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architexts ISSN 1809-6298


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O artigo de Eneida de Almeida e Kátia Azevedo Teixeira traz alguns dos resultados obtidos pela investigação sobre o percurso da atuação profissional do arquiteto Jon Maitrejean, através da análise de seus projetos de casas


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ALMEIDA, Eneida de; AZEVEDO TEIXEIRA, Kátia . Jon Maitrejean:. A casa como mote de reflexão e experimentação. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 102.01, Vitruvius, nov. 2008 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.102/92>.

Uma invejável inquietude

O arquiteto Jon Maitrejean (Eibar /Espanha, 1929) conserva aos 79 anos um perfil absolutamente marcante reconhecido por aqueles que com ele conviveram em diversas circunstâncias de sua carreira, por sua inteligência inquieta, aliada à acuidade e independência de pensamento: combinação poderosa que lhe permite apresentar-se, em qualquer situação, como um interlocutor respeitável, hábil e corajoso intelectualmente porque capaz de refletir e rever conceitos novos ou estabelecidos. Sem o temor de parecer incoerente, o arquiteto faz do auto-questionamento uma característica do seu modo se ser e de agir, reposicionando-se sobre convicções já defendidas em outros momentos e contextos de atuação, como se, lembrando Habermas (1), suspendesse o juízo para, de fato, buscar o conhecimento.

Sua atividade profissional contempla, ao longo de mais de 50 anos, diversas frentes de atuação, desde a produção arquitetônica em diversas cidades e estados – casas, escolas, centros comerciais, edifícios de habitação, hotéis, projetos na área de abastecimento e consultoria em logística de supermercados – à participação efetiva junto às entidades representativas da categoria profissional dos arquitetos e de órgãos deliberativos. Não é incomum, portanto, que nos surpreendamos com o interesse e vitalidade que o fazem somar a essas atividades mencionadas, a atuação no ensino. É, com certeza, um dos poucos arquitetos a se manter ligado por todos esses anos à formação de jovens estudantes da graduação em arquitetura e urbanismo.

Iniciar uma investigação que recupere parte desse percurso é o interesse deste estudo. A atenção a certos projetos de residências das décadas de 1960 e 70, considerados entre os mais representativos da atuação do arquiteto Jon Maitrejean, possibilita retomar uma discussão deixada de lado na experiência mais recente da arquitetura brasileira contemporânea, ou seja, o tema da industrialização dos componentes da arquitetura residencial e a tão propalada utopia da “máquina de morar”.

Esta é uma – certamente não a única – das preocupações centrais que norteiam as soluções adotadas pelo arquiteto naquele momento. O processo industrial, entendido como sistema de produção a ser empregado na construção civil, é visto sob a perspectiva de diminuição dos custos e aceleração dos tempos de execução, por contribuir para a otimização do desenvolvimento dos trabalhos no canteiro de obras e, sobretudo, por favorecer a pesquisa e a experimentação de novos modelos em relação aos métodos e materiais tradicionais.

A análise desses projetos requer situá-los no contexto da produção da Arquitetura Moderna e relacioná-los com projetos significativos enquanto referências de um paradigma renovador: a máquina. Neste sentido, a casa do século XX representou um dos objetos mais adequados para experimentar idéias e afirmar conceitos.

Os anos de formação e as primeiras eleições simbólicas

A desenvoltura em desenho e em matemática, disciplinas fundamentais para a aprovação no vestibular, em tempos de provas escritas e orais, é determinante para a escolha da área de estudo e permite que Jon Maitrejean ingresse como primeiro colocado, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 1949. O novo mundo que ali se descortina é definitivamente arrebatador: os debates do meio profissional que ecoam na escola, entre os quais o papel proeminente do arquiteto no equacionamento de questões sociais; a polêmica entre classicistas e modernistas, como decorrência do clima de renovação cultural que acompanha o desenvolvimento das vanguardas artísticas; a radical transformação da produção arquitetônica propiciada pelo aporte de novas tecnologias. Toda essa ebulição que incide no ambiente universitário interessa muitíssimo ao jovem estudante.

Maitrejean (2) conta, como quem evoca com prazer inúmeras experiências vividas, que desde o segundo ano do curso trabalhava com Abelardo de Souza, seu professor, e é o próprio Abelardo, amigo de Lina Bo Bardi, quem o indica para elaborar os desenhos da Casa de Vidro. Concluída a graduação, é convidado para ser assistente de Abelardo de Souza, já a partir do ano seguinte, 1954. É portanto o primeiro aluno formado pela FAUUSP – desvinculada da Escola Politécnica em 1948 – a retornar a ela como docente. Essa feliz circunstância possibilita o início de liames consistentes e duradouros com as questões que relacionam a prática profissional e o ensino.

A trajetória de trabalho é composta, em sua maior parte, pelo exercício da atividade como autônomo, pontuada por algumas experiências vinculadas a empresas. Do extenso itinerário, três momentos são aqui destacados pela repercussão que tiveram no pensamento e na produção do arquiteto.

O início da carreira é marcado pela parceria com a arquiteta Daisy Igel que, formada pelo Instituto de Design de Bekerley de Chicago, trabalha no escritório de Mies Van Der Rohe antes de voltar ao Brasil. As novas referências e informações, trazidas pela arquiteta de sua experiência fora do país, encontram campo fértil na inquietação de Maitrejean, instigando seu espírito de investigação. Um texto em particular, de autoria de Richard Buckminster Fuller (1895-1983), intitulado A filosofia de uma nova indústria (1929), revela-se material fundamental de indagação. Entusiasmado com as idéias ali veiculadas que destacavam a importância dos materiais leves, de fácil transporte e manejo, para o desenvolvimento dos processos de pré-fabricação e montagem dos componentes dos edifícios, o arquiteto compartilha o conteúdo com seus alunos da FAU. A retórica contundente de Buckminster Fuller contra os ultrapassados materiais pesados, de alta resistência à compressão, tais como tijolo e pedra, vinha de encontro com os anseios de inovação tão vivamente cultivados nos anos de formação universitária. Ultrapassado, naquele contexto em que os valores estão aportados na novidade, é sem dúvida um dos termos mais depreciativos e, portanto, algo a ser rejeitado.

A mudança de perspectiva da atividade autônoma para um vínculo com a empresa Duratex S/A Industria e Comércio, onde Maitrejean chefia a Divisão de Produtos Novos entre 1969 e 1972, não refreia suas preocupações, pelo contrário: passa a dedicar-se à pesquisa e à experimentação de novas soluções e materiais. O amadurecimento dessas idéias permitirá a apropriação e o emprego criativo de produtos industrializados como componentes da construção em várias de suas obras, contemporâneas ou posteriores a esse período, dentre as quais se destaca a “casa do arquiteto”.

A associação, a partir de 1975, com o arquiteto Georges Sallouti vem reforçar definitivamente o interesse pelo binômio “racionalização dos componentes e agilidade do processo construtivo”. Gradativamente ganha impulso no escritório Maitrejean & Sallouti Associados Arquitetos uma diferente frente de atuação, marcada pela elaboração de projetos ligados a novos programas de uso e de outra escala de construção. É a arquitetura dos grandes centros de abastecimento de distribuição, dos supermercados, um campo ainda pouco explorado (3). Além de não existir, até então, uma demanda significativa da atuação de arquitetos nessa área, pode-se afirmar que existe uma certa restrição entre os profissionais por esse tipo de trabalho. Ao priorizarem os pressupostos de racionalidade e logística, essas atividades são vistas como substancialmente técnicas, muito distantes do exercício da arquitetura de autor.

A persuasão dos projetos emblemáticos

Não apenas os textos, mas também os projetos visionários de Buckminster Fuller repercutiram na reflexão que acompanhou o desenvolvimento dos projetos de residência de Jon Maitrejean. Um deles em especial é mencionado como objeto de estudo e material de encantamento: a Casa Dymaxion, cujo primeiro protótipo foi idealizado em 1928. Constituída por um volume envidraçado de base hexagonal, suspenso por um mastro central ao qual se prendiam todos os elementos e subdivisões internas, foi pensada como unidade autônoma de uma produção em série que seria facilmente transportada para qualquer lugar. Um novo protótipo foi desenvolvido em 1944 e construído em 1946, a casa Dymaxion Wichita, um modelo circular revestido externamente em aço, que aplicava conceitos da indústria aeronáutica. (Fig.1)

Como afirma Weston (4): “a Casa Dymaxion longe da simples metáfora, surgia como uma verdadeira máquina para habitar”. Baseada no dinamismo e eficiência da tecnologia avançada, relega a plano secundário as heranças culturais e a preocupação formal. Para Fuller, continua Weston, a produção em massa deveria incorporar todas as potencialidades dos novos materiais, encarar os recursos mundiais e os meios de produção em perspectiva global, despir-se de toda carga cultural, para ser encarada como uma questão logística, semelhante a uma operação militar. Tal como os projetos de aviões, a casa deveria proporcionar a máxima solidez com o menor peso. Não por acaso, algumas de suas pesquisas foram aproveitadas nas viagens espaciais.

A persistência das preocupações avançadas por “Bucky” Fuller, como era chamado, faz com que, em 1991, Henry Ford Museum & Greenfield Village firmem uma parceria voltada à recuperação dos componentes e reconstrução de um dos protótipos Dymaxion, doado pela família Graham, então proprietária. O processo de limpeza e restauração das partes, nas próprias dependências do museu, se transforma em uma ação acompanhada pelo público durante todo o desenvolvimento do processo. Aberta a casa à visitação desde 2001, além do sistema construtivo em si, continua a despertar interesse a mobilidade como característica essencial do modelo.

Outra referência fundamental de pesquisa relacionada à pré-fabricação, mencionada por Maitrejean, corresponde aos projetos de casas publicados pela revista de Los Angeles, Arts & Architecture, em 1945, por iniciativa do editor John Entenza, como parte do Case Study House. O objetivo do programa era convidar arquitetos contemporâneos de renome para projetar uma série de casas-piloto que, além de publicadas, seriam construídas e expostas ao público com o intuito de serem vendidas. Duas dessas casas, de autoria de Charles Eames (1907-1978), em parceria com Eero Saarinen, foram construídas em terrenos próximos, em Pacific Palisades, Califórnia, uma delas destinada ao idealizador do programa, Entenza, e a outra ao próprio Eames.

A residência do casal Eames torna-se uma das casas emblemáticas do século XX, paradigma do raciocínio de aplicação da tecnologia industrial na produção de casas de boa qualidade, a baixo custo. Destaca-se a rapidez da execução: estrutura montada em 16 horas, pisos e tetos em apenas três dias (5). Um dos aspectos essenciais desse projeto é o fato de não se tratar de uma solução meramente técnica, mas possuir uma clara intenção estética. Como bem define Kirkhan (6), corresponde a “uma composição ao estilo de Mondrian, numa campina de Los Angeles”. A observação do volume prismático, marcado pela rica variação das formas definidas pelos requadros da estrutura em aço, propicia a inevitável associação com a série “Composição em vermelho, preto, amarelo e cinza” do pintor holandês. Os diversos padrões de formas e cores mostram-se na alternância de superfícies: ora opacas constituídas por painéis coloridos de madeira, ora translúcidas formadas por painéis em fibra de vidro, ora transparentes configuradas pelos planos envidraçados. (Fig. 2)

A casa do Pacaembu (José Mutarelli, 1966)

Entre as casas aqui analisadas, esta ilustra as residências unifamiliares projetadas pelo arquiteto para clientes vinculados ao circuito cosmopolita da alta burguesia paulistana, receptivos ao modelo modernista, e que atribuem status cultural à casa, enquanto objeto arquitetônico particular. Esta circunstância, se por um lado permite uma espécie de cumplicidade estética entre arquiteto e cliente, por outro impõe um distanciamento das questões mais evidentes que relacionam indústria e construção.

A implantação esconde a real dimensão do edifício que se acomoda no terreno disposto em declive. A organização do programa se faz através da criação de três patamares, articulados pela localização estratégica da escada: o térreo, que abriga o setor social e de serviços; o nível superior com os dormitórios e o pavimento inferior com a área de lazer: piscina, pátio, adega e sanitários. (Fig. 3, 4 e 5)

Sem dúvida, a forte inclinação do terreno em direção ao fundo do lote é fator determinante na solução de projeto e favorece a configuração de uma volumetria habilmente definida que se destaca na paisagem pela elegância conferida à combinação entre linguagem, proporções e materiais adotados. Em um preciso exercício de síntese, a fachada frontal é composta por poucos elementos: a grande empena cega e branca que se apóia no plano ajardinado, situado acima da quota da calçada; a mureta de contenção deste jardim, revestida em ladrilho hidráulico com motivos geométricos; e a linha da pérgula que prolonga horizontalmente a composição. (Fig. 6 e 7)

Esse recinto do jardim é importante elemento na concepção do projeto: é um corpo prismático amplo, de altura limitada, disposto no alinhamento do terreno, que dialoga com o volume da construção e com a rua. A mureta de contenção, disposta em formato de “U”, prolonga-se nas laterais do edifício, demarcando o pavimento térreo, a partir do encontro com a empena frontal.

O corpo construído é marcado, na parte superior da lateral que contém as aberturas dos dormitórios, por uma pérgula de arremate que se estende por todo o comprimento do bloco e finaliza de encontro às empenas cegas transversais voltadas para a frente e para os fundos do lote. Outro pérgula, situado abaixo do peitoril das janelas do piso superior, disposto perpendicularmente ao comprimento edifício, estende-se desde o corpo da casa até a divisa lateral, emoldurando horizontalmente o espaço da entrada.

Internamente ganha destaque a amplitude dos espaços de convívio em que sala de estar e jantar comunicam-se entre si, distinguidas por desnível de aproximadamente um metro. A situação privilegiada da paisagem avistada através das extensas faces de vidro, voltadas para o fundo do lote, configura uma espécie de anfiteatro natural que interfere na percepção das distâncias, sugerindo aproximação maior entre interior e exterior.

No setor íntimo, a circulação desenvolve-se ao longo do eixo longitudinal, conectando os dormitórios, beneficiada por dois recursos: a entrada de luz direta e o acoplamento de estantes em toda sua extensão. A abertura estreita e contínua, disposta na parte superior da parede, é configurada por um plano de vidro recuado em relação ao volume proeminente da face externa da parede. Esta é uma solução recorrente em projetos desse período: além de ampliar a função do corredor com a incorporação do mobiliário, ao longo de uma de suas paredes, confere identidade formal ao espaço de circulação.

A composição volumétrica é destacada pelo enquadramento constituído pelas pérgulas. Concorrem para a harmonia do conjunto o dimensionamento das peças e a definição dos detalhes de justaposição entre os vários planos. Observa-se aqui a primazia da plasticidade sobre a função prática de proteção e cobertura.

O uso de pastilhas brancas no revestimento das fachadas está associado à busca por uma qualidade plástica distinta daquela que emprega o concreto aparente. O propósito aqui é, ao invés de explorar a ductilidade e os efeitos de textura do material, assegurar uma relação sutil de planos e medidas que atribui leveza e elegância às formas.

A casa de Interlagos ( Feliciano Freire Mata, 1967)

Esta residência é representativa de várias outras desenvolvidas por Maitrejean, nas quais o arquiteto enfrenta uma questão constante na profissão: trata-se de elaborar um programa funcional e construtivo que deveria partir de materiais e técnicas convencionais, culturalmente aceitos pelo cliente.

Neste caso, a solução ilustra uma estratégia que retira o máximo de proveito do lugar, valendo-se da irregularidade do lote: a implantação é feita no sentido da diagonal, rompendo com a previsibilidade dos alinhamentos que os lotes em meio de quadra impõem. Cria-se assim, com este recurso, uma forte estrutura de relações entre a edificação e o entorno, ao permitir que ganhem interesse as várias áreas abertas e ajardinadas, em particular aquela voltada para leste, com grande dimensão, que acolhe a piscina. O desenvolvimento da habitação será conduzido e beneficiado, de forma constante, por esses espaços livres, tratados paisagisticamente, que ampliam o interesse do interior pela mirada externa.

Na planta retangular que acomoda o programa, a partir do acesso lateral, o vestíbulo organiza os vários ambientes do setor social, concebido como espaço único: à esquerda, o escritório e lavabo, seguido da ampla sala de estar; à direita, a sala de jantar e, à frente, a sala íntima. Um muro – originalmente de pedra ciclópica, hoje revestido e tratado com pintura branca – separa a sala de jantar do vestíbulo, e prolonga-se até o exterior onde delimita um pátio ajardinado, para o qual esta sala se abre. Os ambientes de estar se conectam diretamente com a grande área de lazer que inclui a piscina, na face oeste, através de planos verticais transparentes e da varanda, oportuna também pelo sombreamento que proporciona. (Fig. 8 e 9)

Os poucos elementos que demarcam os ambientes no setor social são independentes do teto, permitindo a continuidade interna do espaço, desejo que é acentuado pela visão desobstruída da viga em madeira que percorre toda a extensão, no sentido longitudinal, e que sustenta a cumeeira da cobertura em duas águas. Importante observar a particularidade de execução desta viga composta de madeira: ao invés de empregar o sistema comum de travessa formada por uma única peça de dimensões 6x16 cm, utiliza uma estrutura lamelar, formada por tábuas justapostas, semelhante às soluções adotadas por Pier Luigi Nervi. (Fig.10).

A partir desse conjunto, um claro eixo de circulação central delimita, de um lado, o setor íntimo e, de outro, o de serviços. Os quatro dormitórios, apoiados em um raciocínio modular, estão dispostos paralelamente e têm as aberturas voltadas para o grande jardim a oeste. Aos banheiros, intercalados entre os dormitórios, foi acrescentada uma solução bastante peculiar: permitem também, cada um, acesso direto à da área da piscina. O setor de serviços, contíguo à sala de jantar, é formado pela sala de almoço, despensa, cozinha, lavanderia, quartos e banheiro de empregados. As aberturas, voltadas para leste, obedecem a uma modulação e são caracterizadas pelas esquadrias de ferro industrializadas. Também nesta face esses ambientes se vinculam a pátios e áreas vegetadas, organizadas por muros e pequenos desníveis como elementos compositivos.

A casa do arquiteto (1971)

O domínio técnico associado ao comedimento de meios e à serenidade das formas são aspectos significativos desse projeto. Entre os principais critérios adotados destacam-se: o interesse pelas estruturas leves e pelos elementos pré-fabricados, a adoção de medidas relacionada à idéia de modulação e o cuidado no desenvolvimento do detalhe técnico de aproximação e arremate dos diferentes componentes. A todos esses aspectos essencialmente técnicos, vale associar, em condição de absoluta paridade, as preocupações estéticas traduzidas pela limpeza das formas e clareza na configuração espacial.

Na visão do exterior, sobressai o caráter reservado: em alvenaria de blocos de concreto, um muro alto ocupa quase toda a extensão do terreno e marca a grande diferença da quota de implantação da casa, em relação à quota da calçada. Este desnível cria a oportunidade para equacionar, disposto junto a uma das divisas laterais, o abrigo de carros. Ao lado deste, a escada de acesso desenvolve-se em dois lances: o inicial segue paralelamente ao muro do alinhamento e, unido ao patamar, ocupa dois terços da frente do lote; o segundo lance, perpendicular ao primeiro, encontra-se junto à outra divisa. Esta solução, uma interpretação da “promenade architeturale”, conforme os moldes corbusianos, conduz ao terraço, demarcado por banco de concreto, que precede a entrada da casa e oferece, em posição privilegiada, a vista do entorno tranqüilo e arborizado.

Mas é no interior das quatro paredes em blocos de concreto, definidoras do invólucro da casa, que o espaço se revela surpreendente: os ambientes se fundem e se sucedem, desenhados em torno de um espaço central com farta luz natural e vegetação, presença constante no cotidiano da casa, em um agradável equilíbrio entre o natural e o construído. É uma experiência estética que agrega uma atmosfera intimista, acolhedora, prazerosa.

Além da expressiva componente poética da solução, estão presentes raciocínios que revelam o interesse do arquiteto pelas questões ligadas à racionalização do projeto, entre as quais estão o uso de componentes industrializados, a padronização de detalhes e a atenção ao emprego eficiente de material e mão de obra.

A observação da planta sugere a aproximação com a casa mediterrânea por excelência, a “casa pátio”. O espaço interno, segundo informa o próprio arquiteto, é resultado de uma procura por solução alternativa às plantas usualmente adotadas em residências situadas em lotes estreitos, em que se previa a obrigatoriedade de recuos laterais de 2,00 m de largura, configurando corredores bastante acanhados junto aos muros de divisa. A idéia era trazer esses espaços laterais, para o centro do terreno, e com isso duplicar o vão que, nesta nova posição, formaria um pátio central com 4,00 m de largura, variando o comprimento. (Fig. 11 e 12)

A partir desse raciocínio, a área da planta é dividida em três partes, paralelas às paredes laterais. Esta modulação principal organiza os usos da habitação e da estrutura. O hall de entrada, voltado para a frente do lote, antecede o pátio. A faixa da esquerda, destinada ao estar, constitui uma ampla área com uma das faces limitada pelo jardim interno, de onde recebe iluminação e ventilação. (Fig.13) Este setor finaliza com a cozinha, definida por painéis modulares industrializados, aplicação das investigações do arquiteto sobre possibilidades de novos materiais e componentes para a construção.

A parte posterior do módulo central corresponde ao espaço destinado às refeições que, demarcado pela mesa de concreto, estabelece comunicação tanto com o pátio, como com o estar. Um pano envidraçado possibilita a integração do interior com a área livre situada aos fundos.

Na terceira faixa, à direita, está a seqüência de dormitórios: como células de espaço mínimo, são concebidos como um objeto industrial standard e têm acoplados a si os banheiros. Estes foram subdivididos em três partes, a central constituída pela bancada do lavatório, aberta para o dormitório, ladeada pelos módulos do chuveiro e bacia. A ventilação dos sanitários foi resolvida com uma fiada de tijolo de vidro com ventilação permanente, coerente com a dimensão da alvenaria. Todos os vedos internos são formados por painéis fabricados pela Duratex e agregam outros componentes, sempre que necessário: divisórias articuladas aos módulos de armário, para equacionar o ruído entre aposentos; três tipos de painéis no fechamento frontal: o que encerra os armários, aquele destinado à porta, e o terceiro, que recebe a janela. Estas aberturas, voltadas para o pátio interno, são constituídas de venezianas de alumínio com paletas de inclinação regulável, o que permite controlar a entrada de luz e a comunicação com o espaço social da casa.

Duas vigas metálicas treliçadas, dispostas longitudinalmente e referenciadas na modulação principal da casa, sustentam a cobertura de telhas de alumínio e delimitam o vão central coberto por elementos translúcidos. Esse espaço de convívio, entorno do qual gravitam os demais ambientes, é fonte de luz e proporciona aconchego, além de amplitude ao interior. (Fig. 14 e 15)

Um dos aspectos mais relevantes do projeto é o caráter experimental da pesquisa voltada aos componentes industrializados, presente tanto na concepção de montagem das divisões internas, quanto no uso da treliça metálica de sustentação da cobertura. Somente as paredes externas são de blocos de concreto. Esse uso responde à solicitação técnica de durabilidade e resistência à intempérie, mas não subverte a opção pela moderação, qualidade do que é essencial. O material é deixado aparente e por isso mesmo desnuda o cuidado com a modulação.

Apontamentos para reflexão

Entre os desafios da contemporaneidade, permanece a possibilidade de experimentação acerca de sistemas construtivos leves e desmontáveis, aliada às candentes preocupações ambientais. Na realidade, além de investir na pesquisa, é necessário buscar também uma maior aceitação na sociedade em relação a esses novos padrões construtivos para que superem a condição experimental e ganhem efetivamente espaço frente aos modelos tradicionais.

De qualquer modo a casa, como propósito e como fim, não se confunde com a arquitetura de uso coletivo, com o equipamento social. Desta compreensão decorre uma noção de decoro que se reflete na procura por uma apropriada correlação entre materiais e sistemas construtivos. O emprego do concreto, conforme entendimento do próprio Maitrejean, revela-se então pertinente para os edifícios de maior porte, associados ao uso público, cujos programas requerem imponência e monumentalidade e, nestas circunstâncias, a expressão de peso que caracteriza o material é tida como um atributo adequado. A habitação, por sua vez, não deve exibir-se com alarde e, portanto, comporta escolhas condizentes com o uso e o caráter comedido da edificação. Sem o receio de incorrer em imprecisão, pode-se afirmar que esse raciocínio permeia toda a sua produção de mais de duas dezenas de residências unifamiliares.

Os projetos do arquiteto para o uso residencial são, invariavelmente, o resultado de um elaborado processo de simplificação que reduz espaço e volume ao essencial, elimina ruídos e incorpora a idéia de rigor e sobriedade, de modo a refutar com vigor qualquer recurso acessório. Nota-se ainda a inexistência de uma concepção subordinada a critérios estéticos previamente estabelecidos; diferentemente, são as relações entre a construção material e a construção formal que servem à definição de identidade a cada moradia, em uma síntese que guarda e expõe uma condição: o saber fazer arquitetura de maneira apropriada.

E como é plausível pressupor que para a realização plena de uma obra arquitetônica deva haver uma sincronia entre as aspirações do cliente e a solução proposta pelo arquiteto, os três projetos de residência aqui analisados corroboram esta suposição. A casa do Pacaembu representa um exemplo idealizado para um cliente instruído, interessado no status cultural associado a essa arquitetura que se esmera na depuração formal dos espaços e volumes. A casa de Interlagos, destinada ao cliente menos aderente ao padrão formal e intelectual dos modelos modernistas, aproxima-se, por isso mesmo, da tipologia tradicional, à qual acrescenta tanto a concepção racional da organização, quanto a continuidade entre os espaços sociais e entre estes e os de lazer.

Coerentemente, a casa que constrói para si pode ser interpretada como uma espécie de manifesto de intenções de Jon Maitrejean. É justamente aquela que mais se aproxima dos dois exemplos citados como parâmetros instigantes de projeto – a Dymaxion e a casa Eames – no que se refere aos anseios de aplicar os procedimentos e elementos da produção industrial ao projeto de arquitetura. Não chega a materializar o aspecto mais revolucionário daqueles modelos, ou seja, a possibilidade de, uma vez prontos, serem desmontados e remontados em outro território. Evidentemente, o caráter de mobilidade associado a essas casas emblemáticas exigiria uma boa dose de desprendimento em relação ao modo de vida tradicional o que, com efeito, ultrapassa os limites da escolha individual.

Definida por Neutra (7) como “porto de ancoragem do espírito”, a casa, para Maitrejean, “não deve ser a âncora que nos amarra” ao território. Duas figuras de linguagem muito próximas entre si, por recorrerem à âncora como metáfora da casa, encerram sentidos somente à primeira vista contraditórios. Enquanto a primeira sugere uma visão atemporal em que se distingue o aspecto simbólico da casa sobretudo como abrigo preferencial à existência, a outra contrapõe-se à fixação da casa no lugar, a enfatizar a condição contemporânea marcada pela itinerância e pela rápida transformação dos ambientes urbanos.

A aproximação dessas duas afirmações pode sugerir que a ancoragem do espírito não necessariamente precisa estar ligada ao atracamento do corpo e do seu abrigo, vinculada à idéia de estabilidade permanente, mas pode estar associada ao desapego e à liberdade de deslocamento, a uma segurança interior que independe da imobilidade e da garantia de posse para se manifestar.

notas

1
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

2
Todas as referências às afirmações de Jon Maitrejean estão baseadas na série de entrevistas gravadas com o arquiteto, durante o ano de 2007, para a pesquisa em desenvolvimento, sob coordenação das arquitetas Eneida de Almeida e Kátia Teixeira

3
Hugo Segawa, no texto “ Arquitetura do comércio ou arquitetura comercial” (Projeto nª 132, 1990, pp. 42 a 46), cita alguns arquitetos paulistas que desenvolveram projetos para a área, anteriormente: Carlos A. C. Lemos, Zenon Lotufo, Ubirajara Ribeiro, Plínio Crocce.

4
WESTON, Richard. A casa no século XX. Lisboa: Blau, 2002, p. 83.

5
A praticidade do processo de montagem é uma questão relevante dos modelos que pretendem revolucionar a produção de casas, como informa Naomi Stungo em Charles e Ray Eames. São Paulo: Cosac & Naify, 2000, p. 15.

6
KIRKHAN, Pat. Charles and Ray Eames: Designers of the Twentieth century. Cambridge, MA, MIT Press, 1995, apud STUNGO, Naomi. Charles e Ray Eames. São Paulo: Cosac & Naify, 2000, p. 15.

7
WESTON, Richard. Op. cit.

8
Fonte dos desenhos: A partir do original publicado na revista Acrópole, nº 337, março de 1967, pp. 34-35, redesenho de Carolina Naltchadjian, Cristina Gouvea e Marcus Vinícius Santos para a pesquisa de Eneida de Almeida e Kátia Teixeira, com revisão do autor do projeto.

9
Fonte do desenho: A partir do original publicado na revista Acrópole, nº 345, novembro de 1967, p 34, redesenho de Carolina Naltchadjian, Cristina Gouvea e Marcus Vinícius Santos para a pesquisa de Eneida de Almeida e Kátia Teixeira, com revisão do autor do projeto.

bibliografia complementar

DE FUSCO, Renato. Storia dell’architettura contemporanea. Bari: Editori Laterza, 1982.

DUNSTER, David. 100 casas unifamiliares de la arquitectura del siglo XX. México: Gustavo Gili, 1994.

FUERTES, Pere e MONTEYS, Xavier. Casa collage. Un ensaio sobre la arquitectura de la casa. Barcelona: Gustavo Gili, 2001.

MONTANER, Josep Maria. Las formas del siglo XX. Barcelona: Gustavo Gili, 2002.

sobre os autores

Eneida de Almeida é arquiteta, doutoranda pela FAUUSP, mestre pela Universidade La Sapienza de Roma na área de história e preservação da arquitetura, professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu.

Kátia Azevedo Teixeira é arquiteta, doutora pela FAUUSP, mestre pela PUCSP na área de educação e currículo e professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu.

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