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SUBIRATS, Eduardo. Paraíso. Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 011.05, Vitruvius, abr. 2001 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.011/902>.

O livro "A penúltima visão do paraíso" (1) reúne cinco ensaios em torno da crítica da sociedade capitalista tardia, da modernidade na sua etapa histórica decadente, dos conceitos de pós-modernidade. Levanta questões relativas aos meios técnicos de comunicação e à construção globalizada do real, à correspondente destruição da experiência individual, à disseminação da violência como característica nuclear da civilização capitalista e ao fim dos ideários modernos de progresso.

Ao longo de suas páginas esboça-se um olhar geopolítico e culturalmente específico: uma perspectiva latino-americana, de certo modo ibero-americana, obliquamente ibérica e talvez também latina. Semelhante ponto de vista geopolítico é marcado por alguns estigmas históricos e culturais que creio necessário assinalar. O mais importante desses sinais de identidade é o atraso, que não concebo aqui como uma categoria tecnológica e financeira, mas sim como uma condição filosófica, moral e política. Junto com essa noção teórica de atraso deve-se considerar o chamado subdesenvolvimento, um conceito político e econômico indissoluvelmente ligado às estratégias de espoliação colonial e pós-colonial, às tradições de autoritarismo político e à persistente destruição violenta da sociedade civil e de suas formas de autogestão e governo.

O atraso social e o subdesenvolvimento tecnológico e político das nações da América Latina devem ser explorados, em primeiro lugar, como um legado final do próprio atraso que historicamente definiu suas metrópoles ibéricas e das brutais práticas de colonização que as distinguiu. É um atraso diretamente gerado pelas estratégias eclesiásticas de destruição e uniformização culturais, pelos ideais carismáticos de poder e obediência ligados a essas estratégias e à destruição sistemática, por elas, ao longo de cinco séculos, de tudo o que representasse reforma e emancipação da sociedade civil.

Essa crítica é esboçada em relação a três grandes temas: o processo colonial, a ausência de uma reforma ilustrada do pensamento e da sociedade, as vanguardas artísticas latino-americanas. Na minha opinião, nenhum deles foi tratado de maneira adequada e, principalmente, não foi analisado em relação aos dilemas de degradação democrática, fragmentação social, empobrecimento econômico e destruição biológica sustentada que presidem nosso tempo histórico. Nesse sentido, eu me permiti algumas ironias com respeito às – já canônicas – interpretações orientalistas e culturalistas do processo colonial americano como um jogo de representações e simulacros, e não como um processo material de destruição e dependência contínuas que se prolonga até os dias de hoje.

Tudo isso me permite definir um novo olhar. O atraso latino-americano e o próprio conceito de subdesenvolvimento, no sentido em que se aplica genericamente ao chamado Terceiro Mundo, não são abordados aqui como problema periférico da civilização capitalista, mas, antes pelo contrário, como um aspecto constituinte do conceito da modernidade, como um momento central dos grandes discursos epistemológicos, histórico-filosóficos, políticos e morais das metrópoles coloniais européias. Em outras palavras, trata-se de uma crítica da modernidade a partir da situação latino-americana. Trata-se de uma revisão da experiência latino-americana continuada de liquidação de memórias, conhecimentos e línguas, de destruição do habitat e sistemas ecológicos, e de genocídios como o centro nevrálgico dos grandes discursos hegemônicos do progresso e da modernidade até os dias de hoje.

A crítica da sociedade capitalista tardia que esboço a partir desse olhar é ética e estética; não é política. É esse, sem dúvida alguma, o lado mais fraco desses ensaios. Não obstante, parto da convicção de que a crítica política só pode ser um campo intelectualmente válido se for radicalmente reformulada e de que esta reformulação de nossos discursos políticos tem de proceder, em primeiro lugar, de uma reforma ética, artística e cultural das suas categorias. É essa a perspectiva que orienta os ensaios desse livro.

Com respeito a este ponto de vista artístico e ético também adotei uma tradição especificamente latino-americana: o humanismo filosófico e religioso do inca Garcilaso, a poética de José Maria Arguedas, a arquitetura de Diego Rivera e Lina Bo, a crítica de Angel Rama, o testemunho intelectual do antropólogo Curt Nimiendaju... e, muito especialmente, o Movimento Antropofágico.

A escolha desse importante momento das vanguardas latino-americanas deve-se a um bom número de razões. Com certeza, a pessoal não é a menos importante. Desde meu primeiro conhecimento da obra de Oswald e Mário de Andrade, faz duas décadas, senti-me atraído e fascinado por sua riqueza poética, seus risos orgiásticos, seu libertarismo filosófico, sua épica original. Vi neles uma privilegiada porta de entrada para a realidade latino-americana em geral e brasileira em particular. Vi algo mais também.

A radicalidade do Movimento Antropofágico reside em sua inversão da dialética racionalização/destruição da memória, que distingue o papel globalizador das vanguardas ao longo do século XX. A Antropofagia brasileira invertia o discurso das vanguardas européias e da definição da modernidade como um modelo externo, uma nova figura de colonização estética e política. Mais que nenhuma outra corrente artística do século XX, na América ou na Europa, ela formulou além disso um projeto original de civilização não redutível às categorias do progresso capitalista ou tecnológico-industrial.

Resumidamente, este projeto pode ser definido como a síntese da cultura erudita e das sabedorias milenares da selva, das tecnologias modernas e das expressões vernáculas indígenas, da natureza e da razão produtiva. Um sonho ilustrado num sentido radical: sem dúvida nenhuma.

Sonho que, em começos do século XXI, e sob a intensidade crescente de destruição de ambientes naturais e culturas históricas, é preciso repensar, ao lado de muitos outros projetos intelectuais e artísticos do século XX, esquecidos em nome da unidimensionalidade da racionalidade mercantil e espetacular. Ligado a esse projeto ilustrado de renovação, o Movimento Antropofágico esboçou uma crítica ética e estética da civilização pós-industrial vigente muito mais no início do nosso século do que em meados do século passado.

Gostaria de antecipar um aspecto central de tal crítica nesta apresentação: a estética e a ética dos simulacros. Mas, antes, introduzirei uma breve recapitulação histórica.

O surrealismo inventou e produziu artisticamente um âmbito do super-real concebido como sucedâneo do sobrenatural. Esse âmbito ressacralizado de uma super-realidade irracional tecnicamente produzida e mercantilmente disseminada é o que define centralmente o conceito de pós-modernidade: a estética e a política do simulacro, as estratégias das realidades virtuais na guerra, no consumo de massas são os seus produtos finais. O espetáculo pós-moderno como síntese da universalidade do poder da economia mercantil e capitalista, e da organização e mobilização eletrônica das massas é a sua última expressão histórica.

No Brasil dos últimos anos a Antropofagia foi interpretada num sentido muito similar: a antropofagia como boca grande que come tudo; antropofagia como expressão de uma civilização pós-moderna que se devora a si mesma até os limites da guerra total contra o ambiente, contra as culturas históricas residuais do Terceiro Mundo, do extermínio biológico, e de uma globalização progressiva do espetáculo de uma violência ressacralizada pela mídia. Antropofagia revitalizada como ecleticismo banalizado de linguagens históricas hibridizadas sob o denominador comum da sua dessemantização, do seu vazio nominalista, da sua banalização. Antropofagia como uma ética e estética do vale-tudo que confunde a tolerância com o cinismo. Antropofagia como hibridizacão dos signos fragmentados e esvaziados de qualquer conteúdo reflexivo.

A Antropofagia que eu estou assinalando, a Antropofagia como poética que atravessa a poesia Pau Brasil e a pintura de Tarsila do Amaral, a visão do mundo de "Macunaíma" de Mário de Andrade e dos "Manifestos" de Oswald de Andrade, o mundo filosófico construído por esse mesmo escritor ao longo de uma série de ensaios interessantíssimos aponta numa direção completamente diferente. A Antropofagia que estou indicando põe de pé essa metafísica do artifício e do simulacro, das realidades virtuais e da liquidação social da experiência. E o faz valendo-se de dois motivos centrais: primeiro uma crítica da civilização cristã-capitalista; segundo o retorno do Paraíso.

O primeiro ponto, a crítica civilizatória é fundamental não só para compreender a vanguarda brasileira mas também para compreender teoricamente os aspectos mais intensos das vanguardas latino-americanas do século 20. Essa crítica tem motivos centrais, que não existem nas vanguardas históricas européias: a crítica da colonização cristã, uma concepção mágica e mimética da natureza, a restauração das memórias históricas deslocadas pela colonização e uma defesa da liberdade do corpo e da sexualidade. "Macunaíma" é, nesse sentido, um paradigma que vai muito além da crítica nietzscheana da cultura, da psicanálise e do surrealismo.

O segundo aspecto é o retorno do Paraíso. Esse retorno do Paraíso americano é o primeiro e último motivo literário deste pequeno livro que apresento. Eu o descobri num dos meus primeiros livros que me guiaram como turista aprendiz através do Brasil: "A Visão do Paraíso", de Sérgio Buarque de Holanda. Nos anos quarenta, este escritor pesquisou e registrou em um belíssimo ensaio as metáforas do Paraíso presentes nas crônicas dos primeiros viajantes da América Latina. Foi lá que eu soube da existência de um tratado do século 17 de Antônio de León Pinelo: "El Paraíso en el Nuevo Mundo". Pinelo demonstrava ao longo de dois grosso volumes manuscritos a existência do paraíso terreal no alto Amazonas. A pesquisa desse escritor peruano é tão minuciosa que até fiz um mapa da região aonde, segundo ele, se encontrava o dito paraíso: a área do alto Maranhão aonde desde meados de século 20 estão instalados os diversos frentes do penúltimo genocídio global amazônico: as guerras da borracha, do petróleo, das pedras preciosas e da coca. No entanto, o mais interessante é que Pinelo compreendia esse descobrimento numa perspectiva messiânica, oposta ao cristianismo ortodoxo de Roma e as suas estratégias de colonização.

O motivo de reencontro do Paraíso e do retorno ao Paraíso foi também um elemento central no pensamento literário e nas artes européias. Os mitos do Éden são centrais para compreender a iconografia dos jardins árabes. No alto medievo aparece na obra de Jieronimus Bosch sobre o motivo revolucionário e milenarista do Paraíso terreal atualizado, no tríptico chamado "Jardim das delícias". No Renascimento esse paraíso é um motivo iconográfico privilegiado das artes plásticas e da literatura , desde Petrarca até Botticcelli. O Paraíso está associado também aos movimentos místicos e revolucionários da idade moderna contra o poder feudal. Thomas Müntzer é um caso característico.

No começo da era industrial o motivo literário do Paraíso retorna novamente nas utopias socialistas. A mais notável delas foi a de Charles Fourier: a visão de uma humanidade organizada em "falanstérios" que desenvolveria uma relacionamento produtivo com a natureza baseado no livre jogo, no prazer irreprimido e na criatividade. A arquitetura, a poesia e a plástica do expressionismo europeu do século 20 retomou muitos dos elementos simbólicos e iconográficos do Paraíso bíblico e as suas reinterpretações tropicalistas.

O Paraíso antropofágico se inscreve nessa longa tradição herética e revolucionária. Seu ponto de partida é crítica: é a superação de culpa cristã como princípio moral da dívida universal imposta aos povos colonizados, da dívida como culpa metafísica no duplo sentido econômico e missionário que trouxe a colonização e não foi suprimida pela Independência. Significa a subversão dos valores destrutivos de culturas e linguagens históricas e formas de vida inscrita na racionalidade tecno-econômica do expansionismo colonial e global, moderno e pós-moderno. Ao mesmo tempo, o Paraíso antropofágico é uma afirmação prazerosa do ser e da comunidade humana. Também, é uma reivindicação de selva, não como o lugar sem história que pretenderam os missionários e a antropologia moderna até Foucault inclusive, mas como o lugar originário da humanidade histórica.

Para terminar, menciono uma frase onde ressoam este sentido da Antropofagia brasileira. Palavras pronunciadas recentemente no Rio de Janeiro por um chamã amazonense, Ailton Krenak:

"Os nossos parentes sempre reconheceram na chegada do branco o retorno de um irmão que foi embora há muito tempo, e que indo embora se retirou também do sentido de humanidade, que nós estávamos construindo. Ele é um sujeito que aprendeu muita coisa longe de casa, esqueceu muitas vezes de donde ele é, e tem dificuldade de saber para onde está indo".

notas

1
SUBIRATS, Eduardo. A penúltima visão do paraíso, São Paulo, Studio Nobel, 2001.

[© Ilustrações: "Brasil 1920-1950: de la Antropofagia a Brasília", catálogo da exposição no IVAM Centro Julio González, Valência, 2000]

sobre o autor

Eduardo Subirats é autor de uma série de obras sobre teoria da modernidade, estética das vanguardas, assim como sobre a crise da filosofia contemporânea e a colonização de América. Escreve assiduamente na imprensa latino-americana e espanhola artigos de crítica cultural e social.

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