por pequenos negócios, com uma pletora de restaurantes mexicanos – muito diferentes dos da rede Chipotle, comuns em San Francisco. Pequenas lojas vendem artigos com motivos latino-americanos; contudo, nada se encontra do Brasil, talvez porque nós mesmos, sem perceber, nos consideremos “à parte.”
O mais interessante da visita a Mission District são os painéis e murais, como já comentado. Alguns têm alto valor estético; praticamente todos buscam chamar a atenção para problemas econômicos e sociais, no distante Oriente Médio ou logo ali, a poucas quadras do local. Em comum, eles têm a utilização de uma estética do choque, a denúncia a mazelas e injustiças sociais e um caráter revolucionário, de transformação; não por acaso, é comum ver cartazes abertamente anticapitalistas.
Há, em Mission, um fenômeno perverso, que tem acontecido, com certa frequência, em várias outras partes do Mundo. A concentração de artistas, o ambiente multicultural, as festas de rua, a alegria e hospitalidade dos residentes latino-americanos e descendentes; tudo isso chama a atenção de empresários e profissionais de firmas “ponto com,” que para lá têm se mudado, desde os anos 1990. Isso fez com que o número de latino-americanos e descendentes, em 2011, fosse 20% menor do que há vinte anos atrás, segundo algumas notícias de jornal, devido ao aumento do preço dos imóveis.
Ou seja, a migração de indivíduos afluentes tem expulsado do bairro os elementos que, em um primeiro momento, motivaram essa migração: artistas, latino-americanos e descendentes, comércio varejista independente etc. Não é algo novo nem original; Friedrich Engels, em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, já aponta a substituição de residentes pobres e miseráveis por membros da burguesia, mesmo que dentro de contextos muito diferentes.
Contudo, em Mission, a gentrificação assume uma forma particularmente perversa; em um bairro com esse nome, os latino-americanos estão sendo expulsos por indivíduos afluentes – alguns bilionários, inclusive – em busca de seu ambiente multicultural, alegre e independente. Talvez devêssemos prestar mais atenção em alguns painéis e murais do bairro.
Por fim, fazendo jus ao título do texto, não se pode deixar de comentar sobre as pessoas encontradas. E não se trata de arquétipos. Em The LGBT History Museum, conversamos longamente com a funcionária presente, que nos falou sobre a atual cena LGBT de San Francisco, bem como sobre as parcerias com organizações e equipamentos culturais similares de mais de uma dezena de países. No Castro, foi um alívio falar português e portunhol com residentes locais e comerciantes, e entender as recentes transformações do bairro.
Infelizmente, as alteridades e luta por direitos, no Castro e Mission District, convivem com a presença constante de população em situação de rua, em parques e praças. Atestando David Harvey, em Condição pós-moderna, o respeito às alteridades, tão caro à pós-modernidade, convive com a crescente polarização social. A última notícia de jornal lida, ainda em San Francisco, relatava que o corte de repasses federais à cidade seria refletido no corte de assistência à supracitada população. Nada mais pós-moderno.
sobre os autores
André Fontan Köhler é professor Doutor do Curso de Bacharelado em Lazer e Turismo da EACH/USP. É bacharel em Administração e mestre em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP. É doutor em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/USP, e participa do grupo de pesquisa Da soCIeDADE moderna à pós-moderna: permanências, rupturas, conflitos. Principais interesses de pesquisa: políticas urbanas e turismo cultural e urbano.
Maria Carolina Maziviero é professora Doutora do Curso de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo da USJT. É bacharel (UEL), mestre e doutora (FAU/USP) em Arquitetura e Urbanismo; participa do grupo de pesquisa Da soCIeDADE moderna à pós-moderna: permanências, rupturas, conflitos. É líder do grupo de pesquisa Urbanismo na era digital (USJT). Principais interesses de pesquisa: urbanismo algorítmico e paramétrico, projetos urbanos contemporâneos, desenvolvimento urbano e políticas públicas.