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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
o autor registra a inversão do mito da cidade como o lugar da segurança, a fortificação, e através de uma perspectiva histórica, apresenta as transformações das grandes cidades que as tornaram insuportáveis


how to quote

MATA, José Veríssimo Teixeira da. A favor do urbanismo e da cidade. Arquitextos, São Paulo, ano 08, n. 089.05, Vitruvius, out. 2007 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.089/200>.

“A cidade grega tem, na sua origem, uma estrutura e configuração muito simples”, como nos informa Argan, ’’ela é dominada pela altura da acrópole, surgida inicialmente por exigências defensivas e como morada principesca, e depois reservada quase exclusivamente para santuários e edifícios representativos. Ao contrário, o centro da vida civil, política e comercial fica na ágora, em geral num lugar plano. Na parte inferior estende-se livremente a cidade baixa (ástu), onde residem os artesãos, mercadores e camponeses. Com o tempo, a ligação entre a cidade alta e a baixa vai se estreitando; a vida urbana torna-se mais complexa e diferenciada e a cidade se apresenta como um organismo articulado. Multiplicam-se assim os tipos dos edifícios (templos, teatros, escolas, ginásios etc.) sempre conjugados à estrutura orgânica da cidade e às exigências da vida comunitária. A ordem urbanística era ligada à ordem política: quando a população superava o número estabelecido pelas leis, uma parte ia fundar uma nova cidade” (2). Poderíamos dizer que mais que ordem, havia uma geometria política rigorosa, a qual conduziu, por exemplo, à fundação de colônias na península itálica. Ainda mais importante, para se compreender a idéia de Pólis, talvez seja figurar o todo articulado que ela representava.

O pseudo-Aristides descreverá Rodes, cidade projetada por Hipódamo de Mileto (o mesmo que construíra os muros do Pireu, o famoso porto de Atenas), da seguinte maneira: “No interior de Rodes não se via uma casa pequena ao lado de uma grande; todas as habitações eram da mesma altura e apresentavam a mesma ordem de arquitetura, de modo que a cidade inteira parecia formar um mesmo edifício. Ruas muito largas cortavam-na em toda a sua extensão. Eram traçadas com tanta arte, que de qualquer ponto de onde se dirigisse o olhar o interior sempre apresentava uma bela decoração. Os muros no vasto recinto da cidade, entremeados por torres de surpreendente altura e beleza, causavam de modo especial a admiração. As alturas extremas serviam com farol aos navegantes. Chamo a atenção: a cidade dava a direção, ela oferecia segurança mesmo ao navegador, ao lhe emprestar sua referência” (3).

Prossegue o tal pseudo-Aristides: “Tal era a magnificência de Rodes que, sem vê-la, não se podia ter uma idéia somente com a imaginação. Todas as partes dessa imensa cidade, ligadas entre si em belíssimas proporções, compunham um conjunto perfeito que os muros pareciam coroar. Era a única cidade que se poderia dizer fortificada como uma praça de guerra e ornada como um palácio” (4).

A cidade é, portanto, a fortificação, a cidadela, o lugar onde o homem se defende do inimigo da natureza ou do inimigo militar. Desde cedo, portanto, a despeito de todas as suas contradições e mesmo antagonismos interiores, quando setores da cidade se defendem ou se armam contra outros setores da cidade, isto é, o Estado, a cidade aparece como momento mítico, como o lugar que oferece segurança aos seus habitantes, que lhes oferece proteção contra a natureza, proteção contra o inimigo real ou imaginário. Eu insisto nesses aspectos, pois cada vez mais surge, como mito contemporâneo, o campo, o refúgio bucólico, a natureza, que aparecem como ideal de segurança ou de tranqüilidade. Isso apenas quer dizer que as transformações, que se operaram nas cidades, nas megalópoles, as tornaram insuportáveis. É aqui que surge a natureza como lugar seguro, como o sonho do cidadão desejoso de se retirar dos horrores que a cidade oferece quase todo o tempo.

Não se trata de fazer aqui a apologia de um tempo que já não pode ser vivido, mas apenas de fazer, projetando o nosso olhar sobre o longo percurso da história, o registro da inversão dos mitos.

A cidade que era um lugar, e é um lugar, se transforma, em algum sentido, em um não-lugar, em um centro produtor e reprodutor de atopia, de seres átopos, de desajustados, de deslocados, de desubicados, como se diz em espanhol, de seres sem o seu respectivo onde.

Toda a divisão do trabalho, isso se sabe muito bem, criou e produziu novos lugares para o homem, e esse nas sociedades passadas e mesmo no período escravista tinha sempre o seu lugar, a sua função, pois essas eram sociedades orgânicas (5). Chega-se, então, à nossa época, na qual o homem que trabalha já não é adequado ao processo de trabalho, e nem o processo existe em conformidade com ele. Aqui a função do homem lhe aparece cada vez mais como uma não-função. Estamos falando do tempo em que o trabalho se torna desemprego, tempo em que se rompe com a organicidade dos períodos anteriores. A idéia de um organismo, ou de um edifício de articulações, para nos referirmos novamente à descrição do pseudo-Aristides, em que cada parte joga o seu papel e em que cada um cumpre a sua função, parece esvair-se, quando a sociedade, e o espaço dessa é, nos dias de hoje, fundamentalmente dado pelas cidades, produz um exército de átopos, para os quais já não há função, ou no máximo se lhes reservam funções eventuais.

É fácil perceber que desde a antigüidade surge a idéia de uma cultura da cidade, esse o paradigma grego. Vemos o caso de Atenas com seus templos, com seus teatros e até com deuses locais, com seus templos específicos para esses deuses locais, produzindo uma cultura rigorosamente citadina, rigorosamente daquela cidade. O cidadão vivia a cidade e também o não-cidadão, todos eles se mediam freqüentemente, ao circularem a pé pelas ruas de Atenas, em relação a magnificência das construções ali postas. As assembléias, os tribunais, os seus julgamentos, as festas, os rituais, deveriam oferecer naturalmente um vasto material para os engramas (6) dos habitantes de Atenas, fixando ali em cada um deles esse registro da memória coletiva da cidade. Nessa, cada um, é importante remarcá-lo, tinha o seu lugar, fosse o lugar do senhor ou do escravo, do juiz ou da hetaira. A cidade produzia a sua cultura e a cultura era cultura da cidade, até porque as informações se trocavam entre as diversas póleis a uma velocidade que não interferia no ritmo de cada uma. Atenas com sua acrópole, com o pritaneu, com seu parthenon, com o pireu, com sua ágora, era cidade profundamente marcada por sua identidade arquitetônica, definida pelo seu traçado urbanístico e por suas construções. Mas poderíamos passar pelas cidades italianas do renascimento, por Roma de todas as épocas, ou mesmo por cidades brasileiras, antes do boom da indústria e do automóvel, da tecnologia da informação, dos luminosos, e reconhecer, no seu máximo de identidade, a cultura da cidade.

Nesse sentido, poderíamos sem receio falar da cultura de uma Ouro Preto, de uma São Paulo, de uma Recife ou de uma Salvador, com as referências iconográficas e simbólicas de sua arquitetura, da arquitetura de seus templos, marcando a cada instante a memória de seus habitantes e engendrando, de alguma forma, o seu sistema de referências e auto-referências. Poderíamos, é verdade, falar de uma cultura de província por oposição ao chamado centro, ou a um ideal cosmopolita. Todavia, a presença dessa cultura era dado importante na construção da lógica de referências pessoais ou de auto-referências consistentes. Podia-se até falar em um vínculo visível entre as gerações, pelo qual se podia construir um sistema de meta-referências capaz de dar ao habitante da cidade a consciência de sua situação, de seu tempo, a despeito de todos os limites com os quais eles a podiam pensar. O indivíduo aparecia, de alguma forma, a despeito de todos os enredos ideológicos, como um homem no mundo, e não como um mero ponto luminoso, magicamente dado e magicamente eclipsado. Mesmo quando se negava a história e o papel do homem nela, e isso foi muito importante durante séculos, o homem aparecia como criatura ungida trabalhando para uma “ racionalidade” que ele identificava, isto é, havia coordenadas perfeitamente nítidas: assim fulano de tal, criatura de Deus, artesão-ourives à disposição do conde tal, etc., etc. Quantas vezes se reservou nas ideologias passadas ao homem o papel nítido de mera coisa? Muitas: escravo, servo, negro, mulher, dirão. Todavia, essa coisa aparecia, ela própria, dentro de um discurso de organicidade.

Diferentemente, em nossa época, boa parte do enredo ideológico se transforma em enredo imagético, e o ponto luminoso já é parte de seu alfabeto, de sua perversa e dominadora codificação, em um mundo de produção de imagens por aparatos, os mais sofisticados e de maior velocidade. Agora não é possível identificar o homem nem como coisa (condição que naturalmente ele já rejeita) atuando dentro do todo articulado. Então, trata-se não de retirar-lhe da condição que o desumaniza, onde, de fato, ele não é mais que coisa, mas de fazê-lo esquecer que está desumanizado, como está desumanizado e por que está desumanizado. Essa a inglória tarefa dos aparatos ideológicos, das máquinas de imagens contemporâneas, que nos impedem de chegar à compreensibilidade do caos contemporâneo, através dos cacos fragmentados onde ela pode acontecer de algum modo, a começar pela compreensão dos mecanismos de produção e de apropriação de valores em nossa sociedade. Essa, a função fundamental da imagem, dos pontos luminosos, da tv, do cinema, da arquitetura e da música em nossas cidades. Sucedâneo para o real e não mimese ou integração do real. É por isso que o urbanismo, a mais integradora dessas disciplinas, é tão esquecido ou aviltado, e sua crise é a mais profunda, afinal seu lugar não é outro, senão o todo articulado, a cidade articulada.

É importante, no que toca à temática, estar atento à profundidade das palavras de Cacciari sobre os grandes aglomerados urbanos de nossa época, quando reconhece que (7) que a metrópole não é mais cidade, mas um sistema de circuitos de informação e de comunicação. O objeto é substituído pela imagem, o que é talvez o fato mais importante, o objeto é substituído por sua imagem em escrita luminosa, anúncios, pontos luminosos, imagens de televisão. Com isso, crianças, adolescentes e adultos deixam de ver e escrutar rostos reais para se embriagarem, horas e horas, de imagens recortadas, caóticas, que os remetem a uma realidade ou pseudo-realidade, que é imagem da metrópole mundial. Trata-se, de alguma forma, da má-infinitude do desejo de afirmação ou de identidade, que o habitante da cidade ou dessas falsas cidades busca nesse faiscante e ruidoso sistema de comunicação. É a falsa compensação pela perda da individualidade.

Já sublinhara Argan que “O valor do indivíduo, do ego, foi sendo reduzido, até ser eliminado. O indivíduo nada mais é que um átomo na massa. Elimina-se o valor do ego, elimina-se o valor da história de que o ego é protagonista, eliminando-se o ego como sujeito, elimina-se o objeto correspondente, a natureza” (8). Passamos à condição de gotas de Pollock (9).

Nas cidades clássicas, o habitante reconhece-se em cada elemento estrutural da cidade e em cada elemento superestrutural, dos ritos à construção dos edifícios, coisa que já não acontece em nossa época, época da produção de mercadorias em escala gigante, em que o homem apenas aparece como um produtor de um não-lugar. Vemos que o processo de mecanização, de robotização, de automação, de comandos inscritos em cristal, de altíssima concentração do chamado capital constante, restringe cada vez mais os círculos dos produtores de valor, concentrando-os nas matrizes, nos países desenvolvidos e deixando aos países dependentes apenas a condição de empacotadores de produtos, de fornecedores de matéria- prima, ou de matéria-secunda. Essa condição de dependência gera o exército de favelados, que se avoluma também devido às condições climáticas ideais ou mais favoráveis de países como o nosso. É impossível pensar um exército de desassistidos da dimensão desse das favelas brasileiras em um país de clima frio. Ali o clima oferece um limite mais claro à miséria, o que impõe às elites a concessão de padrões mínimos superiores aos nossos.

É certo que favelas com as dimensões espetaculares das brasileiras só são pensáveis em uma sociedade em que se pode vender a mão de obra, isto é, uma sociedade de trabalhadores livres. Eis por que seria impensável um exército de escravos na Rocinha. Não haveria como reduzi-los à condição de escravos soltos em um enorme espaço, que, de alguma forma, é deles. Os escravos apareciam como agregados das casas, e, muita vez, alojados em uma de suas dependências mais precárias. Esse o motivo por que Aldo Rossi, ao se referir à Roma antiga, diz: “A ínsula quase resume a cidade em suas divisões; nela, há mais mistura social do que comumente se pensa” (10). E a ínsula era apenas o tipo mais precário de construção romana. O outro, aquele que se lhe opõe, o dómus, é o mais sólido.

Historicamente, o aparecimento dos bairros de trabalhadores, ou posteriormente dos bairros dos sem-trabalho, acontece com o aparecimento dos meios de trabalho coletivo que permitem escolher uma habitação que não se encontre na vizinhança imediata do local de trabalho. No caso brasileiro, a crise do escravismo, que culminou com a liberação dos escravos, gerou uma população livre que não foi absorvida, devido ao lentíssimo desenvolvimento de nosso capitalismo e ao seu caráter antidemocrático. A isso acrescem a modernização autocrática do campo com a expulsão de milhões de camponeses e, já num passado recente, disso a cidade de Campinas é testemunha, a chamada abertura da economia, sustentada por um câmbio artificialmente alto, combinado com medidas abertamente destruidoras da indústria nacional. Assim chegamos as enormes favelas de nossas cidades nos dias atuais. Elas fazem, desse modo, parte de nossas paisagens, “integram”, uso o termo na falta de melhor, o nosso espaço urbano, ou estão sob a proteção da cidade, ainda que meramente formal, localizando-se nas suas periferias ou não, como algumas ruas quase plenamente favelizadas do histórico bairro do Bexiga.

A favela revela a crise da vida comunitária, a incapacidade de se resolverem os problemas fundamentais das massas, revela a crueldade de uma distribuição iníqua das riquezas, a crueldade imposta pela privatização do solo urbano, que é um bem público. A própria cidade é, de alguma forma, privatizada, ficando para os que nada detêm as fímbrias da não-cidade. Essa privatização é tão repugnante no plano moral, diria Argan, quanto a privatização do ar que respiramos. E mesmo o ar é, de fato, privatizado, quando se atribui a particulares, por exemplo, faixas do litoral ( e com ele o direito à brisa e à praia ) de cidades à beira-mar, como a Via Costeira em Natal, para não falar da apropriação de ruas em bairros nobres em algumas das cidades de São Paulo, fechadas aos populares, mediante cercas ou cancelas. Se se pretende atacar seriamente esses problemas, é imprescindível e inadiável, além de políticas sérias de emprego, de salário, de educação e cultura, de transporte de massas e de habitação popular, a reforma do solo urbano. Sem isso, o Brasil não pode ter a pretensão de ser um país civilizado. Sem serem excludentes, há que se admitir que a reforma do solo urbano é muito mais importante para o país do que a chamada reforma agrária.

Favela ou bairro nobre, habitante de uma ou de outro, bairros das mais diversas classes, todo esse universo distinto, vivendo o espaço urbano ou suas projeção na periferia, compõe o que chamamos de cidade e essa é de certo uma das suas acepções.

Todos aqui, do habitante da cidade propriamente dita ao habitante da favela, ou ao habitante do entorno urbanizado, estão, de uma forma ou de outra, jogados nesse grande ambiente de informação que chamamos cidade. Ou talvez haja duas cidades, como nos dizia Argan, tendo em mente a sua Roma: “Há uma cidade de grandes estruturas que tem necessariamente uma duração de anos e séculos (que é história). E há a cidade de um dia, a cidade que dá a imediata impressão de ser feita de imagens, de sensações, de impulsos mentais, a que realmente vemos e que não é dada pelas arquiteturas imóveis – que talvez não mais existirão ou que serão estruturas distantes ou quase invisíveis – mas pelos automóveis, pelas infinitas notícias que são transmitidas através da publicidade, da TV, pelas vitrines dos Shoppings” (11).

Sufocadas por esses ruídos, por essas luzes, por esses luminosos, por uma TV que nos leva para realidades distantes (para a metrópole mundial, à qual uma parte da elite de todos os países parece integrar-se, como já observava Zinoviev), sufocadas por esses fatos todos, a arquitetura monumental, a histórica, a cultura genuinamente nacional perdem o seu peso.

Chamo a atenção aqui para esses monumentos arquitetônicos ou esculturais, para o centro da cidade, os quais, quando realmente vivos, podem funcionar como eficazes índices da memória individual e da memória coletiva. A visão de uma catedral, por exemplo, poderia ensejar não só a experiência estética da arquitetura do templo, de sua história, mas a própria tentativa de alcançar a dimensão do sagrado, da perenização da experiência humana. Tudo isso, porém, é sufocado no ambiente saturado de imagens artificiais, de telas e anúncios, de monitores. Acresce que os índices da memória funcionam ainda menos, quando o habitante tem um conjunto de conhecimentos limitados da cidade e do país. Então, os índices deixam de funcionar como índices, pela ausência de um sistema de referências que permita decodificá-los. Nesse contexto, a combinação de fatores é terrível: vamos desde o menino do bairro nobre em sua cultura de jogos de vídeo americanos até o de favela em sua errante história de sobrevivência pelos muitos caminhos da cidade, cheia de pequenas infrações, ditadas pela curiosidade ou pelo estado de necessidade. O que esperar desses pequenos, anos depois, já adultos, em relação à cultura, à memória da cidade ou coletiva? E, quando a relação entre a memória coletiva (objetivada em edifícios, monumentos, livros, filmes) e a memória subjetiva não opera, são destruídas a memória da cidade e a memória nacional. Não nos esquecer que se busca estabelecer vínculo, ponte psicológica, entre a periferia e o chamado centro do mundo, introduzindo-se emblemas da metrópole (aqui como centro do mundo), pela arrebatamento ensurdecedor da antimúsica, pela narcotização da cinematografia hollywoodiana. Somos alheados de nossa realidade pela saturação de imagens e golpes sonoros que não guardam a menor relação orgânica com as nossas vidas, mas que nos atam aos padrões metropolitanos de alienação.

Em nível ideológico, duas posições sustentam esse processo: a primeira o pinta como espontâneo; a segunda reconhece a sua dureza, mas sustenta a sua inevitabilidade. Já não poderíamos fazer mais nada, é o que nos fazem entender.

O tema da narcotização pela informação não é novo. A República de Platão já o aborda, e o imortal Cervantes faz dele uma das matérias fulcrais de seu genial Dom Quixote. É verdade que nem Platão nem Cervantes conheceram os meios visuais e sonoros de encatamento tão próprios de nossa época, que tornam a questão politicamente ainda mais relevante.

Argan, de modo perspicaz, fala-nos da cidade de um dia. Em um dia, não há história. Não há referência histórica, sequer heauto-referência.

Essas impressões visuais ou auditivas, destituídas do sentido da história, têm efeito muito mais devastador do que os romances de cavalaria lidos pelo cavaleiro manchego. Ali talvez fosse possível, assim acreditavam o cura e barbeiro da cidade, fazendo um rigoroso escrutínio na biblioteca de Dom Quixote, lançando ao fogo as obras mais demoníacas, salvar o bom fidalgo! Não se trata evidentemente de escolher, de maneira mecânica, esse tipo de censura, mas de apreender o significado imorredouro dessa grande obra da literatura mundial, que o diálogo, transcrito na seqüência, entre o cavaleiro andante e o seu escudeiro tão bem condensa e que está no início do capítulo VIII do primeiro livro. A essa altura, Dom Quixote anuncia o seu combate próximo com os gigantes que tem pela frente:

“– Que gigante? – pergunta Sancho Pança.

– Aqueles que vê lá adiante – respondeu seu amo – de longos braços, tanto que a alguns deles sucede de tê-los de quase duas léguas.

– Veja o Sr., respondeu Sancho – que aqueles que lá se encontram não são gigantes, mas moinhos de vento e o que neles parecem ser braços são as pás, que, tocadas pelo vento, fazem andar a pedra do moinho.”

Poderíamos falar sobre os efeitos terríveis da informação que, talvez, tenha levado Dom Quixote a ver gigantes, onde estavam apenas moinhos de vento. Eis o que essa passagem nos ensina: Dom Quixote é incapaz de identificar aquilo que vê, ou talvez simplesmente não o veja. O real não lhe aparece como deveria aparecer, não lhe aparece senão como imagem daquilo que não é. Essa, a posição do indivíduo diante da cidade de um dia, a cidade que não é cidade, que não é. Ele, o indivíduo, vê a cidade de um dia, mas não vê a cidade em sua teia de sentidos históricos. Talvez pudéssemos dizer com Dom Quixote que ele não vê os gigantes que realmente o sufocam. A perda do sentido da história é algo extremamente grave. Transforma a cidade em mero subúrbio. Torna ausente a memória, e, sem a memória, não há verdadeira ordenação prospectiva do agir e do pensar, que requer a participação da chamada memória prospectiva (12). Os desmemoriados são seres indefesos que não produzem o novo. Seu horizonte é curtíssimo: o dia, a cidade de um dia.

Na época de Cervantes, era possível a esse Sancho, graças ao seu analfabetismo, um certo resíduo de “realismo” que lhe permitiu ver moinhos de ventos onde decerto estavam moinhos e não gigantes (13). Esse mesmo Sancho já não estaria assim tão certo na sua imagem da cidade, pois a função dos romances de cavalaria foi, em muito, substituída pelos sinais luminosos, pelas imagens e sons da radiodifusão, lidos e decodificados mesmo por aqueles que praticamente não lêem, e que podem ou têm o poder de manter na ignorância mesmo os que são alfabetizados.

A função da cultura na cidade

Um pensador russo, que foi para o exílio após o Outubro revolucionário na Rússia, chamado Berdiáev, costumava insistir na distinção entre civilização e cultura, realçando a autonomia que esses conceitos guardam um em relação ao outro. Ele já advertia para o fato de que, em muitos períodos da história da humanidade, quando a vida era tormentosa e obscura, sucedia uma grande cultura. Em apoio a essa tese, ele lembra o caso da Alemanha dos séculos XVIII e XIX, que nos deu Lessing, Herder, Goethe e Schiller, Kant e Fichte, Hegel, e Schelling, Scheiermacher e Schopenhauer.

Diz Berdiáev, sem meias palavras, ter sido a Alemanha, que produziu essa plêiade, pobre, mesquinha e oprimida (14). O estado alemão era fraco, lastimável, fracionado em pequenas partes, em nenhum lugar se realizava a força da vida, o florescimento cultural existia somente no vértice do povo alemão, que se encontrava em condição muito baixa.

Poderíamos dizer com Berdiáev que também nossa miséria não é necessariamente miséria cultural, pois, graças a Deus, temos enormes reservas nessa matéria. Todavia, a nossa época coloca um desafio muito maior: uma cultura de massa de bom nível, em que os bens culturais e da civilização sejam de fato fruídos pelo conjunto da população. E aqui vemos que temos de fazer muito. Temos que dar densidade aos projetos culturais que reforcem a nossa identidade e o nosso sentido de história. Essa é também uma forma de combater a violência: um ambiente sem referências culturais orgânicas é maneira de produzir mais neuroses coletivas do que aquelas já geradas inevitavelmente pelo sistema. Essa neuroses, como já assinalara o extraordinário Argan (15), podem se exprimir mais tarde em atos de rejeição da civilização histórica, que vão desde o pequeno vandalismo e o banditismo organizado até o terrorismo. De alguma forma, pois, o terrorismo e o banditismo exprimem falta de cultura, a substituição dos valores historicamente constituídos por uma forma de imediatismo anistórico, que reflete os padrões consumistas da sociedade. A destruição das torres gêmeas em Nova Iorque em sua concepção e realização é espetáculo hollywoodiano, isto é, reflete uma das faces do consumismo da sociedade norte-americana, de que é subproduto, sejam os seus executores árabes fundamentalistas ou representantes da direita americana. Mesmo as religiões fundamentalistas são alcançadas pela universalização, a qualquer preço, da atopia (16)... Já se disse, o capital é um leveller (17), e em sua forma mais desenvolvida, que assume o caráter de complexo império de natureza financeiro-industrial-militar, universaliza e cria como nunca, a ferro e fogo, o seu mundo, as suas condições e as suas soluções. Eis por que assistimos à atopia introduzir-se nas utopias religiosas, que às vezes nos parecem distantes e exóticas. Então, essas, reagindo, passam a reclamar a presença de seus elementos mais desesperados e densos na manutenção de um sentido para seu destino.

Os sistemas de radiodifusão e imagens contribuem para a violência não só quando banalizam essa matéria, mas também quando produzem homens culturalmente desarraigados, incapazes de perceber o seu sentido na quadra em que vivem. E aqui já nem falo no sentido político estrito, que responde, no caso de tais sistemas, tal como operam hoje em nosso país, aos interesses da metrópole, senão que me refiro àquilo que toca ao banditismo: a produção cultura não é neutra. Se se produzem seres desarraigados, produzem-se a revolta do ignorante e mesmo esse fenômeno tão importante em nossa sociedade que é o crime de alta escala. Esses sistemas de radiodifusão e imagens têm assim sua evidente parcela de responsabilidade no crescimento do banditismo em nosso país, sobretudo nos estratos médios da sociedade, cada vez mais tomados por essa chaga, como atestam os perfis sociais do aprisionados nos últimos anos. Além do processo desagregador próprio do leveller referido anteriormente, o crescimento do crime nessas camadas se deve à ausência de uma cultura que produza referências fortes à realidade e à vida comunitária. Embora a ausência dessa cultura tenha seu estatuto, seria ingênuo de nossa parte separá-lo da atuação do leveller universalizante na produção das condições para sua autovalorização.

Eu poderia abordar o papel da música na alienação produzida por certos tipos de “ música”, mas vou abordar aqui, ainda que ligeiramente, a questão do urbanismo e da arquitetura e o crime.

Vamos, a título de exemplificação, tratar de um centro histórico. Esse é uma escola de valor, valor objetivado em obras, em tempo, em beleza, em história. O cidadão que aprende a valorizá-lo apreende um sentido de valor, tem um contrapeso ao apelo do imediatismo consumista, compreende o sentido do trabalho ali objetivado, do esforço humano dirigido a algo que não se esvai na dispersão imediata. Esses espaços imprimem a marca da cidade, constituem a identidade dela e de seu habitante. Um centro histórico bem conservado induz no cidadão o sentido da perenidade dos valores ali postos, da articulação de trabalho e técnica que eles condensam.

Tanto na cultura como no crime estamos com lidando com valores, obviamente que com valores distintos, pois o cidadão que vai ao crime muita vez o faz por não ter aprendido a valorar como valor aquilo que realmente vale, mas por se render ao imediatismo do consumo fácil, da emoção fácil.

Revitalizar a cidade, a sua função cultural, a sua função de cidade, é combater o crime. É oferecer um contraponto à natureza da sociedade de consumo, que, para muitos, só é espírito da sociedade de consumo, pois quase nada consomem. Naturalmente, a revitalização de um centro cultural deve ser profunda, envolver os seus diversos tecidos, do contrário temos apenas a reabilitação de fachada (literalmente aqui), e o que se passa com isso, senão que se pretende salvar o mundo das aparências, para além das quais tudo se permite, para além das quais a moeda é o único valor, valor soberano.

Em nossa perspectiva, essa revitalização deve ser feita, trabalhando-se o conceito de cidade. Trata-se de pensar e refazer o centro para a cidade. É claro que só existe centro de cidade, onde há cidade, que não se confunde com não-cidade, daí ser necessária uma política de urbanização, que erradique as favelas, que refunde o espaço urbano.

A residência, a casa, os materiais de construção dessas e da cidade devem ser produzidos em escala massiva, estimulados, e devem estar na origem do lucro do capital dos setores da construção.

Já disse Argan (18) que “O mau urbanismo e a má arquitetura do nosso tempo devem-se ao fato de que os construtores não constroem para lucrar com a construção (como seria correto), mas para especular com o terreno, o que é um caso típico de uma economia privatizante que tem como resultado a não-produção de arquitetura esteticamente intencionada.” A força do solo, do terreno, é uma sobrevivência de formações econômicas já superadas.

Elementos para um projeto cultural

Quando não há urbanismo, quando a arquitetura não revela sentido estético, a cidade apenas pode oferecer o vazio. Aqui a própria cidade estrutural e não meramente luminosa aparece destituída de sua aura, de tal sorte que podemos caminhar diante de uma parede de prédios sem que eles nada nos ofereçam. É verdade que ali moram pessoas e isso será sempre relevante. Tudo aparece, porém, como trabalho morto, mera matéria da especulação imobiliária, sem relampejo de sentido verdadeiramente autônomo.

Eis por que um projeto cultural no Brasil deve começar pela reurbanização. Urbanismo, como demonstraram os gregos já na antigüidade, é cultura. Erradicar as favelas é cultura, é urbanismo fundamental.

No plano da cultura da informação, esse projeto deve deflagrar a função dos índices da memória coletiva nacional, índices de nossa identidade. Deve estimular os elementos imateriais da cultura. Refiro-me aos jogos da língua, às danças, aos ritmos, à música, à cultura que se produz mesmo nas favelas. Os templos históricos devem ser reformados, os rituais, as composições ali executadas, resgatados, não para se reviver o passadismo, mas como testemunho vivo de outras épocas, do percurso de nossa história, de nossa formação.

Os teatros devem ser reconstruídos e construídos. A presença dos teatros e dos grupos de teatro como elementos vivos na cidade é altamente regeneradora do tecido cultural e pode permitir um salto de qualidade nos meios de radiodifusão sonora e de imagens e mesmo na decodificação da cinematografia.

A valorização dos clássicos é fundamental: deveríamos ter o nosso Homero, isto é, um solo comum cultural, alicerçado em clássicos lidos por todos. O vestibular deveria ter uma lista fixa de livros clássicos e não essa loteria de títulos que hoje observamos. Isso permitiria no futuro um diálogo entre as gerações. Com fidelidade ao ideal condensado pela expressão kalákagathá (19), devem-se construir complexos esportivos para todos e estimular o esporte.

Eu gostaria de terminar essa exposição, citando um samba genial de Batatinha, que compunha, a despeito de grandes dificuldades, o que, por si só, mostra o quanto a arte e a cultura são importantes na manutenção da dignidade, nos momentos mais adversos. Refiro-me aqui à composição que Batatinha intitulou “Ministro do samba”. Nela se trabalha, de modo muito eficaz, com os índices da memória coletiva. Não estou falando do ritmo do samba, capaz de integrar diversas gerações, e, também por isso,. componente importante da memória nacional, pois perfaz mimese integradora da vida dos desassistidos nesse país. Diz a letra da composição de Batatinha, a que me referia:

Eu não tenho violão
Faço samba na mão
Juro por Deus que não minto
Quero na minha mensagem
Prestar homenagem
E dizer tudo que sinto
Salve o Paulinho da Viola
Salve a turma da sua escola
Salve o samba

Por essas saudações, Batatinha amplia o espaço da memória, alcança tanto a memória implícita, isto é, a memória inconsciente posta em evidência pelo recurso dos índices, quanto a memória explícita, isto é, a memória consciente em que a realidade se impõe sem artifícios. E continua esse grande poeta que foi Oscar Penha:

Salve o samba em tempo de inspiração
O samba bem merecia
Ter ministério algum dia

Com essas frases, ele ressalta a posição do samba na cultura nacional, e conclui:

O samba bem merecia
Ter ministério algum dia
Então seria ministro Paulo César Batista Faria

O PC do Collor? Poderiam alguns pensar....nesse auditório. Nesse caso, todo o trabalho da memória, o esforço da exaltação inicial, seria interrompido por elementos típicos do choque sarcástico, e a ampliação inicial do espaço da memória cederia lugar ao acervo de imagens da era de Fernando Collor. Na verdade, o Paulo César Batista Faria que aí está é a própria dignidade do samba, é Paulinho da Viola, que teria, essa a ironia fina de Batatinha, de assumir o nome verdadeiro para ser ministro. Enfim, sem a menor ilusão, mesmo na sua homenagem, Batatinha diz que ministro é ministro, e Paulinho da Viola é o próprio samba, que não se confunde com a figura do eventual político. A lição que fica é a da força do samba, a sua autonomia como práxis cultural inapropriável pelo Estado e por sua burocracia. Estamos diante de uma peça poética que reflete a condição social de uma camada da população brasileira, camada bem pobre. E essa peça poética, essa canção de Batatinha, tem todos os atributos da universalidade, assim como a Ilíada é universal, condensando os valores da antiga aristocracia na Grécia, consoante nos ensina Werner Jaeger, em sua monumental Paidéia (20).

Há, portanto, enormes reservas espirituais no espaço de nossas não-cidades, esperando pela refundação da cidade entre nós e no mundo. A cidade nos aguarda em algum lugar, como nosso destino. Despertá-la e fazê-la, eis o nosso desafio.

notas

1
Artigo publicado originalmente em Phrónesis, vol.8, n. 1, jan./jun. 2006.

2
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte italiana. Vol. I. São Paulo, Cosac & Naify, 2003, p. 68. Grifo nosso.

3
Idem, ibidem.

4
Idem, ibidem.

5
Não é por acaso que a idéia de organicidade surge nos românticos alemães e em alguns pensadores russos de matriz eslavófila, os quais aprendem a valorizar a organicidade, essa talvez a função do pássaro de Minerva, exatamente quando ela começa a entrar em crise.

6
Traço material inscrito no cérebro que registra a aquisição de informação. CAMBIER, Jean. La mémoire. Paris, Le cavalier bleu, 2001, p. 122.

7
CACCIARI, Massimo. Metropolis. Saggi sulla grande città di Sombart, Endell, Scheffler e Simmel. Apud CONTARDI, Bruno. Prefácio de ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade de Argan. São Paulo: Martins Fontes. 1998, p. 8.

8
Idem, ibidem. p. 7.

9
PULS, Maurício. O significado da pintura abstrata. São Paulo, Perspectiva, 1998, p. 252-253.

10
ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1995, p. 80.

11
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade (op. cit), p. 223.

12
CAMBIER, Jean. Op. cit, p. 123.

13
No capítulo XXXV, Sancho verá cabeças de gigantes decepadas e sangue. Em verdade, odres de vinhos atacados por Dom Quixote.

14
BERDIÁEV. Vontade de vida e vontade de cultura. Texto inédito em português.

15
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade (op. cit), p. 87.

16
A qualquer preço, leia-se aqui o seguinte: bombardeios da população civil, destruição de cidades, mesmo tão importantes para a história, como Belgrado ou Bagdad.

17
“Nivelador”.

18
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade (op. cit), p. 88.

19
As coisas belas e boas.

20
JAEGER, Werner. Paidéia. São Paulo, Martins Fontes, 1989, p. 58.

sobre o autor

José Veríssimo Teixeira da Mata, ex-professor da Universidade Federal de Goiás e da Universidade de Campinas, autor de uma tradução das Categorias de Aristóteles (UFG/Alternativa), componente do grupo de tradução das obras completas de Aristóteles em Portugal, interessa-se pelo tema da cidade e do urbanismo desde a antiguidade

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