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architexts ISSN 1809-6298


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A partir de uma reportagem publicada no jornal Folha de São Paulo – “Médico encontra vida tranqüila na Rocinha” – a autora supõe que o personagem optou por “viver em liberdade” ao adotar como norma de vivência a “idéia de comunidade”


how to quote

COSTA, Ana Lúcia Reis Melo Fernandes da. Lugar, o absurdo da liberdade. Arquitextos, São Paulo, ano 04, n. 045.06, Vitruvius, fev. 2004 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.045/610>.

Recolhi no dia 17 de agosto de 2003, no Caderno Cotidiano da Folha de São Paulo, a seguinte matéria “Médico encontra vida tranqüila na Rocinha”, que vinha acompanhado de uma explicação: “morador há 19 anos da maior favela da Zona Sul (no Rio), cirurgião aposentado foi tachado de maluco quando mudou para o local” (1). Essa manchete chamou-me a atenção, pela mensagem do “absurdo” que tenta demonstrar, embora para o jornal, esse cirurgião de 75 anos seja considerado a “antítese da paranóia da violência que vem acometendo os grandes centros urbanos no Brasil”.

Nada anormal demonstrar o absurdo dessa atitude, quando o normal é construído pelo coletivo, de forma a organizar a sociedade com cada coisa em seu lugar, o velho ditado “cada macaco no seu galho”. Pensando assim, esse “Doutor” (2) como é chamado, é um morador atípico numa comunidade onde a renda média dos chefes de família é de R$ 451,00, de acordo com o Censo de 2000 (sic). Sua casa está encravada no meio da favela, num terreno de 10mil metros quadrados, em estilo colonial, onde ele cria mais de 200 patos, perus e galinhas, duas vacas, uma mula, oito cachorros e passarinhos. Procura, neste lugar como ele mesmo afirma na entrevista, a “liberdade de viver a vida” do jeito que ele merece.

Ser esse morador “atípico” exige dele prática de hábitos simples, que faz diminuir o abismo social entre ele e seus vizinhos, principalmente buscando o bom, afetivo e cordial relacionamento. Sente-se parte integrante da comunidade, conhece seus segredos e dificuldades, porque também divide suas necessidades com todos. Como diria Clifford Geertz (3), tornou-se um nativo, para fazer uma leitura, por definição, a mais aproximada possível, da cultura local. Para os moradores, “não tem vizinho melhor”, ele não pede nada a ninguém. “Se acontecer alguma parada com ele, eu entro na frente para ajudar”, diz um deles.

Na verdade, esse fato causado pela opção dele de “viver em liberdade”, o coloca em destaque em relação à maioria dos moradores brasileiros que parecem desprezar a “idéia de comunidade” (4), no sentido em que ele a está usufruindo. A maior parte dos moradores brasileiros, pertencentes à sua “classe social”, procuram viver em condomínios fechados, isolados da idéia de um viver comunitário. Os condomínios fechados constituem um tipo desejável de moradia, de prestígio, onde o fator segurança, equipamentos de uso coletivo, serviços diferenciados, quase personalizados e localização contam muito. Segundo Teresa Caldeira (5), esses condomínios fechados são uma nova versão residencial do que ela classifica como enclaves fortificados.

Pode-se fazer uma pequena aproximação crítica do que seja morar num condomínio fechado, ou enclave fortificado e a opção do sr. “Doutor” de morar numa comunidade, que de certa forma é também fechada, um “lugar” não habitável, segregado, onde supostamente a “liberdade” de bem morar seria restrita. Partindo da idéia de que sociedades diferentes produzem concepções diferentes de tempo e espaço, e, portanto, ambos podem ser uma construção social, esses dois locais de moradia, um enclave fechado qualquer e este enclave na Rocinha, estariam em contradição, porque ambos estão sendo metaforicamente construídos, um de forma positiva e outro de forma negativa.

O que significa, hoje, morar num condomínio fechado? Segundo ainda Teresa Caldeira, enclaves tendem a ser ambientes socialmente homogêneos, em que o grupo social que o ocupa deliberou sua escolha para viver em espaços onde estejam instaladas “pessoas seletas”. Onde supostamente são mantidas longe as interações indesejadas, movimento, perigo, heterogeneidade e imprevisibilidade das ruas. Os enclaves cultivam um relacionamento de ruptura com o seu entorno mais próximo a rua e o resto da cidade, elaborando um processo onde se organiza as diferenças como desigualdades.

São, então, espaços de segregação social, onde por uma elaboração simbólica, transforma o enclausuramento, isolamento, restrição e vigilância em status. Além de simultaneamente seguir uma estética de “segurança” que serve para definir um novo modelo nas moradias. Segurança e controle são condições para manter fora o outro, aquele que não faz parte da homogeneidade do sistema que se forma. E se todo sistema tem coerência, este não é diferente, cria uma imagem de vida regulada por princípios que aparentemente são democráticos, com responsabilidade e civilidade.

Mas, nesses condomínios a “ordem” pode ser outra. O desrespeito à lei é quase sempre uma regra. São espaços privados de uso coletivo, onde a possibilidade do individual sem limites, ou melhor com tênues limites, perpassa a relação entre os vizinhos. Isso fragiliza a noção de coletividade, responsabilidade e a permissividade mascarada por uma pseudo “liberdade” aparece contribuindo para que seja exatamente o inverso do que se espera de um espaço reservado, puro, limpo, organizado. Na verdade revelam que são espaços onde os princípios democráticos são encobertos, uma vez que seus moradores têm pouco interesse em envolver-se com a sociedade local e atividades coletivas.

Isolam-se, coletivamente. Observando um condomínio fechado específico (6), em Boa Viagem, encravado entre as quadras da malha urbana, talvez possamos refletir sobre alguns pontos que estamos levantando. Este condomínio, que passaremos a chamar de “Condomínio das Letras”, tem como adjacências serviços em geral, com acesso rápido às principais vias primárias e terciárias, além das que interligam outros bairros e o centro. Está localizado numa faixa de terra urbana com um alto valor imobiliário e, portanto é ocupado por uma classe média alta. Ele segue formalmente muitas das características que vimos descrevendo até aqui.

Aparentemente, nos parece que ele não foi projetado com os muros externos (7), pois a disposição dos lotes nas quadras são bastante uniformes e seguem uma lógica onde a parte lindeira do mesmo dá para uma via de acesso principal, quer seja interna do condomínio, ou externa com as ruas de contorno do bairro. Os lotes possuem dois acessos, portanto, esse principal e o de serviço que se faz por traz, na outra rua, que coincide com a parte lindeira da próxima quadra de lotes. Com esse desenho os primeiros lotes teriam acesso direto da rua do bairro, mas com os muros externos, isso passa a não acontecer, deixando-os só com o segundo acesso. O recebimento dos muros externos, rompeu com a dinâmica inicial do condomínio, e, delimitou seu espaço segregando-o dos espaços públicos.

As unidades residenciais não possuem garagem, e com algumas exceções as piscinas estão presentes nas áreas frontais de lazer. Mesmo com os carros nas ruas internas, nota-se pouco relacionamento entre os moradores, que além dos muros externos, evitam o confronto de qualquer encontro com muros internos altos entre suas casas. Ali eles vivem quase que como “caramujos”, que só aparecem de vez em quando, enroscados e protegidos na pele da concha, dentro de um espaço purificado, nos moldes como descreve Richard Sennet (8).

A construção do espaço de uma casa, por outro lado, já é um fator bastante excludente, onde os limites da forma – a arquitetura – impõem o distanciamento entre um homem e o resto de seu entorno. O condomínio poderia servir para superar essa barreira, uma vez que ele também limita o espaço perigoso da rua e o confina ao ambiente interno, onde os pontos de múltiplos contatos, não só físicos como também sociais, incluindo os serviçais, garantiria o gosto de saborear a “liberdade” de viver isoladamente dos perigos mundanos.

Mas isso não acontece, a segregação é uma totalidade entre os seus moradores, e, se existe o espaço de um “lugar” onde possa estar sendo desfrutada alguma “liberdade”, esse estaria entre os serviçais que se esforçam para reproduzir os padrões de seus patrões, mas que no fundo resistem refutando-os e isso é histórico. Um espaço de liberdade fora do controle social, talvez moldado no que Michel Foucault denomina de heterotopia (9). Afinal, onde está então, a tão sonhada liberdade de bem morar nesse condomínio? A porta fechada representada nos muros, passa a ser uma grande metáfora.

Nesse caso, então, a construção de um cenário que se aproxima um pouco ao do Novo Urbanismo é uma realidade, onde se explora a dinâmica das conexões físicas e sociais em atitudes que poderiam ser categorizadas como neotradicionalistas, em referência à procura ou busca de espaços urbanos tradicionais, onde o desenho rejeite os “tempos modernos”, pedindo a volta à uma vida em comunidade. A porta está fechada, mas a tecnologia atual permite conexão imediata com o resto do mundo. Seria então essa “liberdade” que se procura?

No Novo Urbanismo, os princípios que moldaram comunidades bem sucedidas no passado ressurgiram, graças às articulações como as de Jane Jacobs, Aldo Rossi, Vincent Scully e Leon Krier, citando apenas alguns, reaparecem contribuindo para a formação da base conceitual e tem atraído muitos seguidores. O Novo Urbanismo oferece soluções que são capazes de produzir lugares que são verdadeiras ilhas no contexto urbano. Esses seus princípios, segundo Adriana Veras (10), podem oferecer um caminho em direção a melhoria de qualidade de vida, mas são profundamente envolvidos no sonho americano. Qual seria o sonho brasileiro?

E falar do sonho brasileiro é falar de uma diversidade muito mais amalgamada, entrelaçada, é falar de várias classes, e considerar também o fetiche materialista como um profundo modificador de relações nessa diversidade, como lembra David Harvey (11). Fetiche mercadoria, que com a ajuda da moda, cujo caráter é de modernização, prescreve um ritual para ser venerado, evidenciando a ambigüidade, a dialética, sem muito espaço para “liberdade”, ou melhor, tentando encobrir tudo sobre o manto da homogeneidade.

E o “outro”, o que está imediatamente do lado de fora? Não basta construir um mundo purificado colocando-o debaixo do tapete, pois o exercício de liberdade não pode ser individual. O outro é uma “realidade visível” entendendo Walter Benjamin (12). As barricadas voltam, como voltaram na França, apesar das intervenções modernas. O mito da solidariedade precisa deixar de ser mito. É preciso buscar o significado nas relações, procurando bases mais eqüitativas, menos discursivas.

Voltando para a matéria do início do texto, o sr. Doutor afirma que existe mais solidariedade entre os moradores da Rocinha do que em Copacabana. Ele procura significar as relações dando lhe a importância conforme as suas necessidades. Por opção ele só usa os serviços dos moradores da favela, tem tudo lá, freqüenta o bar onde raramente paga sua conta. Sabe que tem bandido na favela, mas lembra que também tem no Senado, na Câmara ou na Avenida Atlântica.

O portão de sua casa está sempre aberto, e sua receita para viver dessa maneira é muito simples: respeitar para ser respeitado, talvez por isso nunca tenha ocorrido um assalto em sua casa. Para ele, quem sempre morou em condomínio de luxo não sabe como é viver em liberdade (lá). As pessoas se ajudam, organizam o trânsito, se está complicado, entre outras coisas. Esse é o olhar de quem conhece os dois lados da cidade.

Procurar significar as relações é envolver-se de fato e com sinceridade, não por caridade ou pena. É perceber a ordem que está lá, e só precisa ser entendida, como numa floresta, onde o meio natural conspira a favor de quem está acostumado com ela. Assim é também num meio orgânico urbano. Não existe “absurdo” nenhum em querer estar num “lugar” onde se pode viver a vida que se merece, com “liberdade”.

notas

1
GÓIS, Antônio; WOLTHERS, Gabriela. Médico encontra vida tranqüila na Rocinha. Folha de São Paulo, Caderno Cotidiano, 17de agosto de 2003.

2
Waldir Jasbik é cirurgião cardiovascular aposentado do Hospital Universitário Pedro Ernesto, onde chefiou a equipe de cirurgia cardíaca e é membro do conselho editorial da Revista Brasileira de Cirurgia Cardiovascular.

3
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Zamar, 1978, p. 25.

4
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros. São Paulo, Editora 34 / Edusp, 2000, p. 262.

5
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Op. cit.

6Até aqui me referi a condomínios fechados de maneira generalizada, que podem estar localizados em qualquer cidade ou país, a partir daqui quando falar sobre um condomínio, estarei me referindo a este que passarei a descrever. É datado e localizado.

7
Em caso contrário arriscaríamos a dizer que os fluxos implantados estariam exigindo do pedestre um esforço enorme para o acesso direto às suas unidades, o modernismo utópico abusou um pouco desse tipo de ordenamento espacial.

8
SENNET, Richard. The uses of disorder. Nova York, Faber and Faber, 1970.

9
Apud HARVEY, David. Space, time and place. In Justice, nature & the geography of difference. Oxford, Blackwell, 1996, p. 230.

10
VERAS, Adriana. O novo urbanismo. Jornal do IAB/PE, nº 49 e 50. Recife, Gráfica Amália, 2001.

11
HARVEY, David. Op. cit.

12
BENJAMIN, Walter. Paris, capital do século XIX. In: 1) LIMA, Luiz Costa (org). Teoria da Literatura em suas fontes. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1975. 2) BENJAMIN, Walter. Sociologia. Tradução e introdução de Flávio R. Kothe, São Paulo, Ática, 1985, 2ª ed., 1991.

sobre o autor

Ana Lúcia Reis Melo Fernandes da Costa é arquiteta e vice-presidente do IAB/DN Região norte

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