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Neste artigo, Fabiano Sobreira traz questões relacionadas ao pensamento urbano atual; como se situa dentro da discussão sobre os limites da ciência e da filosofia e o que tem a ver com as discussões entre diversidade e metateorias, pós-modernidade e moder


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SOBREIRA, Fabiano. Pensamento Urbano, Ciência e Filosofia. Ruptura ou Crise?. Arquitextos, São Paulo, ano 08, n. 094.04, Vitruvius, mar. 2008 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.094/159>.

Pensamento Urbano, Ciência e Filosofia

Como o pensamento urbano atual está situado dentro da discussão sobre os limites da ciência e da filosofia? O que o pensamento urbano tem a ver com as discussões entre diversidade e metateorias, pós-modernidade e modernidade? Sobre modernidade, Marshall Bermann, em “Tudo que é Sólido Desmancha no Ar”, afirmava:

Existe um tipo de experiência vital – experiência de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida – que é compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo, hoje. Designarei esse conjunto de experiências como ‘modernidade’.” (2)

David Harvey (3), em “Condição Pós-moderna”, desenvolve essa percepção de Bermann e nos fala que o sentido de ruptura ou de transição do pensamento ou de uma cultura são percepções ou reflexos de novas experiências e sentimentos relacionados ao tempo e ao espaço, isto é, quando as relações de tempo e espaço mudam perceptivelmente, há um sinal de forte transição cultural, econômica, social, política. E não há nada mais relacionado à experiência de tempo e espaço na cultura de uma sociedade, figura metafísica, do que a sua imagem física: a cidade. Nesse sentido, segundo Harvey,

O ambiente construído constitui um elemento de um complexo de experiência urbana que há muito é um cadinho vital para se forjarem novas sensibilidades culturais. A aparência de uma cidade e o modo como os seus espaços se organizam formam uma base material a partir da qual é possível pensar, avaliar e realizar uma gama de possíveis sensações e práticas sociais”. (4)

Essa percepção estimula o pensador a voltar o seu olhar para a cidade, como uma rica e contraditória fonte de reflexões. Além disso, conduz a uma incessante busca, nos domínios ‘não-urbanos’ (ao menos diretamente), de respostas a novas e inquietantes questões relacionadas ao seu objeto primeiro, que neste caso é a cidade. Há, dessa forma, um fluxo recíproco de influências, entre o urbano e o não-urbano, e tudo parece se encaixar dentro de uma discussão maior que é o pensamento humano (urbano ou não), do qual fazem parte a ciência (observação da realidade) e filosofia (reflexão sobre a realidade).

Dessa forma, surgem algumas inquietações. Entre elas, uma mais provocadora: estaria a ciência em crise? E quanto à diversidade de idéias sem ideais, que foi (e ainda é) a pós-modernidade, em sua contraposição ao ideal sem diversificações, que foi o modernismo: seria essa pós-modernidade uma extensão deste último ou realmente uma ruptura? Ou seria apenas modernidade em crise? Não se sabe ao certo se essas perguntas guardam respostas claras ou definitivas, sabe-se apenas que são incômodas e afetam a postura do pensador ou ‘cientista’ urbano, à medida que ficam suspensas no ar, exalando odor de uma sociedade em decomposição.

Falemos então da necessidade de se discutir o pensamento urbano junto às questões da filosofia e da ciência. Como assim filosofia? O que Descartes, Marx, Foucault, Derrida, para citar alguns exemplos, têm a ver com as posturas e os pensamentos urbanos? Seria ingenuidade pensar que Corbusier escreveu a sua Carta de Atenas fechado em uma redoma (feita em vidro e concreto por Mies), isolado do mundo e das idéias que pairavam no ar. O provável é que Decartes tenha freqüentado a sua cabeceira. A Bauhaus, antes de ser da arquitetura, foi uma escola de idéias estéticas conduzida pelos avanços da ciência e das novas idéias da filosofia alemã. Ampliando a discussão estética e trazendo para a arquitetura, podemos ousar dizer, para a insatisfação de seus mentores e discípulos, que o “deconstrutivismo” na arquitetura, foi mais uma vertente retórica do pós-modernismo (5). E podemos ir mais longe: o pós-modernismo foi uma extensão alegórica do modernismo, pois não houve uma clara ruptura de espaço e tempo do objeto arquitetônico e urbano dito pós-moderno. A ruptura foi filosófica, em alguns casos apenas retórica. Afinal, a “deconstrução arquitetônica” surgiu inspirada nas colagens literárias e nos fragmentos de textos sugeridos por Derrida (6). E o pós-modernismo dos sem esperanças e sem ideais encontra na filosofia pós-moderna a inspiração perfeita, através do seu pragmatismo e efemeridade (7). E o que dizer de Marx em relação aos pensadores urbanos? Qualquer semelhança entre o edifício-máquina e o operário que é uma peça da revolução não é mera coincidência. Assim podemos aproximar Marx do modernismo, por suas idéias que tendem ao iluminismo, idéias científicas. Por outro lado, surpreendentemente, há um pouco de pós-modernidade em Marx (ou diríamos marxismo no pós-moderno). Não no projeto iluminista, mas na consciência do efêmero, da transição, da complexidade da vida moderna:

Todas as relações fixas, enrijecidas, com seu travo de antiguidade e veneráveis preconceitos e opiniões, foram banidas; todas as novas relações se tornam antiquadas antes que cheguem a se ossificar. Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é profanado...” (8).

Filosofia e ciência são, pois, reflexão e observação, respectivamente. No pensamento urbano, cada uma dentro de seus limites e aplicabilidades (quando aplicáveis), filosofia e ciência apresentam a sua força.

Parece então ficar mais claro o porquê de se reunir em uma discussão o pensamento urbano, a ciência e a filosofia, sob o enfoque da crise da modernidade. Trata-se, afinal, de uma discussão sobre como olhar a cidade. Mas que aspectos desse olhar podem interessar nessa discussão? Talvez revisitando Bachelard, segundo o qual “o espaço compreendido pela imaginação não pode ficar sendo o espaço indiferente abandonado à medida e reflexão do geômetra” (9). Talvez a própria idéia de cidade, enquanto ‘artefato’ claro e definido, gerando a idéia de uma grande máquina, controlável e definível. O que seria, então, a cidade? Talvez não um objeto concreto, mas uma sucessão de fenômenos, alguns não tão concretos e palpáveis.

Há um outro aspecto, talvez o mais importante e com certeza polêmico, que não está na cidade em si, mas na própria designação da disciplina que se encarrega de compreendê-la: a ciência urbana. Essa designação leva à aceitação de que o estudo do fato urbano deveria ser conduzido dentro dos rigores do método científico (10). Se o objetivo da ciência urbana é compreender a cidade como objeto e sintetizar a sua complexidade em esquemas compreensíveis e racionais, passíveis de descrição e transcrição, surge uma contradição com o espírito pós-moderno, que não distingue, neste caso, o sujeito e o objeto do conhecimento. Enquanto ciência, a disciplina deveria buscar domínio e controle sobre o espaço e o tempo, outra forte contradição com o espírito da pós-modernidade, que não acreditava na ciência como a principal responsável pelo progresso e emancipação do homem. Enfim, parece ser contraditório falar de uma ciência urbana pós-moderna. Por quê?

Vejamos: se a idéia da pós-modernidade é realmente a sua “total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico” (11), há uma negação à própria existência do cientista, que é o elemento responsável pelo controle, pela unidade, pela continuidade e pela ordem. Harvey chega a sugerir que no campo da arquitetura e do projeto urbano, o pós-modernismo é uma ruptura com a idéia modernista e “cultiva um conceito do tecido urbano como algo necessariamente fragmentado, um palimpsesto de formas passadas superpostas umas às outras e uma colagem de usos correntes, muitos dos quais podem ser efêmeros”. Está aí a grande contradição: como ser efêmero e portanto pós-moderno, se a própria atuação do cientista urbano enquanto pesquisador ou planejador é carregada de um espírito definidor, idealizador? O planejador urbano, mesmo que admita uma postura fragmentária e de superposições, tende a apresentar um produto único, contínuo, planificado (12). Uma “obra de autor” e não de autores em sucessiva construção, como propõe a filosofia pós-moderna.

Na verdade, não parece ter havido uma clara ruptura no espaço e no tempo, entre a modernidade e a suposta pós-modernidade, pois os produtos dos planejadores urbanos se contradizem com o discurso da diversidade e da efemeridade. São (em sua maioria) produtos planejados e idealizados para serem definitivos no espaço e no tempo: para não crescerem, não mudarem, não se adaptarem.

Além do planejamento em si, a própria postura científica apresenta-se como algo contraditório. Muito se fala que a pós-modernidade é uma ruptura ao “projeto iluminista”, no qual o modernismo teria sido o auge. Se o ideal iluminista carrega a busca de um ideal, o pós-moderno recusa ideais em nome das idéias. Talvez na literatura, nas artes plásticas ou na filosofia o pensamento pós-moderno tenha encontrado menos contradições e tenha se estabelecido mais firmemente. Nos campos da cientificidade, no entanto, há uma barreira lógica, que mesmo assim não é admitida por muitos pós-modernos. Em outras palavras, como abalar o espírito iluminista sem abalar a própria idéia de ciência? Afinal, a ciência, qualquer que seja, é experimental, parte da observação (que vem da própria definição de ciência).

Como abalar o sentido de ciência no estudo do fato urbano (como desejam os pós-modernistas) se a sua disciplina traz claramente em sua designação o rigor e a definição científica? É o caso do urbanismo. Como falar de um urbanismo pós-moderno se a própria idéia de sintetizar o tema urbano em uma disciplina, sob os domínios de um ‘cientista urbano’ é contrária aos princípios (ou à falta de princípios) pós-modernos? Poderíamos, então, indagar: se a pós-modernidade prega o fim do “espírito científico”, estaríamos diante do fim da ciência urbana? O fim do urbanismo?

Se o estudo da cidade é, pois, objeto de uma “ciência urbana”, é imprescindível discutir o conceito de ciência e entender o que alguns pensadores têm definido como “crise paradigmática” (13).

Como contraposição a essa idéia de ‘fim da ciência’, muitos cientistas e filósofos contemporâneos acreditam na reconstrução da idéia de ciência, e que o seu conceito ‘moderno’, que está vinculado ao projeto iluminista de ordem, controle e síntese, tem sido substituído por uma percepção da desordem, do descontrole, da diversidade. Segundo Harvey (14), no campo das ciências, a pós-modernidade se caracteriza por uma espécie de recusa à eterna busca de “leis universais” para o funcionamento do universo. Como exemplo, cita as idéias de Kuhn e Feyerabend,e a ênfase na descontinuidade e na diferença na história e a primazia dada por Focault a “correlações polimorfas em vez da casualidade simples ou complexa”.

Nesse sentido, John Horgan (15), um dos editores da revista Scientific American, autor de “O fim da ciência – uma discussão sobre os limites do conhecimento científico” – um título mais pós-moderno que esse parece impossível – nos apresenta o rumo dos diversos campos da ciência nesse fim de século, transição de milênio. No capítulo intitulado “O fim da filosofia”, fala dos paradigmas de Thomas Kuhn (que abandonou a física pela filosofia) e da “anarquia” de Paul Feyerabend. Falando sobre uma possível crise na ciência pós-moderna (que segundo Boaventura Santos é uma crise paradigmática) Horgan (16), citando Kuhn, afirma: “A maioria dos cientistas nunca questiona o paradigma. Eles resolvem os enigmas, problemas que reforçam e estendem o alcance do paradigma em vez de questioná-lo.(...) Há sempre anomalias, fenômenos que o paradigma não consegue explicar ou até o contradizem. As anomalias são freqüentemente ignoradas, mas, se acumuladas, podem provocar uma revolução (também chamada mudança de paradigma)”. Ainda citando as idéias que Thomas Kuhn apresentou em ‘A estrutura das revoluções científicas’, Horgan (17) comenta: “algumas áreas, como a economia e outras ciências sociais [podemos incluir a ciência urbana], nunca se mantém fiéis por muito tempo a um único paradigma, porque tratam de problemas para os quais nenhum paradigma será suficiente. As áreas que atingem o consenso – ou a normalidade, tomando emprestado o termo de Kuhn, só o conseguem porque seus paradigmas correspondem a algo real na natureza, algo verdadeiro.” Tudo parece mais uma vez confuso? Onde se encaixam nessas observações o interesse do pensamento urbano? Antes de chegar lá, destaquemos algumas idéias de Feyerabend, citadas por Horgan (18), que muito nos esclarecem sobre as idéias pós-modernas dentro das ciências: “a Filosofia não pode fornecer uma metodologia ou uma racionalidade para a ciência, pois não há racionalidade a explicar.’ Ainda segundo Feyerabend, “os intelectuais influentes, com seu zelo pela objetividade, matam esses elementos pessoais. Não são libertadores da humanidade, mas criminosos”. Segundo Horgan, ele atacava a ciência porque reconhecia – e temia – o seu poder, o seu potencial de eliminar a diversidade do pensamento e da cultura humanos. Enfim, em uma típica expressão anti-iluminista, Feyerabend afirma: “a própria verdade é um termo retórico”.

Pois bem. Todos esses discursos foram proferidos por filósofos e cientistas, mas na verdade poderiam estar registrados em manifestos pós-modernos e anti-modernistas da arquitetura e do urbanismo, como nos escritos de Charles Jencks (19) ou nos manifestos deconstrutivistas de Zaha Hadid, de Libeskind, ou de Peter Eisenman, referindo-se a Derrida. Muitas vezes, no entanto, todos esses discursos mais pareciam retóricos do que práticos. É verdade que o modernismo também foi carregado de intensa retórica, de utopias sociais, revolução através da arquitetura, construção, produção. O sentimento do final do século XX, comparado ao espírito do seu início é algo como se o mundo tivesse crescido demais e a experiência de espaço e tempo assimilada pelo homem contemporâneo não suportasse mais o ritmo da “construção do progresso”. A era da comunicação substitui a era da industrialização. O pensamento urbano industrial, que requeria produção em série (soluções em massa) passara a ser substituído pelo pensamento urbano da informação e das múltiplas redes de socialização, caracterizadas pela diversidade formal e pela descentralização da produção (como as favelas, por exemplo). Mas a questão urbana, em essência, parece insistir no ensaio de laboratório, em que o produto do planejamento tem sido a imposição de um modelo. Mesmo que aquele seja um modelo localizado e único, ele tende a ser permanente e limitado enquanto proposta, enquanto idéia. Ainda tem sido autoral, ao invés de coletivo. Estático, ao invés de dinâmico. E o espaço real não é autoral, especialmente o espaço público, a cidade. Seria suficiente, então, para uma ciência urbana que se diz pós-moderna, apenas inserir prefácios e manifestos discursivos que pregam a fragmentação, a diversidade e a efemeridade? Haveria, dessa forma, uma forte contradição, pois o que viria depois seria uma síntese, um “falso consenso”, uma imagem congelada da realidade dinâmica. Um projeto, por mais diversificado e localizado que se propõe ser, é um ensaio fotográfico, quando na verdade a realidade é imagem em movimento (no espaço e no tempo).

Torna-se fácil, então, acreditar numa postura pós-moderna na literatura, na filosofia e nas artes-plásticas, mas torna-se suspeito defender o fim da ciência e do iluminismo no exercício e na elaboração de produtos que continuam sendo intrinsecamente ‘iluministas’, pois se apresentam como ideais, sínteses. Seria, então, o pós-modernismo na cidade apenas um desabafo à intensidade produtiva do modernismo? Como definir se a atitude de um planejador ou de um pesquisador urbano é uma atitude pós-moderna? A única alternativa seria negar a existência do cientista, do urbanista, e juntamente com ele, o fim de sua ciência, o fim do urbanismo.

As inquietações então persistem; menos como perguntas (afinal não se esperam respostas, pelo menos não deste autor) e mais como reflexões, suposições, auto-provocações. Haveria, realmente, soluções? Se a pós-modernidade prega (ou pregava) o fim ou a transitoriedade da verdade, como definir a atividade do planejador urbano? Se o produto de sua verdade não deve ser entendido como algo absoluto, onde está a sua autoridade intelectual e o seu domínio técnico? Como, então, atuar sobre as cidades sem um ato de poder?

O que constatamos é que lidar com a ciência é realmente um desafio ousado no mundo atual, principalmente quando os seus efeitos não mais são apenas anti-estéticos, mas são também anti-éticos. Quanto mais se torna difícil responder às perguntas iniciais, mas fácil é admitir a sua importância e urgência. Tantas inquietações filosóficas tendem a gerar crises, que não são apenas metodológicas, mas paradigmáticas como sugere Boaventura Santos (20), isto é, crises que afetam não apenas o método, mas as bases conceituais, os princípios. O fato é que diante da ameaça ao espírito científico, inclusive dentro do pensamento urbano, parece ter havido uma espécie de reação, que poderíamos “apelidar” de “racionalismo esclarecido” (assim como os déspotas). O que se tem atualmente, então, são duas posturas contemporâneas, resultantes da reflexão entre modernidade e pós-modernidade sobre as ciências (que têm-se refletido, como veremos, no pensamento urbano). A primeira, da qual já falamos, prega o fim da ciência, enquanto definidora de verdades, por defender a diversidade, o descontrole, a “relatividade absoluta” (evidentemente contraditória). Essa é a “pós-modernidade anti-iluminista”, sem ideais, sem padrões, sem objetivos lógicos. Por outro lado, há os que defendem não o fim da ciência, mas a sua crise, uma crise construtiva, de onde sai fortalecida. A ciência moderna estaria em crise, mas o espírito científico estaria mais forte do que nunca (e mais do que nunca ousado). Seria este o velho espírito moderno rejuvenescido pelos tempos atuais, ou uma vertente do espírito pós-moderno, que contraria o anti-iluminista?

Segundo Harvey (21), “os novos desenvolvimentos na matemática – acentuando a indeterminação (a teoria da catástrofe e do caos, a geometria dos fractais) - , o ressurgimento da preocupação na ética, na política e na antropologia (...) – tudo isso indica ampla e profunda mudança na estrutura do sentimento”, e esses exemplos indicariam a rejeição de metateorias (interpretações teóricas de larga escala pretensamente de aplicação universal). Harvey, no entanto, parece não se dar conta de que esses “novos desenvolvimentos na matemática”, definidos como “ciências da complexidade” (que incluem caos (22), fractais, sistemas adaptáveis complexos...) são exatamente a resposta positivista do pós-modernismo à “crise do pensamento científico moderno”. São mais do que nunca uma retomada do projeto iluminista. Algo que até parece contraditório. Em outras palavras, os “complexologistas” mudam os paradigmas, mas mantêm (e até fortalecem) as intenções racionais, a busca por regras universais, enfim, a “cientificidade”. É um novo espírito científico, em nome da diversidade.

Nesse sentido, podemos citar John Holland (23), conceituado ‘complexologista’, autor de ‘Ordem Oculta’, ao afirmar que muitos de nossos problemas - balança de mercado, sustentabilidade, AIDS, defeitos genéticos, saúde mental, vírus de computador, - estão centrados em certos sistemas de extraordinária complexidade. Os sistemas que guardam tais problemas - economia, ecologia, sistema imunológico, embriologia, sistema nervoso, redes de computação, - parecem ser tão diversos quanto seus problemas. Apesar das aparências, contudo, os sistemas compartilham significantes características e são definidos como sistemas adaptáveis complexos (CAS). Isso é mais do que uma terminologia. Isso assinala a intuição de que há princípios gerais que governam todos os comportamentos dos CAS, princípios que ajudariam a resolver os problemas que a lógica euclidiana deixou para trás.

Para a ciência urbana, esse novo olhar sobre as ciências parece ter surgido como uma grande saída: o equilíbrio desejado entre a diversidade e a fragmentação da cidade e a necessidade metodológica do rigor cientifico (24). Essa questão tem sido tratada com bastante atenção por uma série de pesquisadores urbanos, nos últimos anos. Ora de forma matemática, ora de forma teórica e conceitual, esses cientistas (Hillier (25), Batty, Frankhauser) estão lançando mão de ferramentas - como os computadores - e de novos conceitos, para entender ou atuar sobre a cidade contemporânea, seja de forma discursiva, estética ou matemática. São posturas pós-modernas, pois destacam a diversidade e a complexidade como variáveis indispensáveis. São modernas, pois não descartam a razão iluminista como base científica. Estamos, portanto, em um período em que tem sido muito comum se apropriar das diversidades e saborear as divergências, ao invés de tentar classificar, rotular, extinguir ou retomar estilos e tendências.

Enfim, há uma crise, pois a evolução do conhecimento parte da consciência dos conflitos e por isso as crises são contínuas. Às vezes essas crises são superficiais e outras vezes simbolizam rupturas. Mas diante de tanta diversidade, qual posição nós, pensadores do universo urbano, deveríamos tomar? Talvez seguir o conselho de “um certo” Feyerabend (26): “Não tenho posição! Quem tem uma posição fica sempre imobilizado, parafusado. Eu tenho opiniões que defendo um tanto vigorosamente, depois descubro como são tolas e desisto delas!”.

notas

1
Versão revisada e atualizada de texto originalmente publicado no caderno Escritos Urbanos, do Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco, em 2000.

2
BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. 4ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1986, p. 15.

3
HARVEY, D. Condição Pós-Moderna. 7ed. São Paulo, Edições Loyola, 1998.

4HARVEY, D. Idem, Ibidem, p. 69.

5
PAPADAKIS, M (Editor). Art & Design The New Modernism – Deconstructionist Tendencies in Art. London, Academy Group, 1988.

6
PAPADAKIS, M (Editor). Architectural Design - Deconstruction III. London, Academy Editions, 1994.

7
Segundo HARVEY, D. Op. Cit., p. 91.

8
Manifesto Comunista, de Marx e Engels, citado por HARVEY, D. Op. Cit., p.97.

9
BACHELARD, G. A filosofia do Não; O novo espírito científico; A poética do Espaço. São Paulo, Abril Cultural, 1979, p. 196.

10
BARDET, G. O Urbanismo. São Paulo, Papirus Editora, 2001.

11
HARVEY, D. Op. Cit., p. 96.

12
LACAZE, J. Os Métodos do Urbanismo. São Paulo, Papirus Editora, 2001.

13
SANTOS, B. Introdução a uma Ciência Pós-Moderna. Portugal, Edições Graal, 1989.

14
HARVEY, D. Op. Cit., p. 19.

15
HORGAN, J. O fim da ciência – um discurso sobre os limites do conhecimento científico. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

16
HORGAN, J. Idem, Ibidem, p. 61.

17
HORGAN, J. Idem, Ibidem, p. 66.

18
HORGAN, J. Idem, Ibidem, p. 67.

19
JENCKS, C. The Architecture of the Jumping Universe, 2ed. London, Academy Editions, 1997.

20
SANTOS, B. Op. Cit..

21
HARVEY, D. Op. Cit., p. 19.

22
GLEICK, J. Caos - A Criação de uma Nova Ciência. 4ed. São Paulo, Editora Campus, 1991.

23
HOLLAND, J. HiddenOrder - how adaptation builds complexity. 3ed. USA, Perseus Books, 1998, p. 4.

24
BATTY, M ; LONGLEY, P. Fractal Cities - A Geometry Form and Funcion. 1ed. London, Academic Press, 1994.

25
HILLIER, B.; HANSON, J. The Social Logic of Space. London, Cambridge Universe Press, 1997.

26
HORGAN, J. Op. Cit., p. 70.

sobre o autor

Arquiteto e urbanista, graduado na Universidade Federal de Pernambuco, Doutor em Desenvolvimento Urbano (UFPE/University College London), coordena o Setor de Acessibilidade e Projetos Sustentáveis na Câmara dos Deputados, é professor e pesquisador no UNICEUB – Centro Universitário, em Brasília e arquiteto-sócio do escritório OFFICINA 3 Consultores Associados.

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