Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

architectourism ISSN 1982-9930

Parque Villa-Lobos, São Paulo. Foto Victor Hugo Mori

abstracts

português
Silvia Zakia, estudiosa da obra do arquiteto francês Mallet-Stevens, narra sua visita à Villa Cavrois, projeto encomendado por Paul Cavrois em 1929, sendo construída entre junho de 1930 e maio de 1932 na cidade de Roubaix, região norte da França.


how to quote

ZAKIA, Silvia Palazzi. Uma tão esperada visita à Villa Cavrois. Em Roubaix, norte da França, a obra canônica de Mallet-Stevens. Arquiteturismo, São Paulo, ano 12, n. 132.04, Vitruvius, mar. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/12.132/6909>.


Marco na arquitetura moderna, Villa Cavrois, realizada pelo arquiteto francês Robert Mallet-Stevens (1), era o destino que eu ansiava visitar desde o início da pesquisa sobre o arquiteto. Fui me surpreendendo com a descoberta de sua relação com alguns brasileiros, mas isso deixo como aperitivo para outros artigos.

Em meados de julho do ano passado, chegou o dia tão esperado: uma visita guiada particularmente por Richard Klein, estudioso do arquiteto e de sua obra, a Villa Cavrois – objeto de sua tese de doutorado (2). Que privilégio!

Villa Cavrois está situada na comuna (equivalente aos nossos distritos) de Croix, cidade de Roubaix, norte da França, nas proximidades de Lille.

Encontrei o professor Klein na simpática estação ferroviária gare de Lille-Flandres. Dalí, partimos para o almejado destino pela via expressa Grand Boulevard, uma incrível via projetada e construída em 1909. Projeto grandioso, que vale uma digressão não só pela magnitude, 50 metros de largura por 14.500 metros de extensão, mas, sobretudo, por seu caráter providencial. Trata-se de uma via concebida como multimodal, atente-se para o termo vigente, em forma de Y, que liga três núcleos urbanos – Lille, Roubaix et Tourcoing – três cidades que constituíram, entre o final do século 19 e princípio do século 20, o centro têxtil mais importante da França.

À época, o eixo de circulação foi idealizado para seis modalidades: pedestres, automóveis, veículos à tração animal, bicicletas, bondes elétricos e cavaleiros. As vias marginais, que serviam às habitações lindeiras, eram separadas das vias centrais por canteiros de duas fileiras de árvores.  O eixo de circulação dispunha de um leito carroçável central (9,0m), dois leitos marginais (5,50m cada), dois canteiros (11,50m cada), um composto por ciclovia (3,30m) e via para cavaleiros (5,0m) e calçada (3,30m), e o outro destinado aos dois sentidos do bonde elétrico (8,40m), mais calçada (3,30m) e, por fim, duas calçadas de pedestres (3,30m cada).

Grand Boulevard, corte transversal, Lille, 1909
Imagem domínio comum

O Grand Boulevard atende de forma satisfatória ao fluxo de veículos atual, obviamente, em muito superior ao de sua inauguração. O leito carroçável original central foi ampliado com uma nova configuração, mas subsistem a ciclovia, a via de trens metropolitanos e as calçadas arborizadas de pedestres.

Contando com mais de um século de existência, o Grand Boulevard continua cumprindo seu papel. Incrível e óbvio: projeto urbano deve ser pensado para longo prazo. Chegaremos lá.

Saindo da grande via expressa, chegamos ao distrito de Croix (comuna de Lille), e adentramos a rua da Villa Cavrois, nosso destino. A casa fica num bairro sofisticado, muito arborizado. A leve garoa do dia nublado me fez lembrar de Campos de Jordão de tempos menos concorridos e de muito sossego. Chegamos um pouco antes do horário de visitação e aproveitamos para espiar a vila seguindo a pé por uma alameda lateral. Fiquei estupefata pela escala monumental da casa. Uma leve brisa espalhava o perfume das árvores que ladeiam a ruela lateral. A promenade arquitetural principiou no entorno misturando impressões olfativas e visuais. Um perfume delicioso, que espero ter guardado na minha memória olfativa.

Vila Cavrois apareceu como uma grande embarcação moderna ancorada serenamente sobre um sítio espetacular, no cume de uma colina, com uma bela vista de campos verdes entremeados por residências esparsamente espalhadas. No alto do seu mirante, o proprietário podia avistar as usinas do parque fabril de Roubaix, distante o suficiente da poluição e do barulho próprios às indústrias de outrora. Essa visão a cavaleiro nos traz à memória a implantação também estratégica das sedes de fazendas brasileiras de café. Bem acomodados no alpendre das sedes, nossos barões, condes e viscondes controlavam a produção do café vigiando todos os passos da escravaria. Monitorar a riqueza – imprescindível.

De volta à arquitetura, insisto: fotos antigas ou atuais, amadorísticas ou profissionais, p/b ou coloridas, maquetes (3), passeios virtuais e toda tecnologia de que dispomos hoje não dão conta do impacto da experiência real. Nada suplanta a vivência.

Villa Cavrois, maquete, Cité de l'Architecture. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

Villa Cavrois, maquete, Cité de l'Architecture. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

A casa impressiona. De certa forma, já a conhecia, sabia de sua história, das tratativas do projeto, da sua execução, sua historicidade, que passou de uso privativo da família Cavrois à caserna para 200 soldados do exército alemão durante a guerra, sabia das reformas posteriores, do abandono, do périplo da luta por sua proteção e, por fim, do restauro bem sucedido, resultante do trabalho obstinado do professor Klein. Cumpre, nesse sentido, destacar um pouco dessa longa trajetória.

O projeto da vila foi encomendado por Paul Cavrois ao arquiteto moderno Mallet-Stevens em 1929, sendo construída entre junho de 1930 e maio de 1932. Sua inauguração ocorreu com a celebração da festa de casamento da enteada e sobrinha de Paul Cavrois, Geneviève, em 5 de julho de 1932. Evento espetacular, no qual não faltaram fogos de artifício e até sobrevoo de avião lançando flores sobre a propriedade.

Paul Cavrois era um importante industrial do setor têxtil francês, suas indústrias se situavam em Roubaix, região norte da França. Em 1912, Paul casa-se com a viúva de seu irmão, tendo quatro filhos. Formavam uma família numerosa, posto que sua esposa Luciejá tinha três filhos de seu casamento anterior, com o irmão de Paul, Jean.

Em 1923, Paul decide se mudar para o distrito de Croix, região de Lille, nas proximidades de Roubaix, onde morava anteriormente. Compra uma grande área no topo da colina de Beaumont, e contrata Mallet-Stevens, célebre arquiteto moderno da França.

À essa época, Mallet-Stevens gozava de grande notoriedade no meio cultural parisiense, participara da Exposição Internacional de Artes Decorativas de 1925, realizando o Pavilhão de Turismo e o jardim cubista, em colaboração com os escultores Jan e Joel Martel, ambos projetos de grande repercussão, já inaugurara também a rua Mallet-Stevens, outro trabalho exitoso.

Em 1929, coetaneamente à contratação por Cavrois, Mallet-Stevens organizava a fundação de União dos Artistas Modernos; de fato, seu prestígio no meio profissional era ímpar, causa de certa animosidade entre expoentes da vanguarda arquitetônica, a bem dizer, Le Corbusier, mas essa é outra história que oportunamente será abordada.

Cavrois buscava com a construção da vila se diferenciar do conservadorismo cultural local. Alinhavaria seu sucesso empresarial à modernidade artística, simbolizada, na arquitetura, por Mallet-Stevens.  A vila seria um marco arquitetônico da região. E assim o foi.

Villa Cavrois, vista da piscina, elevação sul, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

Cavrois deu carta branca à Mallet-Stevens. O que mais poderia desejar um arquiteto? Sem quaisquer restrições, nem estéticas, nem orçamentárias. Estamos falando dos preâmbulos da crise mundial de 1929. O arquiteto pôde com esse projeto materializar todo seu ideário moderno – a vila tornou-se um manifesto da arquitetura moderna. Mallet-Stevens a concebeu como uma obra de arte total.

Parte I

O programa era grandioso e complexo, deveria abrigar toda a família de Cavrois, seus três sobrinhos enteados, Jean, Geneviève e Michel, mais seus próprios filhos, Paul, Francis e as gêmeas Annette e Brigitte.

A distribuição em planta do vasto programa de necessidades foi estabelecida a partir de dois eixos ortogonais em cuja interseção encontram-se o hall de entrada, o grande salão, as escadas e elevador de acesso aos demais pavimentos. O eixo norte-sul que cruza transversalmente o grande salão de pé-direito duplo se estende externamente rumo ao sul pelo terraço, pela escadaria que desce em direção ao espelho d’água de 72 metros de comprimento. A entrada da casa fica na face norte e a sul o fundo do lote, composto por gramados, espelho d’água, pomar, canteiro de flores, horta. Os desníveis do jardim posterior que se prolongam ao encontro do extenso e estreito espelho d’água destacando sobremaneira a edificação.

Villa Cavrois, implantação, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Imagem divulgação [MALLET-STEVENS, Robert. Une demeure 1934. Boulogne, L’Architeture d’Aujourd’hui, 1934]

Villa Cavrois, elevações, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Imagem divulgação [MALLET-STEVENS, Robert. Une demeure 1934. Boulogne, L’Architeture d’Aujourd’hui, 1934]

Villa Cavrois, planta térreo, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Imagem divulgação [MALLET-STEVENS, Robert. Une demeure 1934. Boulogne, L’Architeture d’Aujourd’hui, 1934]

Villa Cavrois, planta subsolo, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Imagem divulgação [MALLET-STEVENS, Robert. Une demeure 1934. Boulogne, L’Architeture d’Aujourd’hui, 1934]

Villa Cavrois, planta 1º pavimento, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Imagem divulgação [MALLET-STEVENS, Robert. Une demeure 1934. Boulogne, L’Architeture d’Aujourd’hui, 1934]

O eixo longitudinal leste-leste percorre a extensão de aproximadamente 60 metros do corpo da edificação. Pelo longo corredor leste-oeste de aproximadamente 50 metros de extensão estão distribuídas as áreas íntimas e de serviços.

Villa Cavrois, corredor de serviços no subsolo, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

A casa possui quatro pavimentos: no subsolo onde estão situados os serviços – lavanderia, casa de máquinas/aquecimento, depósitos, adegas, garagem, maleiro etc., e a piscina de 27 m de comprimento por 7,5 de largura; no térreo, a ala leste corresponde ao setor masculino, onde estão localizados os dormitórios dos jovens rapazes, os enteados Jean e Michel, o escritório e o fumoir; a ala oeste corresponde à sala de jantar, copa das crianças (4), cozinha e aos dormitórios dos empregados.

Villa Cavrois, sala de refeições das crianças, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

No primeiro pavimento, na ala leste, encontra-se a suíte do casal, e, na ala oeste, os dormitórios das crianças – das gêmeas Annette e Brigitte e dos garotos Paul e Francis –, intercalados pelo dormitório da governanta. Ao centro, no cruzamento dos eixos norte-sul e leste-oeste, o vazio do grande salão.

O segundo pavimento é praticamente ocupado por dois grandes terraços – a laje-terraço da ala leste e o terraço pergolado da ala oeste. Ao centro, sobre o vazio do grande salão encontram-se o salão de jogos e brinquedos, duas salas de estudo e o acesso ao mirante do pavimento superior. Uma solução distributiva racional por áreas: social, social masculina, íntima do casal, íntima masculina, íntima infantil, serviços, estudos e de recreação infantil.

A circulação no plano horizontal dos pavimentos se dá basicamente pelo eixo leste-oeste e a vertical na interseção com o eixo norte-sul, isto é, na parte central do corpo da edificação que abriga as escadas e o elevador.

A composição volumétrica prioriza a horizontalidade. O jogo de blocos justapostos mascara a simetria, ora utilizando como recurso dissimulador a alternância dos terraços, ora deslocando sutilmente do eixo central a caixa de escada – mirante; o elemento vertical mais significativo da composição global.

Vários elementos contribuem na horizontalidade da composição das fachadas: a grande dimensão de largura das envasaduras, sempre alinhadas na parte superior, os guarda-corpos dos terraços e decks e o próprio detalhamento do aparelho dos tijolos de revestimento: o rejunte vertical é quase uma junta seca, com coloração próxima ao amarelo ocre do tijolo e o rejunte horizontal é mais espesso, em baixo relevo e na cor preta, evidenciado as fiadas de tijolos. Esse efeito acentua a horizontalidade. Vale mencionar que muitos outros detalhes internos e de caixilharia também a buscam.

O revestimento externo em tijolo amarelo ocre (plaqueta ou quartinho), uma concessão à tradição regional flamenga, foi inspirado no edifício-sede do poder municipal de Hilversum, Holanda, projetado por Willem Marinus Dudok, em 1931, que, por sua vez, remete a Frank Lloyd Wright. Projeto não é criação do além, não é ato divino, é trabalho intelectual, elaborado com talento, por vezes fruto de diálogos ou de contraposições ao já estabelecido.

A utilização dos tijolos, escolha convicta de Mallet-Stevens para o projeto da Vila Cavrois foi experiência única e distinta de seu repertório precedente: Vila Poiret 1921-23, Vila Noailles 1923-28 e as casas da rua Mallet-Stevens 1925-28, em Paris.

Concessão à tradição local ou não, desvio aos “padrões” modernos ou não, certo é que o resultado é esplêndido. O revestimento imprime um caráter único à Vila Cavrois.

Para a obra foram produzidos vinte e seis moldes de tijolos adequados às diferentes situações projetuais: angulares, circulares, de arremates convexos, côncavos. Todas as dimensões do projeto foram estabelecidas por múltiplos exatos das plaquetas tanto na altura quanto no comprimento, imprimindo um aspecto exterior de precisa homogeneidade.

Villa Cavrois, trampolim da piscina, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

Villa Cavrois, vista leste, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

Já abordamos rapidamente aspectos relativos à implantação, à distribuição do programa e à composição volumétrica. Muito há de se comentar sobre a iluminação, sobre o tratamento de cores dos ambientes internos, sobre os equipamentos técnicos domiciliares e sobre o mobiliário, que foi especialmente desenvolvido para a obra.

Mallet-Stevens, experimentado realizador de sets de filmagens, detém o saber-fazer que alia aspectos psicológicos à decoração, de maneira que os ambientes sejam a expressão do caráter de seus personagens, no caso em tela, dos moradores Cavrois.

Assim sendo, cada cômodo recebe uma paleta de cores, de revestimentos diferenciados de madeira e de recursos de iluminação artificial específicos.  O arquiteto estabelece uma associação entre a função do cômodo e o perfil do usuário e cria ambiências variadas.

O hall de entrada é um espaço grandioso, requintado e teatral onde o preto e branco predomina. Iluminação difusa, piso de mármore brilhante e elementos de metais polidos compõem essa antessala, que, com portas duplas laqueadas de preto ladeadas por nichos internamente iluminados, impressiona pela dramaticidade espacial. O porvir desse cenário hollywoodiano está anunciado.

Villa Cavrois, vestíbulo de entrada, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

Abre-se o salão principal e avista-se pela envasadura de pé-direito duplo o jardim posterior, um imenso gramado em cujo eixo central encontra-se o espelho d’água de 72 metros de comprimento. Tudo é grandioso e espetacular, vocábulo que solicitarei repetidas vezes.

Villa Cavrois, mezanino do salão central, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

Villa Cavrois, sala de jantar e vista para o jardim posterior, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

No grande salão, impera o luxo do couro, de tecidos e de revestimentos como mármore de Siena, empregado nas paredes e no piso do recanto da lareira, e da madeira do Congo belga, utilizada no elaborado parquete do salão. O requinte do salão contrasta com a policromia alegre e a simplicidade dos móveis dos espaços infantis.

Villa Cavrois, canto da lareira no grande salão, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

Villa Cavrois, sala íntima feminina, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

A fantasia feminina é destaque no boudoir da senhora Cavrois, mobiliário de sicômoro revestido de alumínio polido.

O traço masculino reina no fumoir – cores quentes, couro e madeira escura nos revestimentos. As dimensões reduzidas garantem ao ambiente domínio de exclusividade masculina, o caráter íntimo e de repouso para degustação de bebidas e charutos.

Conforto, aconchego e tranquilidade são a inspiração para a suíte principal: cores claras e muita madeira natural. O banheiro da suíte é uma homenagem ao esporte e à higiene, bem de acordo aos novos hábitos modernos. Dimensões exageradas, cerca de 60m² são destinados à sala de banho, dividida em três zonas: a primeira que agrupa a ducha, banheira e equipamentos sanitários. A segunda área abriga as bancadas e pias específicas para cada membro do casal.  Uma bancada de mármore branco adornada com detalhes de cobre cromado separa a área dos lavatórios do espaço de vestir feminino, completado por armários de embutir, mobiliário laqueado de branco. O piso da área molhada é de mármore Carrara e o restante do piso é revestido por carpete preto com detalhes brancos, tudo fartamente iluminado por grandes caixilhos.

Villa Cavrois, banheiro do casal e espaço de vestir, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

Villa Cavrois, banheiro do casal com bancadas das pias, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

A cozinha é também grandiosa por suas dimensões. Funcional, sóbria e simples como requer um espaço de trabalho. Revestida de ladrilhos brancos e piso cerâmico em tabuleiro de xadrez. Ambiente asséptico e equipado com aparelhagem moderna.

Villa Cavrois, cozinha, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

A policromia foi especificamente elaborada para cada cômodo da edificação: bege na suíte do casal, verde no salão e na sala de estudos, amarelo vivo no dormitório dos meninos, azul no boudoir, vermelho no dormitório da governanta.  O dormitório de um dos rapazes merece destaque: nesse ambiente, Mallet-Stevens, sob influência das práticas vanguardistas do De Stijl, aplicou as cores preto, azul, vermelho, branco e marrom nas paredes, no teto, nos móveis e painéis de revestimento. É o cômodo neoplástico, assim podemos defini-lo.

Villa Cavrois, dormitório do jovem rapaz com policromia neoplástica, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

Outro importante recurso com o qual trabalhou para desenvolver o projeto de interiores é a iluminação artificial. O projeto de luminotécnica foi desenvolvido por Mallet-Stevens em pareceria com André Salomon, especialista nessa nova área. Ambos realizaram inúmeros trabalhos em conjunto explorando ao máximo os recursos que a iluminação artificial possibilita para criar ambiências diversificadas. Junção entre arte e técnica.

Vale lembrar o trabalho exemplar e inovador que a dupla desenvolveu nas lojas Cafés du Brésil (5), em Paris, e em outros muitos projetos comerciais que figuraram em inúmeras publicações da época.

Para cada cômodo da Villa Cavrois foi desenvolvido um trabalho de iluminação específico: forros, luminárias, sancas e uma sorte de dispositivos foram habilmente elaborados para suscitar experiências únicas.

Villa Cavrois, sala de jantar, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

Villa Cavrois, salão de jogos infantis, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

Completando o todo moderno, temos a utilização de toda sorte de equipamento tecnológico disponível à época, o que garantia o máximo de conforto aos moradores: aquecimento central, caldeira, estufa para secagem de roupas, telefonia disponível em cada peça, sonorização geral, elevadores etc.

Villa Cavrois, secador de roupas no subsolo, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

Vale ressaltar uma curiosidade: em todos os espaços da edificação encontramos um relógio elétrico embutido nas paredes, como a nos lembrar que o tempo não para e que precisamos percorrer cada lugar dessa casa para usufruir as diferentes experiências oferecidas.

Parte II

Em síntese, a edificação é uma obra moderna que atendia às especificidades do comandatário, meticulosamente projetada para a família Cavrois. Toda sorte de inovação tecnológica foi empregada para assegurar o máximo de conforto possível à época. Nesse sentido, um paralelo à Maison de Verre, de Pierre Chareau, é pertinente. Aliás, Chareau por várias vezes colaborou em projetos de Mallet-Stevens. Vale ressaltar que tanto o casal Cavrois, Villa Cavrois, como os Dalsace, Maison de verre, habitaram nas respectivas moradias até o final de suas vidas – residências projetadas com atenção meticulosa às necessidades dos comandatários.

Mallet-Stevens exerceu sua profissão simplesmente como homem moderno que era. Sua revolução foi atender com maestria aos anseios do cliente que vivia os tempos modernos. Arquitetura moderna atende ao seu tempo presente. Revolução? Não. Evolução? Não: simplesmente boa arquitetura.

Se o projeto de Mallet-Stevens foi minucioso em todos os aspectos e a obra foi executada com primor tal qual o projeto, cabe agora comentar o restauro. Uma aula magna de conservação.

A Villa Cavrois foi objeto da tese de doutorado de Klein, defendida em 2003, na Université Paris I Panthéon-Sorbonne, o maior responsável pela bem-sucedida luta contra a destruição e o abandono da casa. De forma incansável iniciou uma campanha que resultou na compra da propriedade pelo Estado.

A família Cavrois viveu na casa entre 1932 e o princípio da guerra. Em 1940, os alemães aproveitaram o potencial estratégico da implantação da casa no topo da colina Beaumont e a ocuparam como caserna para alojar cerca de duzentos soldados.

Os Cavrois retornaram à residência em 1947 e lá permaneceram até 1986, quando faleceu a viúva do casal Cavrois. A partir desse evento, os herdeiros colocaram a venda a propriedade e um périplo de destruição, vandalismo e deterioração se principiou.

Em 1991, é criada a Associação de Salvaguarda da Villa Cavrois, presidida até 1996 por Klein, um dos fundadores e personagem principal dessa empreita. Uma campanha publicitária também foi elaborada para sensibilizar a opinião pública a respeito dessa obra até então pouco conhecida. Uma vila dos anos 1930 que merecia um trabalho minudente de preservação.

Em 2001, o Estado adquire parte da propriedade: edificação principal, a casa do caseiro e uma porção considerável do lote original.

Em 2003, o Centro de Monumentos Históricos assume o processo de restauro da Vila, que se inicia pelos trabalhos no exterior da edificação e de restauro do parque envoltório. A partir de 2009 começam os trabalhos no interior da edificação. O término das obras e abertura do monumento ao público aconteceu em 2015.

O projeto de restauro buscou resgatar o estado do edifício em 1932, posto que em 1950 uma reforma, considerada pelos profissionais de restauro nefasta à percepção do estado original, teria modificado substancialmente a Vila. Prospecções no local assim como o exame minucioso de documentos e fotos da edificação permitiram a reconstituição total da Vila. Como testemunho do processo de restauro, um dos cômodos da área de serviço no subsolo foi deixado sem revestimento. Ali é possível apreender o sistema construtivo da obra.

Villa Cavrois, cômodo testemunho do restauro, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

Muito há de se relatar sobre esse projeto de restauro, que passa pela recuperação do revestimento externo de tijolos, com apropriada limpeza e troca dos elementos deteriorados, impermeabilização dos terraços e varandas, reconstrução do espelho d’agua, tratamento da caixilharia metálica, com aproveitamento de 95% do original, O parquete de madeira foi restaurado, permanecendo como original 80%, com pontuais substituições. Os revestimentos de mármore vandalizados e/ou roubados foram substituídos por peças de mesma proveniência, mármore amarelo de Siena, verde da Suécia, branco de Carrara e negro da Bélgica. A dificuldade foi encontrar peças com veios similares. O mesmo procedimento foi realizado com as peças de madeira. Alguns elementos acarretaram dificuldades, sobretudo os relativos à iluminação. As lâmpadas incandescentes hora em desuso tiveram que ser substituídas por fluorescentes ou leds que garantissem a ambiência original.

Para a reconstituição da paleta cromática das pinturas foram realizadas inúmeras prospecções picturais. O óleo de palma outrora empregado nas pinturas foi substituído pelo óleo de linho. Pode-se dizer que graças aos elementos originais, mais ou menos preservados, foi possível identificar as técnicas e os materiais empregados na obra.

Parte do mobiliário original foi restaurada, mas infelizmente a grande maioria deles já tinha sido vendida em leilões e antiquários interessados na valorização mercantil da obra do arquiteto. Os princípios de restauração exclusivos da França impedem que reconstituições do mobiliário sejam alocadas conjuntamente aos originais. Por conseguinte, alguns cômodos permanecem sem mobília, mas as imagens fotográficas testemunham a composição decorativa de cada ambiente. De qualquer maneira, é possível apreender a ambiência original de todos os espaços.

Villa Cavrois, dormitório do jovem rapaz sem o mobiliário, Roubaix, França. Arquiteto Mallet-Stevens
Foto Silvia Zakia, julho 2017

Preconizando que o projeto da Villa Cavrois representaria a materialização de um manifesto moderno de arquitetura, Mallet-Stevens publicou, em 1934, Une demeure 1934, obra de vinte oito páginas dedicada à explanação e descrição da residência de uma família que vive nos anos 1930, nos tempos modernos – Villa Cavrois, um monumento histórico oficialmente tombado pelo governo francês. Desde sua inauguração, em 2015, recebeu um número de visitantes significativamente superior ao esperado. Obra excepcional, restauro exemplar.

A visita à Villa Cavrois não pode ser descrita num texto, é preciso vivenciá-la. Apreciar as cores das paredes, dos móveis, tatear a textura das madeiras, dos metais e mármores gelados, ouvir o ruído dos mecanismos das instalações funcionando, imaginar os anúncios sonoros amplificados por todos os cômodos, sentir o odor dos aromas do jardim, das trepadeiras dos terraços, o perfume das rosas colhidas no roseiral e guardadas no atelier da senhora Cavrois, no subsolo, bem defronte do quartinho de armas, com cheiro de caça.

Uma experiência arquitetônica vivenciada no presente e num passado imaginário.  A cada passo me surpreendi, uma sensação infantil de alegria diante do inusitado que a casa como um enorme brinquedo me oferecia. Não visitei Villa Cavrois, me diverti na Villa Cavrois. E com carinho dedico essa crônica ao professor Klein, que me acompanhou nessa inesquecível “brincadeira”.

notas

1
Sobre Robert Mallet-Stevens, ver: CINQUALBRE, Olivier (dir.). Robert Mallet-Stevens. L’oeuvre complete. Paris, Éditions du Centre Georges-Pompidou, 2005; MALLET-STEVENS, Robert. Une demeure 1934. Boulogne, Éditions de L’Architeture d’Aujourd’hui, 1934; VOLPI, Cristina. Robert Mallet-Stevens 1886-1945. Milan, Electa, 2005.

2
Tese defendida em 2003 e que resultou na seguinte obra: KLEIN, Richard. Robert Mallet-Stevens, La Villa Cavrois. Paris, Éditions Picard, 2005. Do mesmo autor, ver: Robert Mallet-Stevens. Agir pour l’architecture moderne. Paris, Éditions du patrimoine, 2014; Hector Guimard, Robert Mallet-Stevens. Villas modernes. Paris, Centre National de documentation pédagogique, 2004; La Villa Cavrois. Paris, Éditions du patrimoine, 2014; Une demeure 1934. Architecte: Rob Mallet-Stevens. Paris, Jean-Michel Place éditions, 2005; La Villa Cavrois. Itinéraires. Nord. Paris, Éditions du patrimoine, 2014.

3
No acervo de arquitetura moderna de Cité de l’Architecture et du Patrimoine é possível ver as maquetes da Vila Cavrois (1929-1932), da Vila Savoye (1928-1931) e da Maison de Verre (1927-1931), três ícones coetâneos da arquitetura moderna, lado a lado.

4
Sobre a sala de refeições das crianças vale ressaltar o trabalho em alto-relevo dos escultores Jan e Joël Martel, artistas que colaboraram em inúmeras obras de Mallet-Stevens. A obra original desapareceu e foi reconstituída a partir das imagens resgatadas durante os trabalhos de restauração.

5
Sobre tema, ver o seguinte artigo: ZAKIA, Silvia Palazzi. Mallet-Stevens e as lojas Cafés du Brésil. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 194.00, Vitruvius, jul. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.194/6116>.

sobre a autora

Silvia A. P. Zakia é pesquisadora de pós-doutorado FAU-USP e bolsista PNPD-Capes.

comments

132.04 viagem de estudo
abstracts
how to quote

languages

original: português

share

132

132.01 paisagem construída

Rio Guaíba

Celma Paese

132.02 ensaio fotográfico

Uxmal

Victor Hugo Mori

132.03 roteiro de viagem

As torres do caminho

Petterson Michel Dantas and Cynara de Sá Fernandes

132.05 na estrada

Caminos del Sur

André Luiz Joanilho

132.06 turismo predatório

O que dizem as janelas de Veneza?

Christiane Lisboa

132.07 ministério do arquiteturismo

Ministério do Arquiteturismo adverte...

Michel Gorski

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided