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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O artigo fala sobre a casa do embaixador Moreira Salles, onde o autor imprimiu sua identidade, e analisa as características que deixam a mostra esse fato, mas ao mesmo tempo convidam a serem desvendadas


how to quote

FRANÇA, Renata Reinhoefer. Arquitetura Cifrada: a Casa da Gávea de Walther Moreira Salles. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 104.05, Vitruvius, jan. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.104/84>.

A casa da gávea: o protocolo

Pronta no final do ano de 1951, a casa da Gávea é recebida para acolher uma intensa vida social, chegando a sediar em média três eventos por semana, entre festas e coquetéis. Os comentários da época, recorrentes nas várias reportagens das quais foi objeto, não diferem no tom: elegante é o adjetivo mais encontrado. Seu mordomo argentino, Santiago Badagiotti, que "tocava Beethoven num piano Steinway de cauda, declamava Ovídio em latim e fazia arranjos de flores sob inspiração de partituras clássicas" (1) dimensiona o refinamento do funcionamento diário da residência.

A casa do embaixador apresenta seus termos de negociação desde o primeiro contato. É feita sob medida (2): para um dono alinhado (3), uma casa em seu corte justo, caimento perfeito, em exatas proporções. A medida de seu garbo é calculada a priori, em cada pormenor, sendo futuras bainhas e ajustes de tamanho inconcebíveis, ao menos aqueles decorrentes do descaso.

A mão do dono está por toda a parte – literalmente – a começar pela marca de sua pegada nas maçanetas que se espalham pela residência cuja presença inevitavelmente nos faz pensar nos níveis de controle e abertura aos quais está submetida. Não, não poderia ser habitada por qualquer um, não caberia em qualquer lugar, sua identidade está definida: tem nome e sobrenome. É um espaço que de saída adverte pertencer a alguém.  

Espera convivas habituados ao mundo protocolar (4). Neste, cabe aos detalhes o poder de incluir ou excluir. Soluções fáceis não interessam: um desafio aquém da capacidade de resolvê-lo é tão insultante quanto outro além. Não deve haver, portanto, nenhuma sobra, nenhuma referência solta. Assim são as regras do pertencimento e do acesso. Trazer a chave da decifração, aqui, é saber navegar em códigos criptografados, ininteligíveis à maioria.

A casa de Walther Moreira Salles, por um lado, imprime um cartão de visita codificado: posta-se em mansidão aristocrática, emitindo sinais em comprimento de onda próprio, captável apenas em determinada freqüência, mas, por outro, nos convida abertamente a chegar mais perto de si, a ver o que virá.

Perfeita para o olhar estrangeiro

Quando pensamos nos códigos, o ponto de partida fundamental é quem os vai cifrar. Há que haver encontros, muitos encontros na leitura do mundo, para entender-se a linguagem utilizada, para chegar-se ao resultado desejado. Olavo Redig, assim, parece encaixar-se perfeitamente como arquiteto da residência já que, além do "preparo como poucos" (5), é iniciado no mundo do protocolo. Fala a língua do proprietário. Ambos freqüentam os mesmos círculos, têm amigos em comum, pontos fundamentais numa parceria desta ordem.

Situada no alto da Gávea, em meio à natureza exuberante da mata atlântica, a casa ocupa um terreno de proporções generosas, aproximadamente 10 mil m². A escolha do bairro a princípio poderia parecer um tanto estranha, já que exatamente nesses anos "as elites ficam menos receosas quanto às doenças epidêmicas e descem dos altos para residir na zona marítima" (6).

Apesar do costume das altas classes cariocas em habitar vastos terrenos urbanos, circundados pelo verde, na década de 50, após a Segunda Guerra Mundial, o Rio de Janeiro vive o momento de intensa confirmação de seu prestígio urbano, com Copacabana como a glamourosa manifestação da cidade (7). Nesse contexto, tanto a residência de Raymundo Ottoni de Castro Maya (8) como a de Moreira Salles, contemporâneas e herdeiras da tipologia das tradicionais “casas de chácara” cariocas, parecem oferecer resistência ao movimento migratório das elites para os arranha-céus de Copacabana. Talvez façam parte de uma elite mais tradicional, de uma aristocracia que se constitui como tal reafirmando valores já estabelecidos. E nenhum outro tipo de construção exprime com tanta autenticidade a vida íntima da gente carioca e o caráter regional de sua arquitetura como a “casa de chácara” (9).

Além disso, para um amante de literatura, talvez (10) a escolha daquele terreno tenha-se dado por ter acomodado o escritor inglês Rudyard Kipling, em 1927, em sua visita ao Brasil. Na ocasião, o escritor se hospedara em uma chácara onde hoje está a casa e de lá, circundado por aquelas matas da Gávea registrara, em “Brazilian Sketches” (11), sua fascinação pelo Brasil. Desejaria mergulhar na alma de Kipling, vestindo-se de seus olhos? Ou seria simplesmente uma boa opção de discussão com seus convivas, reforçando sua erudição? Ou ambos?

De qualquer forma, para muitos, nos dias de hoje, aquela seria uma mata indiferenciada, como tantas outras no Rio de Janeiro. Vê-la com outros olhos parece transpô-los para outro mundo, já engolido e perdido na sociedade de massas contemporânea. Percebemos fenecer alguns de seus sutis códigos, como esse, que persistem quase por um fio, num mundo de outras chaves.

Parede pompeiana

Logo na entrada principal há uma monumental parede vermelha. Ainda que não falemos de todas as paredes, é impossível nada dizer desta por ser notoriamente pintada no tom das casas de Pompéia. A pintura é encomendada a Dominique Jardy, uma artista francesa residente no Rio, com explícitas recomendações quanto à “temperatura” do vermelho. Por ocasião da restauração (12), quando a cor é retocada, muitos livros sobre a cidade, de diferentes edições, são consultados, até que Walther Moreira Salles ache um cujo tom o satisfaça. Intenciona encontrar o tom da “Vila dos Mistérios”, famosa pelas pinturas de seu triclinium, ou sala de jantar, que retratam a iniciação ao culto de Dionísio.

Na lei romana, a prática do culto a Dionísio era proibida, o que talvez explique a localização da Vila - fora dos limites da cidade de Pompéia. Somos aqui tentados a divagar sobre o quanto isso se relacionaria as pretensões da casa da Gávea, dada sua referência e localização. Por ora, atenhamos-nos apenas a “Vila dos Mistérios”. Ali, o culto poderia ser praticado em paz, sem interrupções. As pinturas das paredes do triclinium têm um efeito avassalador. Sucedem-se cenas do rito, que, se lidas da esquerda para a direita, apresentam inicialmente a introdução da cerimônia sagrada por um menino, talvez Dionísio, que lê o ritual na presença de duas mulheres. Na seqüência, outra mulher leva um prato de oferendas para uma sacerdotisa que está sentada de costas para nós, preparando um sacrifício, assistida por dois ajudantes. Um velho Silenus toca lira, próximo a duas figuras semelhantes a sátiros. A última figura é uma mulher, aterrorizada, tentando fugir de algo que verá nas cenas seguintes. Ela insere uma confusão espacial e temporal ao friso. Faz com que as paredes conversem - se assusta com o retratado na parede oposta, onde a iniciada está para ser chicoteada, parte do processo de iniciação. Para manifestar-se quanto à cena em frente, tem que passar por nós, espectadores. Subitamente, somos inseridos na trama - todos aqueles personagens estão agora conosco na sala de jantar. E como sua apreensão diz respeito à cena futura, também confunde o fluxo de um tempo cronológico, imprimindo simultaneidade aos eventos. Na seqüência esquerda-direita, há outra imagem de Silenus, desta vez barbado, oferecendo uma bebida a dois sátiros e uma pintura de Dionísio e Ariadne. Como Silenus volta a aparecer, voltamos à seqüência do antes-e-depois. À direita há uma iniciante ajoelhada, cercada por outra figura que desencobre um falo, símbolo dionisíaco do poder gerador da natureza. Uma figura alada está para chicotear as costas de uma iniciante que se debruça no colo de outra mulher. No que parece ser o fim, uma mulher nua dança: é uma Bacante que já foi iniciada ao culto de Dionísio. A cena seguinte mostra uma virgem – talvez a mesma ou talvez outra, não sabemos - preparando-se para o processo de iniciação. Confundem-se fim e começo, não deixando claro tratar-se da última ou da primeira parte. Todo o rito é regular, e se reinicia, circularmente, sem cessar. A iniciação ao mistério, ao culto secreto, privado, quiçá de salvação do indivíduo, não termina nunca, sua finitude repete-se.     

É esse o vermelho pompeiano que está em destaque na entrada principal, limiar entre fora e dentro. Essa divisória imprime certa confusão, quando pensamos em todo o mundo masculino do poder do qual faz parte a casa: do mundo do poder que segrega, que determina quem é quem, dos detalhes que excluem os que não os compreendem. Pompéia guarda o abalo de certezas, o vulcão que tudo pode destruir de pronto, inserindo algo feminino numa casa marcada pelo poder fálico. Constrói-se uma oscilação taquigrafada, sugerindo uma dupla linguagem em que convivem novo e antigo, masculino e feminino.

As residências de luxo enfim, falam da legitimação do poder, seja econômico, seja social, pela via do deslumbramento, uma marca do masculino. Evocam a erudição e o gosto europeu de seus proprietários para não deixar dúvidas quanto à sua origem e criação, cultura e acesso. Algumas, como essa, parecem carregar também em si uma segunda camada de codificação, algo das femininas paixões do sonho, algo do ciframento feminino das paixões. Talvez a segunda camada caia como uma luva no imaginário do colonizador que busca a tal brasilidade na sensualidade, na floresta, no vulcão, no calor, numa ameaça controlada, no exótico.

A área social

A área social consta de diversos ambientes: sala de estar, sala de jantar, galerias, hall e terraço com cobogó, todos conectados por divisórias diáfanas, desmaterializadas, sendo os três primeiros ligados a um pátio aberto, ocupando três dos seus lados. Em uma casa que vive em festa, portas envidraçadas refletem convidados, devolvendo vaidades e glamour. As superfícies vítreas funcionam ambiguamente de forma especular e transparente, como as superfícies líquidas, e operam com o conceito do infinito, da imortalidade, seja pela via da reflexividade, seja pela via da translucidez, trazendo a ausência de um fim, de um limite. Como as paredes são rarefeitas, os pisos se encarregam de demarcar os diferentes espaços. Na sala de estar, régua de madeira maciça inteira, sem emendas, uma raridade. Na sala de jantar, revestimento também em madeira. No largo corredor que contorna o pátio, no hall e no terraço, mosaico em mármore italiano Rosso Verona e Botticino. Os pisos são todos muito marcantes e contrastantes. Os mármores polidos refletem a luz do dia que invade a casa sem cerimônia. Sua forma em losangos imprime movimento ao corredor, e nos sugere circular para a direita e para a esquerda, incessantemente. Não é uma formação em linha reta, que nos indicaria um caminho único, direto, sem escalas. Aquele piso sugere interrupções e retomadas no caminhar, movimento. O contraste de vermelhos e brancos agita, contribuindo para o efeito de vida, de fluxo, cinético. Nas salas de jantar e estar, o chão é de madeira e bastante homogêneo, sugerindo um pouso, uma parada, uma ilha. São cais em meio ao caos dos losangos.

Os losangos criam também um efeito de continuidade, diluindo a margem entre o “dentro” e o “fora”, tradicionalmente marcada pelos limites verticais - portas e paredes. Quando cruzamos a porta de acesso principal, não há alteração de material nem de padrão no piso, o que enfraquece a porta como determinante de um novo espaço. De maneira geral, não há concordância entre os limites horizontais dos pisos e verticais das paredes e portas - os primeiros não obedecem às ordens impostas pelos segundos: espalham-se, invadem outros espaços e disputam quem regulará a conformação dos ambientes. Nesta batalha, vence a solidez do piso como determinante - o cobogó e as paredes em brises são vazadas, leves e móveis; e o vidro e as rótulas desmaterializam as portas.

Na área social, as paredes são então meras balizas que dividem um espaço que, segundo o piso, é fluido, contínuo. O espaço social mantém sua fluidez até a entrada da área íntima, onde a parede repentinamente solidifica-se, endurece, torna-se pedra bruta - um acabamento sólido e intransponível para demarcar a entrada da zona proibida. Inversamente às convidativas portas de vidro, que chamam à passagem para o outro ambiente, a parede compacta em pedra é refratária, e não indica nenhum caminho. Marca visivelmente a divisão de ambientes, para que não haja engano. Não é mais possível seguir o piso, e ele se rende à força da parede. A mensagem é dada à altura dos olhos para que não haja dúvidas de que se está por entrar em área privada.

Apesar de estruturarem-se de forma absolutamente diferente das salas anteriormente mencionadas, participam também da área pública a sala dos azulejos e a biblioteca. E a sala dos azulejos é outra que apresenta um inebriante efeito piso-parede: tem seu solo revestido pelo frescor dos azulejos portugueses azuis e brancos do século XVII e sua parede recoberta por ladrilhos hidráulicos imitando a padronagem, confundindo a visão. Diferentemente dos losangos, que fundem horizontalmente os espaços, o par azulejo-ladrilho trabalha verticalmente, enevoando os limites entre chão e ar. É perfeito para os coquetéis a que se destina, criando um ambiente onde se flutua, sem gravidade.

Da sala de azulejos pode chegar-se à biblioteca. Na biblioteca, os homens se preparam para mergulhar nas profundezas de sua alma. Ela pressupõe o silêncio, a relação de entrega com o livro - é um espaço de introspecção, reservado a poucos. Como escreve Jorge Luis Borges:

Talvez me enganem a velhice e o temor, mas suspeito que a espécie humana - a única - está por extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta. (13)

O que é curioso a respeito dessa biblioteca fechada, de madeira escura, teoricamente introspectiva, é ser recortada por portas e janelas de todos os lados: duas portas na lateral, conectando-a com o cofre e a recepção; uma grande porta dupla, que se abre para o salão dos azulejos, um tanto camuflada pela parede; e uma enorme porta de correr, que se abre totalmente até desaparecer, engolida pela parede, voltada para o corredor, e janelas enormes voltadas para o exterior. Não tem a irreversibilidade esperada. A biblioteca tem um estranho ar de passagem, de intimidade atravessada, de canto reversível. No interior desta biblioteca as paredes são cobertas de livros de arte de toda a sorte, em diversas as línguas, coleções raras, como os nove volumes da “Kingsboroughs Mexican Antiques”, de tamanho desproporcionalmente grande em relação aos outros livros. Apesar da bizarra reversibilidade da biblioteca, os livros gigantes permanecem atentos, acompanhando os eventos, dando certo tom de conto fantástico, de túnel secreto para outro mundo.

É latente, porém, a diferença da decoração da biblioteca para o restante da casa. De referência inglesa, com paredes tomadas por estantes em madeira escura, a montagem do ambiente é uma exigência. Além de acolher os tesouros de um amante da literatura - edições raras de Oscar Wilde, Rudyard Kipling, Anatole France e Marcel Proust, diversas edições de “As Flores do Mal”, de Baudelaire - o ambiente acomoda também um escritório doméstico de trabalho. Todos os outros cômodos têm paredes brancas e lisas no original, só a biblioteca é diferente. Talvez seja uma resistência em quebrar totalmente com a tradição ou, ainda, a força da imemorial biblioteca imaginária que, em sua imobilidade, não pede modernização.

Da biblioteca tem-se acesso ao cofre e à recepção. Duas portas em uma mesma parede, encimadas por pequenos painéis de temas clássicos. Os painéis são feitos em trompe l’oeil - parecem baixo-relevos em bronze, mas são de fato pequenas telas pintadas. Aliás, o trompe l’oeil - recurso recorrente nas paredes das casas de Pompéia - aparece também na estante de livros. O último nível da estante, próximo ao teto, tem, no lugar de livros reais, uma madeira única, em forma de uma sucessão de lombadas, simulando uma estante com cerca de vinte exemplares da “Encyclopedia Britannica”. Eles escondem um sistema de iluminação, um pequeno canhão de luz dirigível. Na estante há uma lente por onde passa a luz, direcionada ao painel pintado situado sobre a porta. Estes “livros falsos” estão fixados em uma peça de madeira com dobradiça, e se abrem, dando acesso a seu interior. Esse efeito se repete na outra estante, mais abaixo, da mesma forma. De um esconderijo nos livros, uma luz tênue revela painéis enganosos. O enigma espreita pelas passagens secretas, portinholas, furos e ameaça, sob uma bruma, desencerrar-se.

Após um breve passeio pelo engano e pela lembrança de que inevitavelmente sucumbimos a ele, retornamos às portas. São duas portas laterais, idênticas. Por uma, abre-se a intimidade para o mundo, para a recepção, para o exterior, para o que vem de fora; por outra chega-se ao cofre, ao local sem saída, onde são guardados os segredos mais importantes, mais caros: papéis que não se pode perder, reservas financeiras, o que ninguém mais pode conhecer, o totalmente privado, trancado a sete chaves. Duas traduções opostas para a mesma porta, duas possibilidades que convivem e que serão abertas em diferentes ocasiões.

Na recepção há uma parede de blocos de concreto vazados, como uma rótula ampliada. Dela, o recepcionista pode sentar-se discretamente sem ser visto e espiar o movimento do resto da casa, clara referência à arquitetura de séculos anteriores (14).

A alma de Damião foi-se fazendo tenebrosa, antes da noite. Que estaria acontecendo? De instante a instante, ia espiar pela rótula, e voltava cada vez mais desanimado. (15)

Essa espionagem também pode ser feita da biblioteca, que possui grandes portas treliçadas. No hall, a rótula alargada de concreto conversa com o piso em losangos e com a porta de entrada em treliça. Esse mesmo piso de mármore polido reflete o imenso painel de cobogós - formas circulares e losangulares alternadas - criando um espelhamento de formas dinâmicas que contribuem para a sensação de movimento previamente endereçada aqui. Da mesma forma - em diagonal, dinamicamente - trabalham os tirantes em V da varanda externa, bem como os blocos volumétricos. Nada é estático. O efeito é de vida, pulsante: contrastam materiais toscos e polidos, brancos e vermelhos, brasileiros e italianos; as diagonais imprimem um movimento persistente, para a direita, para a esquerda; as formas sinuosas da pérgola e da balaustrada, bem como os já mencionados vermelhos, dão sensualidade à construção.

A sala de jantar é destacada, formando o terceiro lado do pátio (16). Duas portas separam a sala de jantar do corpo da casa, uma porta social e uma de serviço, na mesma parede. Dois vãos de mesma extensão, no mesmo local, dando acesso a diferentes pessoas, conforme o protocolo. Retangular, a sala tem seus dois lados mais longos rasgados por vidro. No lado cuja frente é virada para o espelho d’água há uma estrutura de brise soleil de correr em forma de trapézio que protege do sol escaldante do Rio de Janeiro. Ao fundo vê-se o grande painel de azulejos de Burle Marx, com tema de lavadeiras. É curioso que numa mesma casa, praticamente do mesmo ponto de vista, veja-se o contraste: de um lado o protocolo do serviçal-patrão nitidamente delineado e as diferenças marcadas, de outro, o trabalho de quem serve, das lavadeiras, colocado em local de destaque, enaltecido. Para além da ambigüidade, o painel chama a tal ‘brasilidade’, pretende participar da construção de uma identidade nacional. Nota-se uma diferença de força entre aquilo que é tema, algo de segunda ordem, e o que é intrínseco, aquilo que pulsa vivo.

A forma modular dos azulejos articula-se ao muro e à parede externa da sala de jantar, ambos formados por pedras brutas de diferentes tamanhos, bem como ao piso em pedra portuguesa de Burle Marx (17). A riqueza dessa conversa recortada, porém contínua, é tal que integram-se a ela o sol e as plantas do pátio, criando mosaicos mutantes com seu jogo de luz e sombras. As peças flutuam frente a nós e por breves momentos se encaixam, mas logo se diluem e seguem em pedaços, mantendo porém, pela tênue ligação, a promessa de uma unidade improvável.

Os jardins e outros verdes

Burle Marx pinça plantas do Brasil, Ásia, Polinésia, Madagascar e México, não muito volumosas nem espalhafatosas, criando ilhas de vegetação rasteira com alguma verticalidade, sem ocupar demais o jardim. A sensação do passeante é que a natureza está lá, mas sua presença - no que tange o jardim interno - não causa o impacto do descontrole. Ainda que em meio a mata selvagem, a casa atua na consolidação da civilidade e, conseqüentemente, seu jardim é milimetricamente calculado para não intimidar o visitante. Sendo um pátio para eventos, integrado ao restante da área social, transmite um equilíbrio reconfortante e convidativo - como convém - entre o espaço do homem e da natureza. O pátio chega mesmo a funcionar como oásis de semelhança entre ambos, de não-confronto, instigando os convidados a circularem despreocupadamente pelo exterior.

Conversam a pedra das paredes e a pedra do morro Dois Irmãos, os verdes dos jardins e os verdes da floresta da Tijuca, as colunas delgadas e os “pau-mulatos”, que servem também como um artifício de construção no jardim de Burle Marx. Sua monumentalidade visual cria não apenas um diálogo com as colunas da arquitetura de Olavo Redig de Campos, mas funciona como elemento ordenador e definidor de espaços, conferindo verticalidade ao trabalho. A introdução dos elementos verticais força o olho para o alto, fazendo-o percorrer caminhos não apenas rasteiros, levando-o a buscar o céu, as matas e morros circundantes, incorporando-os ao projeto. Sai do plano bi-dimensional do jardim construído em nível baixo, do solo, e introduz outro eixo que dá volume à composição, e assim insere a estrutura vertical do corpo humano na experiência de fruição estética daquele jardim.

Um espelho d’água situado entre a sala de jantar e a piscina funciona não apenas como regulador climático, mas como objeto de deleite, de prazer. A água é, ao mesmo tempo, o ruído do seu jorrar, a luz do céu que capta e devolve de sob as copas e o espelho invertido da floresta. Cria, com sua característica de superfície reflexiva, um olhar em movimento, dependente da posição do corpo, uma superfície instável e dupla, que ora carrega a transparência que revela um interior ora é apenas reflexo de uma imagem. Encantadora, apaixonante, como fora para Narciso, a superfície aquática é um dos segredos de Burle Marx: a imagem e o para além da imagem refletida. Na casa de Walther Moreira Salles, o espelho d’água articula-se a diversas superfícies polidas: ao painel de azulejos de tema de lavadeiras, à piscina e até aos mármores.

O piso do pátio, também desenhado por Burle Marx, é em pedra portuguesa em mosaico e dialoga com o painel de azulejos. Por ser marcante e único, confere continuidade ao projeto paisagístico, unindo o pátio à piscina e ao espelho d’água. Ele é, porém, trocado, a pedido de Walther Moreira Salles, por considerá-lo desagradável e desconfortável ao pisar, além de permitir que o mato cresça livremente em meio às pedras. Seria esse movimento um retorno ao embate homem-natureza, alternando a fascinação - e decorrente anseio pelo convívio - e a busca pela reorganização de sua inerente desordem, da natureza penetrando espaços não necessariamente designados a ela? Seria uma tentativa de ordenar o incontrolável que brota aleatoriamente dentro de casa? Ou uma simples solução prática para melhor acomodar os saltos das senhoras? A pedra portuguesa é substituída por espessas lajes de granito retangulares, que, apesar de disporem de um interessante sistema de drenagem de junta aberta - as pedras não se encostam - vêm a inviabilizar o traço sinuoso dos canteiros originalmente desenhados por Burle Marx.

O jardim frontal da casa é formado basicamente de verdes, sem a intensidade das flores dos jardins europeus. Não que não tenha flores, mas Burle Marx compreende que a exuberância da vegetação tropical não está nas flores: ao olhar estrangeiro é a massa verde que impressiona. Apresenta seus jardins de vegetação tropical, e imediatamente a casa cai dentro dessa nova classificação, de casa de um país tropical. Talvez na América do Sul, talvez na Ásia ou África, mas definitivamente não na Europa. Ainda no jardim frontal, as plantas próximas aos muros têm uma disposição funcional, outro objetivo do projeto de Burle Marx: são de maior altura para abafar o som da rua. O centro do jardim, por sua vez, é de configuração oposta: as plantas são baixas para permitir a visão de todo o território.

Em frente aos cobogós gigantes da fachada principal, há um jardim geométrico, feito a partir de um acerto de Burle Marx com o arquiteto Olavo Redig de Campos. Burle Marx quer fazer uma pintura e assim faz o jardim geométrico, um jardim-pintura. Os jardins da casa aludem às incertezas, ao risco, à brasilidade, a certa desordem. São jardins-pintura que crescem buscando uma formalização arbitrária, espelhos d’água que imprimem movimento e instabilidade, painéis que carregam uma dura vida do povo - indícios que transparecem o exotismo do Brasil. Em contraposição, um pátio de inspiração romana, quase seco, traz o conforto da civilidade para os passeantes. Como na referência à Pompéia, a casa volta a oscilar, mas parece ser uma oscilação calculada para impressionar o olhar estrangeiro. Ser embaixador é ser o representante, o porta-voz, a síntese do lugar. Sintetizando opostos, a casa só poderia ser mesmo ambígua. Moderna e civilizada para alguns, exótica para outros.

Não há vertigem na abertura do pátio de Olavo Redig de Campos para o passeio ao ar livre, mas apenas a discreta sensualidade do perigo, da quebra de formalidade pela falta de teto - uma fenda do céu descortinando o interior, revelando um segredo. Quando seus convidados europeus e americanos poderiam desfrutar de tal clima tropical e ainda, a que esse desfrute remeteria? Totalmente inebriados pela casa, por seus mistérios e revelações – condizentes com suas expectativas e fantasias - o que não se conseguiria? É a corte de um negociador, sua sedução. É o cenário perfeito para uma transação: o exotismo tropical sem excessos, a civilidade, a cultura e a elegância, devidamente balanceados, dançando juntos em uma só noite. A civilização e a selva equilibrados na justa medida.

O jardim balanceado da casa de Moreira Salles é seguro e convidativo, e as senhoras e senhores não precisam temer sair ao luar. Uma escapada audaciosa de risco controlado pela noite fresca, tropical, não seria propícia a uma conversa íntima? Confidências pedem certa informalidade, uma moderada quebra no protocolo, onde apenas o farfalhar das folhas das árvores acompanhem os sons das palavras.

Festas

A matéria de janeiro de 1952 da revista “Sombra” seleciona as duas maiores festas do ano, de um conjunto que engloba o Rio de Janeiro e Veneza, sendo uma delas o “reveillon” de Moreira Salles. Sua inauguração congrega toda a “alta sociedade” brasileira. Daqui para frente se prestaria - e isso se tornaria uma constante - às recepções que reuniriam políticos, banqueiros e as figuras mais populares da cidade. Pode-se imaginar a fascinação dos convidados, circulando nos mármores polidos da loggia, desfrutando da invisibilidade das portas, adentrando o pátio e percebendo todo aquele espaço social como inusitadamente único. Misturando-se ao verde logo surgiria a sensação da sedutora liberdade proporcionada pelo céu estrelado da convidativa noite de ano novo.

Para resguardar a ala íntima, também voltada para este pátio central, das badalações indiscretas, há brises verticais móveis. Estes brise soleil não têm como função principal a proteção da insolação, como em muitas outras construções onde foram empregados, mas a proporção da privacidade necessária à área íntima, preservando-a dos olhares curiosos. A residência, devassada pelo freqüente uso social, pede um tratamento cuidadoso com a intimidade - é preciso zelar pela privacidade. E a área íntima é um bloco retangular vedado, ainda que de vedação móvel - um requinte arquitetônico que permite o melhor aproveitamento da claridade do dia, evitando a necessidade de iluminação artificial. Assim, na noite de ano novo os convidados vêem apenas uma sucessão de madeiras verticais fechadas, uma carcaça viva que protege o corpo privado da casa.

Cada pormenor participa de sua composição. Desdobram-se os sentidos, para onde quer que se olhe: a ladeira de acesso, por exemplo. Situada bem em frente à entrada principal, a ladeira tem seu piso recoberto de pedras. Mas não são pedras quaisquer, são restos de um castelo medieval, vindos para o Brasil como lastro de um navio sueco. Walther Moreira Salles, avisado de sua disponibilidade, adquire-as. O lastro é usado em apenas uma das viagens, na ida ou na volta, sendo desprezado na seguinte, quando o barco segue carregado. A casa então bóia na pedra, pedras que viajam, que conhecem o peso do ir e vir. Não é a novidade, a pedra recém cortada, inerte, que interessa. Tampouco qualquer uma em sua mera funcionalidade ou efeito decorativo. É aquela impregnada de história, marcada pelo tempo, pelo uso, testemunha de vidas, que é a significativa. É a pedra viva, pulsante, nômade, evocativa de nobres e de tempos longínquos, esta sim, é a que tem valor. É, enfim, a pedra do mundo, a casa originária que sobrevive aos homens ainda carregando seu passado - sendo num dia castelo medieval europeu e noutro casa moderna brasileira sem, no entanto, nunca deixar de ser fóssil.

notas

1
Revista Época, 04 de outubro de 1999.

2
Sobre a residência, Walther Moreira Salles comenta: “Comecei a construí-la quando estava solteiro. Por isso ela é ampla na parte social e relativamente pequena nos aposentos privados. Só tem três quartos. Foi imaginada para um homem solteiro com certa vida social.” Revista Época. São Paulo: 04 de outubro, 1999.

3
São recorrentes os comentários em periódicos sobre sua “elegância”. Como, por exemplo: “Da impecável gravata à absoluta distinção de modos, é o maior sinônimo da elegância nacional. Não por acaso é chamado de embaixador, quando poderia ser tratado por ministro ou apenas reverenciado como banqueiro.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: outubro de 1999. Ou, ainda: “(...) Foi Lúcia quem vestiu o embaixador pela última vez. Uma das maiores características dele, a elegância, foi preservada. No velório, o embaixador foi vestido com um terno inglês de risca de giz (...).”Folha de São Paulo, fevereiro de 2001.

4
Destina-se a ser um dos principais pontos de encontro de personalidades da política, economia e cultura nacionais e internacionais. Hospeda Henry Ford II, os irmãos Nelson e David Rockefeller, os armadores gregos Stavros Niarchos e Aristóteles Onassis, entre outros. Inúmeras decisões das cúpulas que se sucedem comandando o país são tomadas lá. “Nela, o presidente Juscelino Kubitschek decidiu anistiar os militares rebelados no levante de Jacareacanga, Jânio Quadros escolheu os embaixadores (o próprio Walther Moreira Salles e, por sua indicação, Roberto Campos) que em 1961 acertariam a dívida brasileira com credores internacionais e João Goulart tratou com o advogado John McCroy a desapropriação da Hanna Corporation, na série de crises que o levaria à deposição. Portanto, não é só pela arquitetura suntuosa que a casa é um retrato de seu ex-morador. Visitando-a, passeia-se ao redor de uma biografia muito vistosa, mas escondida em indevassável discrição.” Revista Época, 04 de outubro de 1999.

5
É importante ressalvar, porém, que a diretora da Revista “Habitat” era Lina Bo Bardi, de “preparo” semelhante ao de Olavo Redig de Campos.

6
LESSA, Carlos. O Rio de todos os Brasis – Uma reflexão em busca de auto-estima.Rio de Janeiro:Record,2000. p.243.

7
LESSA, Carlos. O Rio de todos os Brasis – Uma reflexão em busca de auto-estima.Rio de Janeiro:Record,2000. p.238.

8
A Casa de Raymundo Ottoni de Castro Maya é de 1957 e a de Walther Moreira Salles de 1951.

9
SANTOS, Paulo. Quatro séculos de arquitetura. Rio de Janeiro: Valenca, 1977.

10
Consta na Revista Unibanco: “Entenda-se também, pelo lado literário, a fidelidade do Embaixador ao Ritz: Marcel Proust, escritor de sua preferência, que morreu em 1922, fez do hotel sua segunda casa em seus últimos tempos de vida.” Revista Unibanco, março de 2001.

11
KIPLING,Rudyard. From sea to sea: Letters of Travel. Cosimo Classics,2006.

12
Conforme entrevista telefônica dada a Renata França, em fevereiro de 2003, por Sr. Antonio de Franceschi, diretor do IMS.

13
BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Ed. Globo, 2001.

14
As rótulas, amplamente usadas nas janelas das casas da cidade do Rio de Janeiro, foram proibidas em 1811, por ordem do Regente D. João. Posteriormente, Lucio Costa a inclui nos tópicos da arquitetura civil luso-brasileira que não deveriam ser desprezados pela arquitetura moderna. In Bruand, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1981.

15
MACHADO DE ASSIS, Joaquim. Contos - Uma antologia. Volumes 1 e 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.p.383.

16
São três lados de uso social. O quarto é o bloco da área íntima.

17
A pedra portuguesa foi depois substituída por blocos maiores de pedra.

sobre o autor

Renata Reinhoefer Ferreira França é Mestre em Artes pela UERJ, na linha de pesquisa ‘História e Crítica da Arte’. É pós-graduada pela PUC-Rio (‘Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil’, 2002) e pela UERJ (‘Especialização em Teoria da Arte - Fundamentos e Práticas Artísticas’, 1999)

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