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O autor discute o significado da exposição Favelas upgrading, representação oficial brasileira na Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza de 2002


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GUERRA, Abilio. FavelaConnects. Arquitextos, São Paulo, ano 03, n. 032.03, Vitruvius, jan. 2003 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.032/714>.

“A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos” (Oswald de Andrade, Manifesto da Poesia Pau-Brasil, 1924)

Em 1929, durante sua primeira viagem ao Brasil, o arquiteto suíço-francês Le Corbusier registrou com lápis colorido o cotidiano das favelas cariocas. Na estilização rápida e graciosa emerge a vida tranqüila da gente simples num habitat harmonioso. O casario homogêneo e simples assenta-se sem conflitos no território. Ao fundo, a deslumbrante paisagem natural da então capital federal. A visão idílica cita involuntariamente os belos quadros pau-brasil de Tarsila do Amaral, em especial Morro da favela, de 1924. O casario baixo e a vegetação natural, os negros simples e tranqüilos, o chão de terra batida, a harmonia de cores e formas... Cena morna, amena, serena, tépida, pacífica, oscilando entre o rural e o urbano.

A coincidência não é desmotivada. Ambas expressam uma visão “estrangeira”. O europeu via no primitivo o frescor e a ausência de compromisso com o passado, necessários para a nova sociedade industrial. A aristocrata brasileira encontrava na cena singela da classe social antípoda a tão procurada essência da brasilidade. Com os olhos embotados pelo culturalismo primitivista, Lê Corbusier e Tarsila simplesmente não enxergaram – por incapacidade ou convicção – o estigma da exclusão espacial, materialização da clivagem social pós-escravocrata. São imagens prototípicas, reiteradamente utilizadas como motivos estéticos, conformando ao longo das décadas a imagem do favelado “pobre, mas feliz”, presente nas artes em geral e nas manifestações populares em particular, como é o caso do carnaval e da música.

A favela – tema freqüente na pintura, música e literatura – migrou na segunda metade do século para o cinema. Se o Orfeu Negro que Marcel Camus filmou em 1959 ainda transpira um exotismo romantizado, a filmografia mais recente registra com tinta naturalista a dura realidade das favelas. Eduardo Coutinho (Babilônia 2000) e Fernando Meirelles (Cidade de Deus) diferenciam-se no gênero e na abordagem, mas convergem na violência cruel do cotidiano miserável e sem perspectivas. Finalmente a favela ganha uma representação fidedigna, cujos protagonistas são criminosos munidos de armas de uso “exclusivo” das forças armadas.

A Favela, desenho catalogado como “carnet b4-287” na FLC, Rio de Janeiro RJ. Le Corbusier, 1929 [Le Corbusier e o Brasil. São Paulo, Tessela / Projeto, 1987]


O acúmulo de representações ao longo do século passado e início deste torna mais compreensível a escolha temática e a abordagem curatorial da representação brasileira na Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza de 2002 (2). Um dos dois módulos da exposição “Favelas upgrading” propõe uma leitura da realidade dos favelados. A instalação de José de Anchieta, segundo as curadoras Elisabete França e Glória Bayeux, “reproduz de forma poética-realista um barraco de favela mostrando a maneira primitiva e, ao mesmo tempo, criativa com que seus moradores-construtores erguem suas casas a partir das sobras que a cidade e a sociedade lhes oferecem”. Os barracos inseridos no contexto urbano constituem o tema dos fotógrafos, e funciona como reforço para a montagem do quadro final, onde a penúria é enfrentada com a peculiar criatividade primitiva e as carências são compensadas pela paisagem exuberante.

O segundo módulo expõe diversas intervenções arquitetônicas e urbanísticas nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, promovidas por organismos estatais, nos âmbitos municipal e estadual. As comunidades esquecidas por décadas passam a ser ouvidas e atendidas pelo Estado, que implanta equipamentos públicos e infra-estrutura nas aglomerações caóticas, permitindo o resgate social e a conseqüente incorporação física e simbólica das favelas no tecido urbano da cidade. São intervenções aparentemente inquestionáveis em seu aspecto social e caso fosse esta uma exposição de projetos em áreas carentes, seria impecável. Mas cabe aqui alguma ponderação, se levarmos em conta que estamos na tradicional Bienal de Veneza e o pretexto é a realização de uma exposição de arquitetura que representa nosso país.

Os projetos expostos teriam como ponto comum um novo conceito de urbanismo, fundado na compreensão da diversidade cultural das comunidades. Sem considerar que o discurso da diversidade cultural leva muitas vezes à legitimação das mais diversas barbáries, o fato inquestionável é o deslocamento da questão para o contexto anteriormente apresentado, onde o cotidiano da favela surge como uma realidade exótica, que traz em si positividades estruturais e demandas que lhes são inerentes. O risco latente é se descambar rapidamente para o populismo, onde a modéstia da intervenção estatal se justifica pela singeleza da comunidade beneficiada, forma mefistofélica de se dar pouco como se fosse muito.

Mas para aqueles que estão preocupados em olhar a arquitetura a partir de seus próprios pressupostos, o incômodo maior é a inexistência de uma valoração das intervenções segundo critérios propriamente arquitetônicos e urbanísticos. Projetos muito bons e bem construídos se misturam a outros muito ruins, que oscilam na busca das “cores locais” e na incorporação subjetiva de formas e símbolos associados ao poder econômico e extensamente utilizados em shoppings centers e condomínios de luxo, devidamente rebaixados à precariedade local.

Há também uma certa inadequação da exposição ao contexto geral da mostra. Certamente a “favela” estaria em casa na polêmica edição anterior da Bienal de Veneza, com assinatura de Massimiliano Fuksas, onde o lema “Less aesthetics, more ethics” condicionou as exposições a abordarem o conflito entre luxo arquitetônico e miséria social. A curadoria atual do iugoslavo Deyan Sudjic propôs “Next” como tema geral. A discussão volta-se para a crescente preocupação com o meio ambiente e a decorrente transformação do conceito de alta tecnologia. Demarca-se um novo horizonte de apostas construtivas, agora mediadas pela busca da auto-sustentabilidade. Poluição, recursos naturais, energia renovável, reciclagem, renovitalização, renaturalização, etc. – uma nova semântica aos poucos se monta, abrindo possibilidades de prospecções otimistas na busca de cidades mais harmônicas e voltadas para o bem estar coletivo.

Morro da favela, óleo sobre tela, 64 x 76 cm, coleção Sérgio Fadel, Rio de Janeiro. Tarsila do Amaral, 1924 [AMARAL, Aracy (org). Tarsila do Amaral. Buenos Aires, Fundação Finambrás, 2000]


A revista Domus, dirigida pelo curador iugoslavo, apresenta em sua edição de setembro uma síntese da Mostra com obras de Tadao Ando, Norman Foster, Steven Holl, Dominique Perrault, Herzog & De Meuron, Peter Zumthor e outros poucos eleitos do jet set arquitetônico internacional. Nada mostrado é muito sensacional, afinal a dúvida sobre o que fazer é a tônica da produção arquitetônica em todos os rincões. Também não se vê um esforço maior em separar investigações sérias das operações arrivistas de marketing. Não há nenhum demérito, portanto, na ausência da exposição brasileira nesta e noutras reportagens sobre o evento. Mas não deixa de ser um sinal de alerta que a arquitetura brasileira se faça representar na festa por uma exposição tão deslocada da discussão contemporânea. A dúvida que fica é se um país pertencente ao seleto grupo das dez economias mais poderosas do planeta não poderia se apresentar num fórum tão importante de uma maneira mais afirmativa e conveniente.

Com se vê, a favela está na ordem do dia. Tecnicamente, em muitas delas impera a guerra civil, afinal a lei que vale é a exercida com violência incontida pelos traficantes. Enquanto isso, o aparato estatal prostra-se inerte, desinteligente a ponto de afirmar que criminosos vulgares, que se alternam no poder pelo sofisticado sistema do assassinato, formam a confraria do crime “organizado”! Afinal, possuem celulares... E essa versão chega às alturas graças aos meios de comunicação de massa, que alardeiam uma sofisticação criminosa que não existe (ao menos na favela!), mas que certamente vende muito mais do que a já desbotada versão que tudo isso se resume ao necessário resgate de uma dívida social enorme, que jamais esteve a sério na agenda política deste país. Na favela, a visão de um primitivismo sensual foi soterrada pela barbárie rancorosa. A favela nos conecta irreversivelmente com nosso passado trágico e certamente não vai ser a arquitetura que fará a ruptura histórica necessária (3).

notas1
Artigo publicado originalmente na revista Bravo!, nº 62, ano 6, nov. 2002, p. 15-17.
2
Exposição Favelas Upgrading, 8ª Mostra Internazionale di Architettura “Next”, Curadoria de Elisabete França e Glória Bayeux, Bienal de Veneza, Itália, de 7 de setembro a 3 de novembro de 2002.

3
O presente artigo foi escrito antes das eleições presidenciais de outubro de 2002, quando era ainda incerto o resultado final.

sobre o autor

Abilio Guerra é professor da FAU PUC-Campinas, ex-editor da Óculum, atual editor de www.vitruvius.com.br e co-autor de Rino Levi – arquitetura e cidade (Romano Guerra).

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