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architectourism ISSN 1982-9930

Crepúsculo em São Paulo. Foto Claudia Stinco

abstracts

português
Abilio Guerra narra um longo passeio por sua própria casa em tempos de pandemia e pandemônio.


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GUERRA, Abilio. Tudo junto, de uma única vez. Onze voltas pelo interior da minha casa. Arquiteturismo, São Paulo, ano 14, n. 161.04, Vitruvius, ago. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/14.161/7856>.


Guardiões da escada
Foto Abilio Guerra

Volta 1

Me dou conta que a Silvana passa pela terceira vez na minha frente e consigo entender o ar perplexo de Tom Tom. Estava andando a meia hora de todo dia, me explicou. Antigamente, antes da pandemia, andávamos juntos para o escritório, caminhada de meia hora, um pouco mais, um pouco menos, dependia do bom humor dos sinais de tráfego. Agora, exilado na república caseira fincada na Bela Vista, olho o Brasil como se estivesse do outro lado do Oceano, uma paisagem longínqua, escondida no céu plúmbeo, em meio à borrasca renitente, que parece não ter fim. Sou refratário a exercícios caseiros, faço com muita dificuldade o alongamento cotidiano que me pede a coluna abalada por duas hérnias de disco, mas o desafio funciona, me paramento com tênis e abrigo para passear pelos espaços estreitos da minha casa, e nem tanto da minha mente.

Volta 2

Às vezes, no silêncio da noite
Eu fico imaginando nós dois
Eu fico ali sonhando acordado
Juntando o antes, o agora e o depois

Por que você me deixa tão solto?
Por que você não cola em mim?
Tô me sentindo muito sozinho

[...]

Volta 3

Ao descer uma escada íngreme de 11 degraus chego ao patamar térreo. É uma medida que conheço. No trajeto cotidiano temos que vencer uma escadaria entre as ruas Avanhandava e Caio Prado de 120 degraus, dez lances de onze degraus, mais um lance final de dez. Mais cinco degraus e chego no quintal pequeno, acomodado no terreno em declive. Pequeno, mas com árvores frutíferas, agora com hortaliças, tubérculos e legumes, reserva de víveres para tempos mais duros. Imagino um percurso circular vencendo os patamares, subindo e descendo as escadas. ‘Quantas voltas consigo dar em meia hora’, me pergunto. Escolho Caetano no Youtube, coloco o fone de ouvido e começo a jornada. A bela canção de Caetano deixa nua a melancolia que me acomete no isolamento – “Tô me sentindo muito sozinho”, canta o poeta.

Volta 4

Caetano para no meio da música, e comenta assim: “Essa música é muito bonitinha. Eu ouvi a gravação de Sandra de Sá que tocava no rádio sempre, achava linda e pensava assim: ‘no próximo show que fizer eu vou cantar essa música’. Não sabia nem de quem era a música. Outro dia eu estava ouvindo uma rádio que diz quem são os autores das canções, o cara falou assim: ‘Sandra de Sá, Sozinho, de Peninha’. Eu disse assim: ‘pô, a música é do Peninha, agora é que eu vou cantar mesmo’. Mas, um dia eu estava no carro com o rádio ligado e ouvi a gravação dessa música com Tim Maia. Aí eu desisti de cantar. E, no entanto, estou aqui cantando ela. Porque eu desisti, mas não resisti”. Verifico a data do show: 1978. Quatro décadas depois ouço a voz de Caetano como se ele estivesse ao meu lado, falando só pra mim.

Volta 5

Guardo na memória uma frase de Caetano Veloso: “o Brasil vai dar certo, porque eu quero que dê certo. Mas muitos países poderiam dar certo e fracassaram”. Afirmação feita em entrevista ocorrida há tanto tempo que não arriscaria dizer quando. Já procurei por ela na internet uma ou outra vez, mas não encontrei. Talvez tenha imaginado que Caetano falou isso, talvez ele tenha falado apenas para mim em um sonho. Mas citei a frase muitas vezes, sempre lhe dando créditos, sempre querendo acreditar que o Brasil um dia vai dar certo. Mas agora, diante do fascismo que nos ronda, desisti de vez. Mas o poeta interrompe de forma abrupta a música e me sopra aos ouvidos: “eu desisti, mas não resisti”. Fortuna ou destino, chamado assim não se negligencia, melhor insistir.

Volta 6

Depoimento de Jair Bolsonaro, logo após ser acusado por seu ex-ministro da Justiça Sergio Moro de tentar deter investigações que chegariam aos seus filhos e aos seus asseclas. Na fala presidencial e no “mise em cène”, um sem número de situações marcantes pelas faltas de decoro, educação, dimensão da coisa pública e vergonha: o filho 04 garanhão, Damares se escondendo atrás de Onix, o abrir do coração do depoente, a presença do mudo Helio Negrão para afastar acusações de racismo, as mágoas e ressentimentos de um homem menosprezado, as ausências dos ridículos Regina Duarte, Abraham Weintraub e Ricardo Salles, as mentiras descaradas de fazer corar hipócritas, o bando de engravatados autoritários por vocação e/ou profissão, alguns autoritários e violentos como o 03 miliciano, Guedes de máscara e meias para se esconder e se mostrar, a fala fascista, o novo ministro da saúde privada lambendo os beiços como um vampiro na espreita – espero não ter que decorar seu nome –, o linguajar nazista. Mas o nazista se diz honesto, íntegro, incapaz de mentir, se sente ultrajado diante da mentira do outro, afinal é católico, militar, patriota! Uma volta inteira pela casa pensando nesse pesadelo, nessa cena inacreditável que retrata nossa indigência, nossa incapacidade visceral de exorcizarmos o arcaísmo que habita nossa alma coletiva. O discurso que conclama o “novo”, mas que escancara o velho e conhecido fascismo, exposto sem escrúpulo ao afirmar sua autoridade como equivalente a poder tudo.

Volta 7

Ao passar pela biblioteca, na sétima volta, observo na seção de Filosofia um livro fora do lugar – “O príncipe”, de Maquiavel, que eu consultei há pouco. Penso se Bolsonaro leu a mesma passagem, mas me dou conta que o tolo seguramente nada lê, obtuso que é. Mesmo sabendo que nunca vai saber do meu gesto de conforto, mando ao Duce do Glicério um aviso que chega tarde, mesmo tendo sido escrito em 1513: “os homens geralmente são ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ambiciosos de dinheiro, e, enquanto lhes fizerem bem, todos estão contigo, oferecem-te sangue, bens, vida, filhos, desde que a necessidade esteja longe de ti. Mas, quando ela se avizinha, voltam-se para outra parte. E o príncipe, se confiou plenamente em palavras e não tomou outras precauções, está arruinado. Pois as amizades conquistadas por interesse, e não por grandeza e nobreza de caráter, são compradas, mas não se pode contar com elas no momento necessário”.

Volta 8

Eu e os poucos que me leem somos quase todos de um extrato social específico, a classe média. Sobre ela certa vez Marilena Chauí afirmou: “Eu odeio a classe média. A classe média é o atraso de vida. A classe média é a estupidez; é o que tem de reacionário, conservador, ignorante, petulante, arrogante, terrorista. A classe média é uma abominação política, porque é fascista, é uma abominação ética porque é violenta, e é uma abominação cognitiva porque é ignorante”. Carga pesada, exagerada na generalização, mas precisa quando se considera alguns segmentos dessa camada social. O pedido de demissão de Sergio Moro provocou em poucas horas um curioso movimento nas manifestações públicas da classe média de pendor fascista: no primeiro momento, ficaram indignados com a queda de seu cavaleiro andante, que brandia a espada contra os corruptos da nação; no segundo momento, em onda sincronizada, retornaram aos braços de Jair Bolsonaro, o líder autoritário que garante a integridade da pátria na fala, e a propriedade e a desigualdade social com as ações. O suor escorre pela face e encharca o abrigo quando ouço nas passagens diante da televisão as avaliações dos comentaristas políticos, engajados em defender Sergio Moro – a “falsa vestal”, como comprovou o Intercept Brasil. E, já descendo a escada, fico a imaginar o que ocorre nas mensagens WhatsApp entre parentes – decepcionados uns, inflexíveis outros – que seguiram o comando da grande mídia e deram de presente a um facínora a cadeira mais alta do poder executivo.

Volta 9

Disparo contra o Sol
Sou forte, sou por acaso
Minha metralhadora cheia de mágoas
Eu sou um cara

Cansado de correr
Na direção contrária
Sem pódio de chegada ou beijo de namorada
Eu sou mais um cara

Mas, se você achar
Que eu tô derrotado
Saiba que ainda estão rolando os dados
Porque o tempo, o tempo não para

Dias sim, dias não
Eu vou sobrevivendo sem um arranhão
Da caridade de quem me detesta

A tua piscina tá cheia de ratos
Tuas ideias não correspondem aos fatos
O tempo não para

Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não para
Não para, não, não para

[...]

Volta 10

Cazuza cantando “O tempo não para” invade minha seleção de Caetano Veloso, algum solavanco mudou de automático para randômico. Fortuna ou destino, algo deve significar. “Eu vejo o futuro repetir o passado”, mantra que adormece o gigante de nosso hino, que nos hipnotiza deixando-nos incapazes de assumir as rédeas e mudar o final sempre trágico dos capítulos de nossa história. “A tua piscina tá cheia de ratos, tuas ideias não correspondem aos fatos”, e não há fakenews que mude isso, apenas acoberta, esconde, sabe-se lá por quanto tempo. Cazuza no final da vida foi se desfazendo diante de nossos olhos atônitos e incrédulos, o corpo esquálido derretendo e se transformando em poesia. Nunca vi algo tão magnífico, o corpo literalmente se convertendo em arte. Diante de nossos olhos se desvendava o efêmero da vida individual e a violência estúpida da sociedade contemporânea. “O tempo não para”.

Volta 11

Mais uma volta inteira pela casa, a última, olhando os objetos, as fotos de familiares e amigos enquadradas na parede, a Silvana de banho tomado, Tom Tom e Garibaldi em mais uma peleja felina... O tempo não para.

nota

NA – O presente texto foi originalmente publicado na página Facebook do autor, dentro do álbum “Crônica de andarilho”, texto 110, em 26 de abril de 2020.

sobre o autor

Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora. É coautor de Rino Levi – arquitetura e cidade (com Renato Anelli e Nelson Kon, 2001), e autor de O primitivismo em Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Raul Bopp (2010) e Arquitetura e natureza (2017).

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