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architectourism ISSN 1982-9930

Uxmal, México. Foto Victor Hugo Mori

abstracts

português
Lincoln Paiva conta as peripécias que viveu ao visitar o Peru pela primeira vez, nos anos 1980.


how to quote

PAIVA, Lincoln. Quando Gauguin virou Van Gogh. Uma viagem fantástica ao Peru. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 131.02, Vitruvius, fev. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.131/6872>.


No final dos anos 1990 eu acumulei milhas aéreas suficientes para fazer uma viagem para qualquer país da América do Sul. Chega um envelope da companhia aérea pelos correios comunicando que as milhas expirariam em uma semana; era usar ou perder. O Peru, que não conhecia, parecia-me um território misterioso, diferente dos países que eu havia visitado na América do Sul – Argentina, Chile e Uruguai. Algumas pesquisas pela internet e pimba! – a aventura peruana selou o meu destino e dali uma semana desembarcaria em Lima pela primeira vez e ficaria lá durante uns quinze dias.

Pelo Google eu consigo uma pousada num bairro pequeno, duas quadras apenas; com cul-de-sac, um lindo conjunto de casarões Art Decô dos anos 1920 e uma praça belíssima em frente, o bairro é quase uma volta ao tempo. A casa vizinha pertence à família Tristan e ali funciona a Casa Flora Tristan, homenagem à ativista feminista francesa de origem peruana que lutou em 1820 pelos direitos civis das mulheres, pelo divórcio, trabalho, voto etc... Ela já era famosa na França quando nasceu Aline, sua filha mais nova, que viria a dar a luz ao ilustre pintor Paul Gauguin. É a partir deste parentesco com o Peru que Gauguin gostava de falar que era selvagem...

Placa do Centro de La Mujer Peruana “Flora Tristan”
Foto Lincoln Paiva

Viagem marcada, pousada confirmada, serviço de transfer contratado. Não é o melhor momento para viajar; corre o inverno e Lima pode ser bem fria nesta época do ano, com temperaturas entre 9° C e 13°C, um gelo para quem está acostumado com o inverno tropical brasileiro. O Peru passa por um momento de hiperinflação, que coloca metade da população no trabalho informal; o plano econômico do então presidente mais jovem do mundo (Allan Garcia, 36 anos na época) leva o país para o fundo do poço. No Brasil, o câmbio é promissor – R$1,00 vale US$1,14 –, ou seja, com pouco dinheiro eu seria milionário no Peru. O avião pousa às 12h no aeroporto Jorge Chavéz em Callao, 10km de Lima. No desembarque, nenhuma placa com meu nome. Olho para todos os lados... Nada. Ninguém me espera.

Procuro um telefone público e ligo para a pousada. Horas depois chega uma Kombi; dentro, um tipo esquisitão, meio atrapalhado. Quando chego na recepção da pousada, o dono – um rapaz meio peruano, meio equatoriano, com aparência sino alguma coisa... – informa que havia entendido que a minha reserva era para o próximo mês, que todos os quartos já estão ocupados, mas que dará uma solução.

Ônibus comum em Lima 1998
Foto Lincoln Paiva

Depois de algumas ligações, o rapaz volta com uma proposta: eu ficaria por três ou quatro dias na belíssima “pousada” ao lado e, assim que fosse possível, ele conseguiria o quarto que eu havia contratado. Faço o check-in na pousada, a seguir os empregados levam minha bagagem para a outra pousada, enquanto permaneço no saguão aguardando ser chamado para subir ao quarto.

A Casa Branca

A pousada do lado é um enorme casarão Art Decô, pintado de branco, com imensos jardins. A atendente uniformizada vem me buscar no portão, e juntos passamos pela recepção de madeira e subimos por uma escadaria lateral de madeira maciça com degraus de mármore. No primeiro andar do casarão, o corredor com piso de madeira escura leva até o quarto posicionado no seu final. Nada mal, penso...

A casa branca atualmente
Imagem divulgação [Google Maps]

Quarto simples, grande, pé direito alto, com apenas uma cama de solteiro encostada na parede, colchão de mola, um travesseiro, um cobertor; não havia TV, telefone, criado mudo ou armários, nada... A janela está trancada; outra, pequenina, no canto superior da parede, está aberta, mas inacessível, para entrada exclusiva do ar. No quarto, apenas uma cama e a minha bagagem ao lado. A moça não fala nada, me entrega a chave – antiga, enorme, como aquelas de desenho animado – e antes de sair dá algumas instruções seriamente (acho graça): o banheiro fica do lado de fora e não tem chuveiro, à noite é necessário trancar o quarto, a mesma chave abre e fecha as portas do quarto e do banheiro, que precisa permanecer sempre fechada. E eu não devo sob hipótese alguma abrir outra porta, como também não devo andar após as 22h pelos corredores, pois as luzes seriam apagadas.

Crianças jogando futebol em frente ao casarão branco, 1998
Foto Lincoln Paiva

Na manhã seguinte, meu primeiro dia de sol no Peru. A manhã de inverno parecia promissora e era excitante estar em Lima. Na falta de compromisso, caminho pelo jardim para socializar com os outros hóspedes, mas a cada tentativa frustrada de conversa eles me encaram e saem correndo. Deve ser o meu espanhol horrível, suspeito.

Como não há restaurante, me dirijo ao portão e o encontro trancado com correntes e cadeados. Pergunto como sair para um hóspede, mas fico sem resposta: ele segura o portão com o rosto colado na grade, os olhos postos no horizonte. Retorno à recepção, peço para sair e um segurança abre o cadeado.

Na praça em frente, onde há uma escola, as crianças jogam futebol. Brasileiro que sou, peço para entrar num dos times. Ao me olharem o mundo congela de repente – sim, todas as crianças ficam imóveis, como se estivessem congeladas – por não sei quanto tempo. Eu tento pegar a bola, ninguém se move; de repente, todos eles caem na gargalhada. Eu fico ali no meio, parado, desentendido. Penso comigo: realmente meu espanhol é péssimo, nem as crianças me levam a sério.

Os primeiros dias passam assim: acordo de manhã, saio para a rua e volto à noite, sempre antes das 22h pois as luzes seriam desligadas... Dias depois, sou assaltado em Miraflores, levam meu dinheiro e um cartão de crédito. Volto faminto e desanimado para a pousada, me deito na cama; lá fora, noite fria, vento forte. A única iluminação que vem de fora passa pela janelinha no alto da parede, onde uma pequena cortina de plástico azul faz movimentos sutis, a única distração disponível antes de dormir... Naquela noite resolvo descobrir onde é a cozinha; lá deve ter ao menos um biscoito, um resto de qualquer coisa... Na escuridão, desço as escadas de madeira agarrado ao corrimão, tento fazer nenhum barulho, afinal é uma expedição para assaltar a cozinha. Entro num lugar, a cozinha do andar de baixo, pelo menos tinha geladeira e armários. Ao abrir a geladeira, encontro apenas seringas de vidro, agulhas e remédios... Nos armários, apenas equipamentos hospitalares, álcool, medicamentos, remédios... Nada de comida. “Que lugar é esse?”, me pergunto. Abro as portas de outras salas e só encontro camas, equipamento de eletrochoque, tipo filme de terror... Subo para o quarto...

Trânsito em Lima, 1998
Foto Lincoln Paiva

Deito na cama de molas, o filme que assisto na minha cabeça começa a fazer sentido: o quarto frio, a cama única, a chave enorme, as recepcionistas vestidas de branco, os hóspedes que saem correndo sem motivo, a menina de cabelo amarrado que dá instruções esquisitas, as crianças gargalhando... E o portão trancado com correntes, imagem que se fixa e não sai mais da minha cabeça... No Brasil, quem sabe onde eu estou? E se meus anfitriões começarem a achar que eu sou louco? Eu estou enlouquecendo?

Com a roupa do corpo, abro a porta, passo pela recepção fechada, corro pelos jardins e pulo o muro... Fujo do manicômio e corro em direção da pousada.

Bem, o que acontece depois já é outra história...

sobre o autor

Lincoln Paiva é mestre em arquitetura pela FAU Mackenzie e Advisory Board WRI Ross Prize for Cities.

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