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architexts ISSN 1809-6298


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Lorena Marina Sánchez e Mariana Fernandéz Oliveira discutem questões acerca do patrimônio urbano latino-americano, alertando para a compreensão da valorização do "patrimônio modesto" a partir da história social e da arquitetura


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SÁNCHEZ, Lorena Marina; OLIVERA, Mariana Fernández. Patrimônio modesto em movimento:. Diálogos urbanos entre história social e arquitetura. Arquitextos, São Paulo, ano 08, n. 093.03, Vitruvius, fev. 2008 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.093/167>.

Introdução

O tecido doméstico das cidades latino-americanas constitui um eixo patrimonial que, ainda hoje, desafia a criatividade das disciplinas interessadas em sua preservação dinâmica (1). A jovem produção arquitetônica e urbana latino-americana, frente à européia, percorreu um caminho de dilapidações devido a múltiplos fatores, dentre os quais resultam relevantes as tardias valorizações das histórias sociais e materiais próprios, as práticas experimentais dos planejadores urbanos modernos até 1970-80, as especulações imobiliárias e o turismo descontrolado (2).

Numa revisão histórica e patrimonial do século XX, é possível sintetizar um processo paralelo e relacional entre história tradicional-patrimônio monumental e história social-patrimônios diversos. Desde a segunda metade do século XX, se iniciou um caminho de aberturas valorativas que se materializaram nos documentos internacionais e nas declaratórias e intervenções realizadas. Não somente o excepcional merecia reconhecimento, mas também as modestas construções constituintes da maior parte do tecido das cidades. Isto teve seu paralelismo na disciplina histórica, que começava a orientar seu olhar para os processos e as fontes intangíveis (oralidades, gestualidades, festas, músicas, histórias de vida, etc.).

No que diz respeito ao recorte patrimonial modesto (3) argentino, a realidade resulta complexa, as ações tardias e os bens heterogêneos. Mais ainda em relação aos países latino-americanos que contam com uma herança pré-hispânica maior, onde a presença dos bens patrimoniais ampliou as atividades preservacionistas mais cedo. A Comissão Nacional de Museus e de Monumentos e Lugares Históricos, em funcionamento desde 1940, apenas em 1984 abordou a ampliação cronológica, social, material e de escala que inclui o patrimônio modesto. Mesmo assim, o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios de 1964 estabeleceu seu comitê nacional apenas em 1973. Nesse caminho, se produziram importantes avanços nas cidades de Buenos Aires (especialmente em relação ao tratamento das habitações internas às Áreas de Proteção Histórica), Bahía Blanca (como os projetos de preservação para o centro desta cidade e as pesquisas desenvolvidas para a conservação das habitações de madeira e chapa de Ingeniero White), Tucumán (como os trabalhos realizados para o patrimônio modesto do centro da cidade e de vilas históricas como Medinas) e Santa Fé (especialmente no que se refere às pautas de intervenção desenvolvidas para as habitações lineares ou “casas chorizo”). Estes progressos, dos quais se mencionaram os casos mais relevantes, revelam um incipiente espaço de reflexão que se disseminou pelas províncias restantes, cidades e localidades nacionais.

Dentro deste panorama, o presente artigo se propõe a contribuir à compreensão da valorização do patrimônio modesto urbano a partir da história social e da arquitetura. Em outras palavras; como conflui a historia social e material na valorização do patrimônio modesto das cidades latino-americanas, especialmente naquelas que não possuem uma herança pré-hispânica relevante? Para responder a esta pergunta se analisará o patrimônio modesto através de um caso dentro da Argentina; a cidade de Mar del Plata (4).

Mar del Plata e seu patrimônio modesto

Mar del Plata reveste um particular desafio para o tratamento de seu patrimônio modesto, já que se trata de uma cidade com grandes ciclos de transformação e destruição de seus bens (5). O caráter turístico-estival com predominância do mercado imobiliário sobre a cultura, a distância entre as pesquisas produzidas e as práticas patrimoniais, junto a uma vontade política nula para a mudança e a inconsistente conscientização pública patrimonial, conformam somente alguns exemplos para compreender as dificuldades existentes. Este permanente risco constituiu – e constitui – uma ameaça para a permanência no tempo de sua arquitetura, sua cultura e sua correspondente identidade.

Fundada em 1874, em seu principio se formou em relação com o mar, seja desde a chegada de seus povoadores imigrantes bem como, desde sua caracterização produtiva e de lazer nacional. Assim, a incipiente vinculação entre pampa e mar se concebeu através de um porto. Apenas entre o final do século XIX e principio do XX se produziram novos olhares locais para as costas e o trânsito de uma economia de produção para uma economia de consumo, convertendo Mar del Plata na depositaria da vida social e econômica nacional. Desta forma, se começou a produzir a metamorfose do porto em praia, sob a potencialização de um novo imaginário. A chegada do trem em 1886 e o olhar orientado aos balneários europeus inauguraram um processo histórico que converteria a cidade marplatense no ícone argentino do turismo balneário.

Neste princípio, o ponto inicial de confluência porto-balneários marplatenses se produziu no setor centro, posteriormente denominado Bristol em relação à sua rambla mais emblemática, que foi o lugar chave de intercâmbio pesqueiro e de um incipiente turismo balneário. Progressivamente, o paulatino desenvolvimento da cidade como centro turístico e portuário levou à formação de novos processos urbanos, sociais e arquitetônicos que permitiram a produção do patrimônio modesto marplatense. Para sua análise, se investigarão dois setores urbanos internos a dois bairros tradicionais; o bairro Puerto como testemunho dos primitivos processos portuários e o bairro La Perla como paradigma dos processos balneários (Imagem 1). Desta forma, se estudarão as casinhas de madeira e chapa desenvolvidas entre 1920 e 1950, e os chalés “estilo Mar del Plata” cujo apogeu se situa entre 1930 e 1950.

1. Mar, pescadores, porto e casinhas de madeira e chapa entre 1920 e 1950

Gênesis das casinhas de madeira e chapa

As casinhas de madeira e chapa caracterizaram o desenvolvimento do tecido marplatense desde suas origens. Existiram de dois tipos; aquelas relacionadas com a atividade balneária e compostas por uma ampla gama de construções ribeirinhas como hotéis, comércios, ramblas (6), vestuários, etc.; e aquelas habitadas pelos moradores permanentes e associadas a um hábitat mais precário devido a seu caráter provisório (7).

Se nos remetemos à gênesis das casinhas marplatenses não podemos deixar de mencionar o fato de que a cidade contou com quatro ramblas sucessivas, localizadas no que se denominou setor Bristol, onde as três primeiras foram construídas em madeira, sendo um referente simbólico para as edificações daquela época. Convivendo com essa realidade balneária se encontravam as habitações dos pescadores, que representaram uma imagem negativa tanto pela segurança e pela higiene como por aspectos estéticos (Imagem 2). No âmbito da antinomia cidade porto-cidade de veraneio, foram um obstáculo para o desenvolvimento das novas práticas de ócio, sendo incompatíveis com a ânsia de converter Mar del Plata em centro de veraneio das classes altas portenhas. Em 1905 o projeto do Passeio General Paz obrigou a transladar estas construções, que em sua maioria não possuíam título de propriedade, a bairros distantes do centro. No entanto, apesar da normativa vigente, a convivência de ambos mundos continuou até a década de ´20.

No que diz respeito ao tecido da cidade, no período inicial muitas das habitações da população permanente foram casinhas (8). Na medida em que avançava o progresso, as regulamentações tenderam a ampliar o raio de proibição afastando-as do centro fundacional. No entanto, sua permanência se ocultou na trama com a construção de falsas fachadas ou ampliações na frente que dissimulavam sua existência. Para o ano de 1930 uma boa parte das habitações da periferia marplatense era construída em madeira e chapa (9).

No âmbito do processo de industrialização do país, a arquitetura de ferrovias, portos e mercados teve notável influência na incorporação e estandardização de materiais construtivos (em particular nos referimos à chapa canelada e à madeira) utilizados na totalidade da habitação. Estes materiais, providos por fábricas européias ou estado-unidenses primeiro, e nacionais depois, fixariam medidas standards que regeriam o projeto deste tipo de habitações de acordo com a factibilidade do transporte e da implantação. Se bem que no caso de Mar del Plata não houve uma implementação dominante de habitações pré-fabricadas, já que em sua maioria foram autoconstruídas, não é um fato menor o auge da arquitetura industrial, pois os modelos dos catálogos das empresas foram repetidos pelos setores populares ou pelos mestres carpinteiros construtores. Assim, na ordem local a empresa Tiribelli Hnos. oferecia catálogos de habitações pré-fabricadas que estavam à venda e que, mesmo que seus modelos fossem muito mais simples que aqueles das empresas estrangeiras, foram difundidos no estrato popular da população marplatense (Imagem 3).

Certamente, houve uma reprodução das construções industriais estandardizadas desse momento de desenvolvimento do país influindo na adoção deste sistema construtivo nas habitações das classes populares. Por outro lado, as casinhas foram uma das respostas ao problema da habitação no período de formação das cidades modernas argentinas respondendo às necessidades da grande massa de imigrantes que chegaram ao país. De acordo com o processo de ampliação e urbanização das cidades, vários exemplos de assentamentos foram desenvolvidos com este tipo de construções. Entre eles, cabe destacar os portos de Buenos Aires, La Plata, Ingeniero White e Rosário.

O bairro Puerto e as casinhas de madeira e chapa

Nas cidades costeiras, as áreas portuárias definiram bairros com características especiais de seus habitantes, atividades, lugares e arquitetura. O bairro Puerto de Mar del Plata surge no marco do processo de extensão das cidades produzido entre finais do século XIX e princípios do século XX. Esta “vila de pescadores” foi, e segue sendo, uma seção do tecido com traços diferenciais em relação ao núcleo urbano marplatense. A própria atividade pesqueira e a presença de imigrantes definiram certas peculiaridades do lugar e da arquitetura e seus materiais de construção através da produção de casinhas de madeira e chapa que dominaram a paisagem urbana até a década de cinqüenta.

Em 1909 o Governo Nacional autorizou a licitação para a construção de um porto na cidade. O grupo de pescadores que paulatinamente foi habitando o lugar era formado principalmente por imigrantes italianos que chegavam a Mar del Plata como segundo ou terceiro destino depois de tentar radicar-se na capital ou em zonas rurais e que se trasladaram à cidade como mão de obra para a extensão da ferrovia. Os imigrantes italianos, particularmente, tinham conhecimento na atividade pesqueira, já que provinham de zonas marítimas. Como vimos, a presença deste grupo se contrapôs ao projeto que buscava dar a Mar del Plata o caráter de balneário elegante e aristocrático, deslocando a um sector que não coincidia com essa imagem da cidade. A construção do porto implicou no assentamento definitivo deste grupo.

Com a instalação da empresa construtora do porto e a proximidade das canteiras, foi surgindo um núcleo urbano que desde seu princípio apresentou uma acentuada diferença com o centro da cidade marplatense. A falta de comunicação com o centro da cidade produziu um isolamento natural já que entre um e outro existia uma grande zona despovoada. Os próprios habitantes diziam “vamos a Mar del Plata”, marcando uma clara diferença entre a cidade e o bairro. Mesmo assim, não se incorporaria ao tecido da cidade até 1948. Uma vez mais, o hábitat dos pescadores representava a outra cara do balneário.

Em suas origens, a ocupação foi mais de caráter espontâneo e se constituiu em torno às construções da empresa construtora do porto que construiu os dois únicos edifícios em material (pedra), seus escritórios centrais e um edifício habitacional para funcionários. O galpão, suas oficinas e outros dois grupos de habitações para funcionários junto ao resto das construções do bairro, eram casinhas de chapa e madeira: “... grande parte delas tinha galerias sobre a rua, com degraus, piso, varandas e colunas de madeira e telhados de chapa...” (10) e sua imagem era semelhante a uma vila do Far-West: “Esta vila foi improvisada junto ao porto. É um casario do Far-West.” (11) (Imagem 4).

Em sua distribuição em planta, apresentavam grandes similitudes com a casa “chorizo” (lingüiça), definidas a partir de uma sucessão de cômodos perfeitamente modulados e articulados através de uma galeria fechada, possibilitavam a ampliação por etapas e a flexibilidade dos cômodos em concordância com a instabilidade dos setores populares, satisfazendo as necessidades imediatas de alojamento. O aspecto tecnológico adquiriu um papel regente no desenho a partir do respeito por uma modulação que estava acorde com as dimensões dos materiais, com a economia dos mesmos e com a possibilidade de crescimento e acoplamento de partes. A austeridade e racionalidade não só se refletia na modulação em planta, mas também no sistema construtivo: um esqueleto de madeira cujo módulo estava determinado pela medida das chapas que revestiam a habitação. Um custo reduzido de construção – de acordo com a economia deste setor social-, a facilidade de montagem – que não requeria mão de obra especializada-, e a possibilidade de transporte – por sua característica desmontável e seu baixo peso relativo – foram aspectos que tiveram notável influência na apropriação destas habitações (Imagem 5).

Com o tempo, o discurso que promovia uma imagem negativa para as casinhas, se tornou extensivo até o próprio bairro Puerto, na medida em que este adquiriu desenvolvimento econômico e consolidação urbana. Ao temer que o transitório se tornasse permanente, se promoveu no imaginário social a relação destas casinhas com aspectos anti-higiênicos; no entanto, o que incomodava às autoridades era a imagem de precariedade que se contrapunha ao progresso almejado para a cidade e para o bairro. Durante a década de ´40, se promoveram mudanças substanciais na concepção da habitação popular portuária como conseqüência desse discurso. Assim, começou uma paulatina transformação desde seus aspectos aparentes.

Aquela antinomia porto-cidade de veraneio continuou ainda depois do traslado dos pescadores. A formação histórica da área e sua particular forma de relacionar-se com o centro marplatense, a conformação social dominada por imigrantes italianos que constituíram uma comunidade étnica singular e a definição material de uma paisagem arquitetônica oposta ao aristocrático marplatense, fizeram – e fazem – deste setor parte de “outra” cidade. Assim, a continuidade destas construções de madeira e chapa determinou uma imagem que os “diferenciava” da Mar del Plata turística. Apesar de o progresso da área ter interrompido o desenvolvimento de uma paisagem urbana originariamente homogênea, existiu uma resistência que permitiu a permanência até nossos dias de um importante número destas casinhas. Essa resistência se verifica num olhar rápido; algumas se mantêm originais (Imagem 6), outras se trasladaram ao fundo do lote detrás de uma casa moderna e muitas se transformaram em “aparência” com a incorporação de uma falsa fachada (Imagem 7).

O bairro Puerto, único setor de Mar del Plata onde as casinhas dominaram a paisagem urbana, segue sendo uma área de alto valor patrimonial. Apesar das transformações sofridas, seu valor histórico-simbólico com a construção de diversos edifícios singulares, somado a seu valor ambiental dado pela conformação de um tecido que ainda conserva traços daquela época primitiva, formam o testemunho de um patrimônio representativo da comunidade. Vemos então que manteve elementos que são referentes a materiais de uma sociedade. Assim, através do estudo e da valorização de seu patrimônio modesto, a partir da análise de seus componentes físicos, se pode sustentar a identidade deste setor da cidade. As valorizações, ademais de seu aspecto testemunhal, surgirão então da conjunção do material-social a partir dos aspectos simbólicos.

2.Sol, areia, praia e chalés “estilo Mar del Plata” entre 1930 e 1950

Gêneses do chalé “estilo Mar del Plata”

O chalé “estilo Mar del Plata” constitui o patrimônio modesto predominante na referida cidade. Assim, é possível encontrá-lo disseminado em todo o território marplatense desde seu apogeu entre 1930 e 1950. Esta habitação constitui um produto híbrido de combinações pitoresquistas onde prevalece a vertente californiana, pelo que resulta necessário rastrear sua gênesis desde o próprio pitoresquismo, cujos princípios se remontam à pintura paisagista européia do século XVII. Mediante a derivação de “pitoresco” como aquelas imagens merecedoras de ser pintadas, se estende à concepção arquitetônica entre 1750 e 1850. A partir de seu desenvolvimento europeu, o pitoresquismo se difunde na Argentina em aproximadamente 1880 como um estilo eclético, para alcançar seu ponto de inflexão em 1930 e chegar a seu ocaso em 1950.

Mar del Plata resultou em um dos eixos nacionais originários e fundamentais para o desenvolvimento pitoresquista. As paisagens marítimas e a topografia da cidade apresentaram um território ideal para o impulso desta corrente arquitetônica. Ainda mais dentro das possibilidades “latinas”, onde o estilo californiano permitia um amplo espectro de combinatórias desde um repertório formal amplo e flexível.

Duas escalas de habitação resultam imprescindíveis para a compreensão do tecido pitoresquista marplatense; as vilas como patrimônio monumental e os chalés como sua contrapartida mais modesta.

No período 1880-1930, a presença do pitoresquismo se articula com o começo do território marplatense como vila balneária dos grupos dirigentes (12), especialmente desde a chegada da ferrovia em 1886 e da emergência das novas práticas sociais do ócio em relação ao mar. Assim, as primeiras residências de veraneio pitoresquistas se edificavam como expressão dos valores de prestígio de seus comitentes. Para isso, o amplo repertório estilístico permitia a individualidade e caracterização de cada proprietário. Neste sentido, as vilas compuseram a primeira paisagem pitoresquista monumental, desde uma ideação disciplinar e culta – o que implicava na participação de arquitetos e engenheiros maioritariamente estrangeiros – para uma classe social de alto poder econômico e político. Em 1920 principia paulatinamente o início da democratização balneária e da consolidação da população permanente. Assim, se gera uma cidade balneária que promove um equilíbrio entre os interesses elitistas e os requerimentos de setores sociais mais amplos.

No período 1930-1950 a cidade balneária se consolida e o turismo massivo começa a fazer sua aparição. Desta forma, a construção de vilas de acordo com as novas formas de veranear e habitar a cidade estável não resultava acorde com as mudanças sucedidas. A crise econômica de ´30 não permitia à burguesia nacional envolver grandes capitais nas habitações de veraneio e as novas burguesias devindas do processo imigratório requeriam uma nova escala habitacional. A cidade precisou conjugar as vilas monumentais antes mencionadas com os chalés de produção social disciplinar e culta junto a versões não disciplinares – o que implicou na participação de construtores e locais idôneos – para uma nova classe social média (Imagem 8). A paisagem pitoresquista monumental se enlaçava com um panorama mais modesto que começava a gerar conjuntos urbanos com certa homogeneidade por fora do centro da cidade. Desde a inauguração da Rota 2 em 1938, que conectava a cidade com a capital nacional, esta transformação se consolidou por volta de 1950. Assim, o turismo massivo fomentado pelas políticas nacionais junto a uma população permanente a serviço do balneário e da cidade, promoveram a disseminação de um tecido híbrido com predominância de pequenos chalés pitoresquistas pertencentes aos grupos sociais médios. Da monumentalidade das vilas pitorescas iniciais ao lado do mar, se passava à multiplicidade de chalés modestos que traduziam seus símbolos e materialidades por toda a quadrícula urbana. Estes chalés “estilo Mar del Plata” constituíam bens de uso e de troca em função do habitante permanente e da locação turística de veraneio, caracterizados por suas “... dimensões moderadas, com partes de pedra e partes de reboco branqueado, telhado com telhas coloniais e um pequeno jardim na frente…” (13) e pelo uso da pedra “Mar del Plata” em seus revestimentos exteriores.

Desta maneira, as traduções ocorridas entre o patrimônio monumental e modesto, entendidas como práticas construtivas e ativas que recriam elementos do original e formam uma nova criação, se apresentaram num triplo sentido helicoidal: do pitoresquismo europeu ao nacional, do nacional ao local e finalmente, entre os bens locais. Assim, os chalés “estilo Mar del Plata” constituíram uma resposta à cidade turística e à cidade estável de meados do século XX, estendendo-se a outros centros de veraneio como as Serras de Córdoba e sendo possível encontrá-los isolados ou em grupos ao longo de todo o país.

O bairro La Perla e o chalé “estilo Mar del Plata”

La Perla constitui um dos núcleos principais onde se concentraram as primeiras obras de Mar del Plata e por tanto, ainda é possível reconstruir a história material e social que produziu os chalés em análise. Seus valores históricos, simbólicos e sociais caracterizam este bairro como um referente comunitário representativo da historia local, enunciados através do apelativo “bairro e praias dos marplatenses”. Seus valores arquitetônicos residem na posse do patrimônio monumental mais antigo da cidade e do patrimônio modesto mais variado, conjuntamente com um valor ambiental que reside na topografia particular que apresenta, conformada por barrancos, mar, areia e uma das duas colinas que qualificam a planície marplatense. Assim, estes valores implicam uma paisagem ideal para o desenvolvimento do chalé pitoresquista “estilo Mar del Plata”.

Desta forma, a história urbana de La Perla nos permite indagar, de forma mais próxima, as variáveis históricas sociais e materiais que atribuem valor ao patrimônio modesto chaleeiro.

Ao mesmo tempo em que os arredores da praia Bristol compuseram o principal centro de veraneio e comercial desde a origem da cidade, La Perla gerou um pólo de atração nortenho caracterizado como secundário, mais tranqüilo e modesto. Enquanto no atual centro se consolidou a “vila balneária portenha”, no norte proliferou a “cidade balneária” e posteriormente se desenvolveu o “turismo massivo” mencionado previamente. Ainda que as diferenças entre Bristol e La Perla não resultaram tão opostas, e sim complementares, a caracterização da “outra” praia e do “outro” bairro em relação ao núcleo central incidiu no imaginário coletivo. Mesmo assim, diferentemente do núcleo cêntrico e suas origens portuárias, as origens das atividades nortenhas surgiram de seu caráter balneário (14). E mais, as primeiras instalações no barranco, especialmente um hotel chamado La Perla, geraram sua denominação e permitiram o desenvolvimento comercial e habitacional, ocasionando a ocupação do tecido de bairro (Imagem 9).

Desde 1886 com o surgimento do balneário La Estrella Argentina, até 1934, quando um incêndio destrói a rambla, se criaram as bases sociais e materiais de La Perla. Neste lapso temporal, as redes familiares imigrantes espanholas, italianas e inglesas, dotadas de uma visão de futuro e progresso, penetraram na natureza do barranco e do mar em direção ao território. Muitas famílias viviam na rambla, preparando-se para o verão e trabalhando durante o período estival através do atendimento de hóspedes em suas casas (Imagem 10). No entanto, a luta cotidiana contra os temporais e os incêndios gerou uma progressiva ocupação do tecido através da construção de casas, hospedarias familiares ou residenciais de baixas categorias, pequenos hotéis e comércios próximos à rambla. Mesmo assim, a população permanente da cidade elegia este setor para se instalar, mais tranqüilo e próximo ao centro onde prestariam seus serviços, enquanto se desenvolviam os pequenos comércios e oficinas (carpinteiros, sapateiros, construtores, lavadeiros) que proporcionavam uma dinâmica de bairro própria (Imagem 11).

A partir de 1930-35 e até 1950, o incremento turístico e o conseqüente aumento de população permanente promoveram o desenvolvimento mais importante do bairro. A trama começou a ser completada e se realizaram novas aberturas de ruas e avenidas, em paralelo ao apogeu do chalé “estilo Mar del Plata”. As aparências das vilas se trasladariam e condensariam na construção dos chalés através do trabalho de operários e idôneos, produto de diversas razões. Em primeiro lugar, sua participação na construção das primeiras vilas pitoresquistas lhes permitiu extrapolar conhecimentos e modelos, os quais também estavam ao seu alcance através das fotografias publicadas nas revistas, nos catálogos e nas seqüências cinematográficas norte-americanas onde se mostrava o estilo de vida suburbano. Desta maneira, se manteve a utilização da telha, dos rebocos branqueados, da madeira e particularmente, da pedra “Mar del Plata” que deu nome ao chalé, em suas diferentes disposições. Junto ao desenho “descosturado” com jogos volumétricos e justaposições, somado às múltiplas caídas de telhados sobrepostas, adquiriu particular relevância o “alpendre” como elemento de transição entre o âmbito semipúblico marcado pelo jardim à frente e o privado. Mesmo assim, as chaminés ou os pequenos vitreaux nas portas principais, configuraram um desenho de fachada particularmente ornamentado para uma exacerbação da pequena domesticidade (Imagem 12 e 13). Em segundo lugar, estes chalés permitiam um duplo benefício; seu uso e sua renda, sendo este último aspecto relevante, mais ainda no bairro La Perla pela tranqüilidade e pelas praias que oferecia aos veranistas frente ao turismo massivo. Ambos aspectos – a tradução vilas/chalés e seu caráter de bens de uso/troca – se forjaram mancomunadamente, especialmente quando a imagem doméstica tinha se consolidado como o ícone estival.

Desta forma, os processos sociais encontraram uma correspondência nos processos arquitetônicos chaleeiros da cidade. Do tangível e do intangível, o chalé “estilo Mar del Plata” respondeu – e responde – a uma identidade local que surge de sua representação turística nacional.

Reproduções e traduções: processos urbanos modestos

Então; como conflui a história social e material na valorização do patrimônio modesto das cidades latino-americanas, especialmente naquelas que não possuem uma herança pré-hispânica relevante?

As múltiplas respostas possíveis possuem uma raiz comum: a imprescindível consideração dos processos sociais e materiais desde um diálogo urbano num tempo e num território determinado. Uma confluência que implica um amalgama urbano entre o tangível e o intangível, entre arquitetura e história social.

Neste sentido, se exploraram dois tipos de legados históricos presentes numa mesma cidade, conformadores de sua identidade, cujos valores merecem sua preservação dinâmica e se percebem na sobrevivência dos bens. As casinhas de madeira e chapa, cujos expoentes atuais se agrupam no bairro Puerto, e os chalés “estilo Mar del Plata”, cujos expoentes atuais se multiplicam por toda a cidade e conformam, por sua vez, diversos focos de concentração como sucede no bairro La Perla, foram atores ativos nos dois projetos fundamentais da cidade; porto e praias. Assim, prevaleceram em diferentes etapas urbanas, com cruzamentos espaciais e temporais. Curiosamente, este patrimônio modesto se criou na alteridade espacial, nos “outros” setores cidadãos em relação ao centro marplatense onde se concentrava o interesse e se desenvolviam os projetos mais ambiciosos. Paralelamente, ao norte e ao sul continuavam os processos herdeiros dos projetos relegados, ou melhor, se geravam desenvolvimentos não previstos. Desta maneira, dos processos acontecidos na móvel periferia histórica do centro marplatense se forjou o patrimônio modesto que hoje marca a cidade.

Finalmente, é imprescindível interpretar os valores do patrimônio modesto como emergentes de processos históricos sociais e materiais, para assim iniciar seu tratamento dinâmico deste ponto de partida, onde as ações indiretas e diretas, e inclusive a possibilidade de permanência ou desaparição, resultem caminhos que dignifiquem o passado, o presente e o futuro.

notas

1
WAISMAN, Marina. El interior de la Historia. Bogotá, Escala, 1993, p. 139.

2
GUTIÉRREZ, Ramón. “Transferencias, creatividad y rutina en los centros históricos de Iberoamérica. Políticas e improvisaciones”. In NOVACOVSKY, Alejandro e VIÑUALES, Graciela (editores). Textos de cátedra – Maestría en Gestión e Intervención en el Patrimonio Arquitectónico y Urbano. Mar del Plata, FAUD – UNMdP, Volume 2, 2003.

3
Existem diversas denominações para este patrimônio, todas elas em relação a sua dupla escala de ação; a das habitações em si mesmas e a das paisagens urbanas que estas compõem entre o presente e o passado como expressão da vida social. Assim, este patrimônio se qualificou como não monumental (como oposição às características que identificaram os bens designados primeiramente como patrimoniais, insistindo em sua escala pequena e comum), anônimo (como conformador de tecidos que passam desapercebidos a um olhar desatento, mas que se percebem ambientalmente), doméstico (segundo a função prioritária deste patrimônio, a habitação) e modesto (termo que supera a simples antinomia utilizada no conceito “não monumental” e inclui as características definidas para o termo “doméstico”).

4
É necessário destacar que, de acordo com a pergunta apresentada, no presente artigo só se abordam aspectos históricos referentes à valorização do patrimônio modesto sobre os que ainda não se avançaram no caso de Mar del Plata. Em relação às políticas concretas de preservação, foram deixadas como temática aberta para próximos artigos.

5
CACOPARDO, Fernando. La modernidad en una ciudad mutante. Vivienda, sociedad y territorio en la primera mitad del siglo XX. Mar del Plata, FAUD-UNMdP, 2003.

6
NT: São chamados de ramblas os passeios construídos à beira mar, cobertos ou não.

7
CACOPARDO, Fernando. “Maderera (arquitectura)”. In LIERNUR, Jorge Francisco e ALIATA, Fernando (comp.). Diccionario de Arquitectura en la Argentina. Buenos Aires, Clarín, tomo I-N, 2004.

8
Segundo o Censo de 1881, de 282 habitações, 121 eram casinhas de madeira. Segundo o Censo de 1895, de 1620 habitações, 593 eram casinhas e habitações de adobe e palha.

9
COVA, Roberto. Mar del Plata. Sobre casillas y carpinteros. Revista DANA. Chaco, Región, Nº 11, 1981.

10
COVA, Roberto. Apuntes para una historia de la Arquitectura marplatense. Mar del Plata, FAUD/UNMDP, 1994, p. 54.

11
SOIZA REILLY, Juan José. Un pueblo del Far-West en Mar del Plata. Revista Caras y Caretas. Buenos Aires, 1922.

12
Segundo CACOPARDO, Fernando, o desenvolvimento de Mar del Plata apresenta quatro processos de transformação urbana entre 1874 e 1950; da vila surgida como porto e fundado sobre terras privadas (1874 – 1880), a vila balneária dos grupos dirigentes (1880 – 1920), para passar a cidade balneária (1920 – 1935) e finalmente mudar para cidade de turismo massivo (1935 – 1950). Op. cit. nota 4, p. 52 e 53.

13
BALLENT, Anahí. “Chalé (Chalet)”. In LIERNUR, Jorge Francisco e ALIATA, Fernando, (ed.). Diccionario de Arquitectura en la Argentina, tomo C/D, Buenos Aires, Clarín, 2004, p. 69. Ver também COVA, Roberto e GÓMEZ CRESPO, Raúl. Arquitectura marplatense. El pintoresquismo. Resistencia, Instituto Argentino de Investigaciones de Historia de la Arquitectura y del Urbanismo, 1982.

14
ZUPPA, Graciela. “Construcciones y representaciones en los nuevos escenarios de la naturaleza costera: Mar del Plata norte en sus orígenes”. In ZUPPA, Graciela, VELÁZQUEZ TORRES, David e ARRUDA, Gilmar (orgs.), Natureza na América Latina: apropriações e representações. Londrina, Universidade Estadual de Londrina, 2001, p. 77.

sobre os autores

Lorena Marina Sánchez, arquiteta e docente da Faculdade de Arquitetura, Urbanismo e Design (FAUD) da Universidad Nacional de Mar del Plata (UNMdP), bolsista de doutorado do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET), aluna do “Mestrado em Intervenção do Patrimônio Arquitetônico e Urbano” da mesma faculdade e do “Doutorado em Arquitetura” da Faculdade de Arquitetura, Urbanismo e Design (FAUD) da Universidad de Mendoza (UM).

Mariana Fernández Olivera, arquiteta e docente da Faculdade de Arquitetura, Urbanismo e Design (FAUD) da Universidad Nacional de Mar del Plata (UNMdP), aluna do “Mestrado em Intervenção do Patrimônio Arquitetônico e Urbano” da mesma faculdade e do “Doutorado em Arquitetura” da Faculdade de Arquitetura, Urbanismo e Design (FAUD) da Universidad de Mendoza (UM).

Tradução Ivana Barossi Garcia

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