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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O artigo traz a reflexão da relação de um lugar com as pessoas, feita a partir de um estudo de caso: o Camelódromo da Praça XV em Porto Alegre

english
This article establishes the relation between place and people, starting from a study case: the "Camelódromo" in Praça XV in Porto Alegre, Brazil

español
Este artículo establece relaciones entre personas y lugares, usando como caso de estudio el "Camelódromo" de la Praça XV en Porto Alegre, Brasil


how to quote

AGUIAR, Julia Saldanha Vieira de. Por uma cidade que se move: corpo, rua e improviso. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 106.03, Vitruvius, mar. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.106/66>.

"É o povo que nos incentiva a ficar aqui.
Eu sempre fui incentivado pelo povo a ficar na pedra." (Seu Brasil, 2007)

Este trabalho trata da relação de um lugar com as pessoas; a cidade e o corpo. A reflexão é feita a partir de um estudo de caso: o Camelódromo da Praça XV. O Camelódromo é uma grande feira que há 40 anos ocupa um espaço importante no centro histórico de Porto Alegre/RS. Auto-organizado e vivido principalmente por pessoas de classes populares, o fenômeno Camelódromo, com suas 420 bancas, vendedores, funcionários e funções agregadas, se configura em um espaço onde espontaneidade, improviso e estética se fundem e caracterizam o modo de ser e agir, no cotidiano intenso da rua. Um espaço híbrido; comercial, em que as mercadorias da moda se tornam uma oportunidade de sustento, satisfazendo desejos de consumo do seus fregueses, em sua maioria, com baixo poder de compra; e ao mesmo tempo, um lugar de convivência humana intensa. Nas palavras de Alemão da Rifa, camelô antigo: os camelôs formam um clã, uma grande família. Expostos à intempérie, e à incessante passagem de pessoas, e tudo o que isso tem de positivo e negativo; ali, a vida acontece; os corpos, aos milhares em movimento, e a pedra, o artefato urbano.

A grande instalação

Cenário vivo com décadas de história, o Camelódromo da Praça XV é um sistema social complexo; uma rede intrincada de conversações, gestos, rotinas, tecnologias e histórias. Uma cultura, que vem se organizando, se adaptando, se transformando numa gigantesca instalação constituída por miríades de lonas, guarda-sóis, prateleirinhas, expositores e mercadorias. Componentes esses que formam também um corpo, com passagens, caminhos e surpresas.

Ironicamente, o Camelódromo está para ser retirado da Praça XV. Como parte das ações do Viva o Centro, um novo programa de revitalização urbana da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, em janeiro de 2009 os camelôs devem ser removidos para o CPC, Centro Popular de Compras, um edifício sobre altos pilotis a algumas quadras dali. Os camelôs passasm à condição de pequeno-empresários, e terão que pagar pelo metro de chão. Finda-se a vida como vendedores da rua; em tese pelo menos. Com a praça vazia, a presença de ambulantes em boa parte da área central da cidade passa novamente para a ilegalidade. De acordo com o discurso oficial, com a limpeza feita, o centro estará humanizado e revitalizado; mas será mesmo assim?

Na linha da arquiteta-urbanista Margareth Crawford, nossa argumentação vai na direção de reconhecer a cultura, perceber a estética e conhecer a complexidade humana dessas expressões espontâneas, tão características da urbe contemporânea. Para Crawford (2), essas manifestações podem ser justamente o potencial de transformação da ordem vigente e estabelecida para algo, desta vez sim, mais humano; receptivo ao empreendimento individual e sensível às criações estéticas da cultura do improviso.

Este texto dá seqüência e parte do material coletado em meu trabalho de conclusão de curso (TCC), Camelódromo da Praça XV: improviso, comunicação e auto-organização (3), de 2007. O material audiovisual registrado para a realização do TCC deu origem a uma reportagem-cinematográfica, batizada Tempo de Pedra (4). Temos, como referência para o pensamento do corpo-camelô, em relação ao seu ambiente-cidade, a teoria da autopoiesis, de Humberto Maturana e Francisco Varela. Assim, neste texto, buscamos articular idéias da teoria da complexidade com pensamentos do urbanismo, da antropologia, das artes e, principalmente, dos próprios camelôs. Idéias que, apesar de serem fruto de áreas bastante diversas do conhecimento, convergem no modo como apreciam uma série fenômenos contemporâneos.

Que corpo é esse?

A teoria da autopoiesis descreve o funcionamento da vida, buscando a organização subjacente aos sistemas vivos. Conforme explica Maturana, ‘lo central para comprender los seres vivos era hacerse cargo de su condición de entes discretos, autónomos, que existen en su vivir como unidades independientes.’ (5). A teoria põe a autonomia do ser vivo como eixo organizador da vida, como característica não só do modo de operar na solidão, na singularidade, mas também enquanto ser social. O ser autônomo, assim, é um sistema que se realiza e existe na contínua produção de si mesmo. A concepção é expressa na palavra com a qual é batizada a teoria, autopoiesis; ou autocriação.

Na autopoiesis a espontaneidade aparece como princípio organizativo fundamental dos sistemas vivos. Maturana (6) explica: ‘Los procesos moleculares ocurren, en cada instante, como resultado de las propiedades estructurales de las moléculas, y no porque nada externo a éstas los guíe.’. A organização dos sistemas vivos, portanto, é espontânea; fruto da interação entre os próprios elementos que a compõe. Não há agente ou força externa; a organização acontece, da forma que acontece, pelas propriedades de seus componentes. Nas palavras de Maturana:

"La organización espontánea de un sistema al surgir éste en la conservación de una configuración relacional entre un conjunto de elementos que crea un clivaje con respecto a un entorno que surge en ese momento, tiene, entre otras, dos consecuencias fundamentales.

La aparición de un nuevo dominio relacional o fenoménico que antes no existía, en el cuál la entidad o sistema, que surge como uma unidad definida como tal por la organización que comienza a conservarse de ahí en adelante, tiene propiedades como sistema o totalidad, que no son propiedades de sus componentes. Tal dominio realcional o fenoménico, no se puede deducir de las propiedades de los componentes del sistema, porque surge con la composición.

La otra consecuencia, es que se genera una asímetria en el suceder, porque cada situacíon surge como una composición espontánea de lo anterior en la que aparecen nuevos dominios relacionales o fenoménicos, que el observador distingue al hablar de história y tempo." (7)

Emerge o sistema, o ser; uma unidade com propriedades particulares, que não são as de seus componentes. Nesse movimento surge também o meio, como domínio de complementaridade operacional, no qual o sistema, como ente discreto, se realiza enquanto sua organização se conserva. Separado do meio por uma membrana, casca, couro, pele, produzida e mantida por si mesmo, o ser vivo se distingue, constitui-se em forma e vive, em interação permanente, por todos os poros, com  o ambiente que o cerca. Surge o domínio relacional do ser com o seu ambiente; um interior, sujeito, observador, com relação a um exterior. Um corpo que sente gosto, escuta, vê, sente o frio, sente a textura das coisas, se emociona, interpreta, comunica, age. Um corpo que, a partir do sentido que faz de suas percepções, cria seu mundo.

Esse é o corpo da autopoiesis; um corpo que, como ser humano, se faz humano vivendo em e através de um domínio linguístico. Um corpo que vive em conjunto, em sociedade, formando sistemas sociais, nos quais os componentes são os organismos e suas criações, que se articulam e se coordenam através da linguagem e da ação. Maturana, contudo, tem o cuidado de diferenciar o modo de acoplamento entre componentes observado em organismos e em sistemas sociais. Explica o pensador: “o organismo restringe a criatividade individual das unidades que o integram, pois estas existem para ele; o sistema social humano amplia a criatividade individual de seus componentes, pois esta existe para eles” (8). O sistema social, através da criação de relações entre seus sujeitos-componentes-autônomos, é capaz de, através da peculiaridade dessas associações, alimentar o desenvolvimento dos mesmos, expandindo a corporação como um todo para terrenos não previsíveis.

Viver em conjunto, assim, aparece como um modo de enriquecer e aumentar as possibilidades da existência. De acordo com Helena Knyazeva, da Escola de Pensamanto Sinergético de Moscow, integrar estruturas não significa simplesmente reuní-las; ‘as regiões de localização da estrutura se imbricam com uma anomalia de energia que se produz’ (9). A relação, a interação com o outro, é sempre um momento de tensão, uma anomalía ou irregularidade. O que se observa através dos estudos da sinergética é uma explosão de energia nesses pontos. E essa característica, potencialmente explosiva, espontânea, e por que não libertadora, das relações parece ser interessante de ser explorada.

Em um espaço como o Camelódromo da Praça XV, a constatação de Knyazeva se explicita. No Camelódromo a associação entre pessoas possibilitou a emergência de uma obra coletiva de grandes proporções, capaz de, com a sua estrutura, realimentar o desenvolvimento da própria organização que lhe deu origem. Camelô com muitos anos de pedra, Alemão da Rifa, sintetiza a questão: ‘O nosso clã tem uma maneira de viver. Mas nós precisamos dos outros para viver, por isso nós temos também vontade de ensinar’. Alemão expressa o sentimento do conjunto; os camelôs formam um clã, uma grande família, um sistema social coeso, marcado pela luta, pelo eforço conjunto, pela criatividade no enfrentamento do dia-a-dia da rua. Nesse sentido, define Maturana (10): “uma cultura é uma rede de conversações que define um modo de viver, um modo de estar orientado no existir, um modo de crescer no atuar e no emocionar. Cresce-se numa cultura vivendo nela como um tipo particular de ser humano na rede de conversações que a define”. Quando pensamos no Camelódromo da Praça XV, já com camelôs de terceira geração, com seu modo próprio de se organizar, baseado na oralidade, no gesto, no respeito, na comunicação rápida e quente, de pessoa para pessoa, a associação com o conceito de cultura fornecido pelo pensador é natural; estamos diante de uma cultura.

Anos de pedra

"Eu me sinto honrado em dizer que eu sou camelô. Eu nunca neguei para ninguém que sou camelô. Nunca negue que você é camelô. Por que camelô é uma profissão. É a primeira profissão do mundo. Em certa ocasião, em algumas passagens da bíblia, eu estava vendo que Salomão comprava cavalos e vendia cavalos. A rainha de Sabá subia o Eufrates para levar as coisas para vender, saía do Egito para ir lá para a Mesopotâmia vender. A gente vê, em história, nos livros, as pessoas vendendo. Em todo lugar do mundo tem camelô, todo lugar tem pedra para trabalhar. [...] Camelô nasceu para viver na pedra, é igual a marisco. Ele vive na pedra." (Seu Brasil, 2007)

A pedra é o chão do camelô, a vida do camelô. A vida do camelô é na pedra por que ‘camelô é igual a marisco’, como diz o Seu Brasil; onde tem pedra, dá. A cidade, que é feita de asfalto, tijolo, concreto, chuva, vento, calor e frio é a pedra. A pedra tem e contém as pessoas; que passam, que ficam, que vendem. Por que ali tem pessoas que passam a todo momento. Por isso, na pedra estão os camelôs. Dos camelôs mais antigos diz-se que têm anos de pedra. Anos de pedra significa muita coisa para o camelô. Significa, na prática, a maior parte do tempo, e de uma vida que é passada na rua; essa, outra palavra fundamental no vocabulário do vendedor ambulante. A rua, o espaço público, onde ele instala a banca, a paraquedas. No chão; que é de todos e que não é de ninguém. Mas que por muitas horas do dia, anos a fio, é do usufruto do camelô. Seu Brasil tem muitos anos na pedra, e explica explica o que é ser camelô:

"Camelô é estar na rua, é estar vendendo, anunciando, dizendo: vamos comprar. Sabe, ter contato com o público direto. O público não precisa estar me procurando em lugares fechados. Loja é para lojista. Lugar de camelô para mim é na pedra. Meu contato com o público é estar aqui na rua, vendendo, falando com o público, expondo a minha mercadoria, se ele não se agradou dessa cor aqui, eu vou ali na minha caixinha, pego outras coisas, mostro para ele. É negociar, é meu dia-a-dia, é minha sobrevivência. Com dignidade, com dignidade."

O Camelódromo da Praça XV e suas adjacências são uma área de intensa atividade comercial, e comunicação. São centenas de ambulantes com mercadorias, bancas, caixinhas e paninhos; e a venda depende muito do anúncio, de estimular os sentidos do cliente, atrair para efetuar a transação. As bancas são montadas com cuidado, estratégicamente; na visão do transeunte apressado, os corredores do Camelódromo podem parecer apertados e inconvenientes; freqüentemente lotados de corpos em movimento, eles afunilam o fluxo das largas ruas circundantes em passagens de três a quatro metros de largura. E o fazem propositalmente, talvez. No seu caminhar, o passante tem o olhar naturalmente atraído para os estímulos coloridos das estantes; um potencial cliente à vista atesta que o arranjo funciona. Michel de Certeau (11) relata a constituíção desses caminhos, diz ele que a história começa ao rés do chão, com passos.

"São eles o número, mas um número que não constitui uma série. Não se pode contá-lo, por que cada uma de suas unidades é algo qualitativo: um estilo de apreensão táctil de apropriação cinésica. Sua agitação é um inumerável de singularidades. Os jogos dos passos moldam espaços. Tecem os lugares."

Com a passagem do tempo e das multidões pela Praça XV, consolida-se a forma básica. O chão da Praça XV é então marcado com listras amarelas e paralelas que delimitam a área a ser ocupada por cada banca. Adel Goldani, da Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio explica assim as demarcações:

"É para eles não transformarem a banca em uma loja. Aliás, tem algumas bancas ali no Centro que tem muita lojinha que não ocupa a mesma área. Então, depois deles se localizarem dessa forma, foi feita uma contenção de área, para eles não se expandirem muito. Não irem esticando as bandejas deles."

A delimitação busca cristalizar uma área ocupada e assim conter o crescimento de um sistema de ambulantes que espontaneamente, insiste em se expandir. O aspecto aparentemente desordenado da instalação Camelódromo da Praça XV parece incomodar às autoridades e à classe média em geral. Contudo, basta um olhar mais afetivo com o povo dali para perceber a riqueza proporcionada a cada instante da existência dinâmica, efêmera e volátil do Camelódromo. ‘Se as tradições devem ser mantidas, deixem-nos aqui’, é a palavra de Alemão da Rifa. Hélio Oiticica (12) sintetiza a assim experiência em espaços criados pela cultura do improviso:

"Não se trata mais de impôr um acervo de idéias e estruturas acabadas ao espectador, mas de procurar pela descentralização da “arte”, pelo deslocamento do que se designa como arte, do campo intelectual racional para o da proposição criativa vivencial; dar ao homem, ao indivíduo de hoje, a possibilidade de “experimentar a criação”, de descobrir pela participação, esta de diversas ordens, algo que para ele possua significado."

Há 30 anos vendendo chapéus na praça Seu Aníbal busca a mais bela composição de cores, texturas e formas fruto do acaso do dia. Passando pelas escadarias da Praça XV, o que vemos de sua banca é uma larga parede coberta de chapéus multi-coloridos; ela chama a atenção não apenas pela riqueza compositiva, mas também pelo tamanho. Orgulhoso de sua obra, Seu Aníbal explica como o seu painel tem bem mais que os 80cm por 1,20m permitidos pela autoridade oficial: ‘É, é que isso é assim, a gente faz uma sociedade. Aqui por exemplo são duas bancas, tu faz uma sociedade, um entra com o ponto o outro com a mercadoria. E faz um negócio’. A sociedade entre Seu Aníbal e seu vizinho é informal; na palavra. Eles confiam um no outro a ponto de, sem assinar qualquer papel nem envolver entidade jurídica alguma, juntarem o pouco espaço que tem para formar algo maior que a simples soma das bancas isoladas. A banca de Alemão da Rifa tem também a participação dos colegas. Quando explica a origem de cada uma de suas partes constituintes, lhe vem à memória pessoas fundamentais na continuidade de sua existência como camelô:

"Essa aqui ó, foi feita por esse aqui, vou te mostrar. Aquela banca de sacolas lá ó… é o Alberto, ele foi na minha casa, ele é um bom carpinteiro, e ele fez a minha banca por que eu não tinha dinheiro para pagar alguém. E aí eu comecei com ela, e já tem bons usos. Isso aí foi uma época que caiu a casa e a gente montou tudo de novo, para tu ver como a gente é irmão. O cara foi lá na minha casa, fez o carrinho. Me vendeu esse estrado com essas rodas. Aí eu pedi para um serralheiro fazer um painel, uma gradinha. Aí veio outro: “E aí Alemão, o que tu vai botar aí?”, “Bah! Tô pelado.”, “Não, mas a gente dá um empurrãozinho”. Aí o Marcos me deu uns videogames. O Celso veio lá e me trouxe umas capinhas. E a coisa foi formando de novo."

Qual será o valor da banca de Alemão da Rifa? De acordo suas lembranças, é o preço de todas as relações costuradas ao longo dos anos; na vida incerta da pedra, isso parece ser definitivo. Nesse sentido, Varela observa: ‘Es en el dominio de la relación con el otro en el linguaje donde pasa el vivir humano, y es, por lo tanto, en el dominio de la relación con el otro, donde tienen lugar la responsabilidad y la libertad como modos de convivir’. (13) Viver em coletivo, em sociedade, por definição é tarefa complexa; no entanto, no caso dos ambulantes, saber conviver com o diferente é parte intrínseca e fundamental da atividade.

Curiosamente, apesar do comportamento entre colegas ser, em geral, de cooperação, com a presença do cliente há naturalmente, certa competição. A mercadoria de Alemão não é exclusiva; vendendo vídeo-games e produtos eletrônicos, a concorrência é grande até mesmo dentro do Camelódromo. Contudo, ele não se amedronta. Vender para ganhar o dia, no seu caso, é pura matemática; tem que entrar mais do que se gastou. Contudo, por trás da simplicidade das contas existe a malandragem de uma vida, na pedra:

"A gente sabe comprar bem para vender um pouco mais caro. E muito mais caro se deixar. “Ah, mas tá roubando”. Então tu vai achar onde é a fonte. Não é assim que funciona em todos os lugares? Quem tem poder domina. Eu não vou te dizer onde eu comprei, mas eu posso te fornecer. Esse é o meu trabalho. Acho que não tem diferença de qualquer outro trabalho. É honesto."

Parte intrinseca da atividade do camelô são também as longas jornadas. Débora, jovem vendedora trabalhando há um ano e oito meses no lugar, sintetiza assim a rotina do camelô: ‘A gente passa a maior parte do tempo aqui, a nossa vida é aqui. A gente chega oito horas, e vai embora umas oito horas. Então a gente só chega em casa para dormir, no caso, né. A vida toda é aqui.’ Dessas muitas horas de convivência emerge uma organização forte, capaz de realizar uma larga seqüência de rotinas, através da coordenação e articulação de centenas de pessoas, todos os dias. Nesse sentido, a impressionante intalação-estrutura com que nos deparamos na Praça XV é ‘somente’ a materialização de sua tão intrincada organização. Para Humberto Maturana:

"es la organización lo que define la identidad de clase a un sistema, y es la estructura lo que lo realiza como un caso particular de la clase que su organización define, (…) los sistemas existen solamente en la dinámica de realización de su organización en un estructura." (14)

A manifestação material, portanto, é fruto da organização do sistema. No caso do Camelódromo, a organização é a coordenação das ações de pessoas de diferentes idades, origens, gostos, cores, todas com o objetivo de levantar a estrutura e vender. O enfrentamento da intempérie exige também dos camelôs que se articulem com agilidade e respeito. Seu Adão explica como funcionam as lonas no Camelódromo:

"Tem um movimento sincronizado aqui, nessa coisa horrorosa. Por que se ele colocar uma corda dele errada, já dá problema, esculhamba tudo. Então a gente veio aperfeiçoando, e do jeito que está assim, chove mas não cai água na banca de nenhum. E aí o mais novo que chega para trabalhar, a gente fala: a tua lona tem que ser assim, a tua corda tem que passar aqui. Nos primeiros dias a gente auxilia os outros, por que não tem como eu colocar onde eu quero. Posso botar água em cima dele? Não posso. O movimento do vento… Então as lonas vem de lá para cá [sudoeste – nordeste]. Todas cruzando por cima, por que o vento vem sempre de lá para cá [aponta para o rio Guaíba]. Se tu colocar na posição errada, a água vem, entra por baixo. É tipo um telhado, né, tem que ter uma encaixadinha na outra."

 O Camelódromo constitui uma unidade; na afirmação não há uma idealização utópica, mas a constatação de uma rede social fortemente entrelaçada que espontaneamente aprendeu a viver em coletivo. Nesse processo, a necessidade de um desencadeia automaticamente a mobilização dos outros. Parte inseparável dessa coesão é o modo de comunicação; ali, em questão de minutos, qualquer notícia se espalha; fofoca, conversa fiada, não importa o nome, o que importa é que as palavras se propagam e atingem a quem interessa atingir. Essa é também uma maneira de se proteger, e de se preservar em um jeito de viver incerto, ambulante, mutante. Em sua sinceridade visceral, com pouquíssimas palavras, Alemão da Rifa desmorona qualquer visão romântica sobre a existência do camelô: 

"Eu saio na rua, tiro leite de pedra. Eu vou para qualquer esquina, eu vendo lápis. […] Fica aqui no sol e na chuva. Passa a mão aqui para tu vê. Fora os cortes na cara de brigar. Por que aqui é olho no olho, dente por dente. Mas nós nos respeitamos dentro da nossa unidade. E nossa unidade se chama trabalho. Só."

Alemão apresenta a lei da rua, ditando-a abertamente para quem quiser ouvir e ver; é a lei da sobrevivência. Contrariando Babel, as pessoas do Camelódromo aprenderam, por necessidade, a se entender, a falar uma língua comum. Não há nada escrito; as regras são perpetuadas no boca-a-boca e no respeito à tradição. Fruto do trabalho organizado de centenas de pessoas, a grande obra: coletiva, viva e anônima.

Considerações finais

No momento não se sabe os desdobramentos da política proposta pela Prefeitura de retirar os ambulantes da Praça XV, e do centro da cidade como um todo. Também não se pode dizer que o ‘final feliz’ seja a permanência do Camelódromo, na Praça XV. A existência ambulante é de fato um permanente flutuar na incerteza; no entanto, curiosamente, esses pequenos empreendimentos parecem expressões de uma positiva transformação social. Assim, diante de todo o quadro de políticas, muitas vezes irresponsáveis, resta lembrar não ser esta a primeira vez na história em que a caça ao camelô acontece. E os comerciantes da rua, ainda que não as mesmas pessoas, voltaram muitas vezes a ocupar as mesmas calçadas de onde foram uma vez retirados, e voltaram a anunciar em voz alta as promoções, e a usar, sem medo, a malandragem e a criatividade típicas da nossa cultura popular. Como diz Seu Brasil, e são dele as últimas palavras: ‘lá antes de Cristo, três, quatro, séculos antes de Cristo, já exisitia camelô, já existia a pedra, e a pedra sempre vai existir’; e que assim seja…

notas1
Artigo publicado no Caderno de Resumos do Corpocidade – Debates em estética urbana 1, 2008, Salvador. Anais. CD. Também disponível em: <http://www.corpocidade.dan.ufba.br/resultado1.htm>

2
CRAWFORD, Margareth. Blurring the boundaries: Public Space and Private Life. In: Everyday Urbanism. New York: The Monacelli Press, 1999

3
Disponível em: <http://www.overmundo.com.br/banco/camelodromo-da-praca-xv-improviso-comunicacao-e-auto-organizacao>

4
Tempo de Pedra
. Julia Aguiar. Porto Alegre, 2008. Coletivo Catarse. DVD, 51min, NTSC.

5
MATURANA, H.; VARELA, F. De máquinas y seres vivo – Autopoiesis: la organización de lo vivo. Santiago de Chile: Editorial Universitária S.A., 1995, p. 11.

6
Idem ibidem, p. 26.

7
Idem ibidem, p. 28.

8
MATURANA, H.; VARELA, F. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana / Tradução: Humberto Mariotti e lia Diskin. São Paulo: Palas Atenas, 2001, p. 221.

9
KNYAVEZA, Helena. Teleologia, Co-Evolução e Complexidade. In: MENDES, Candido (Org). Representação e Complexidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2003, p. 154.

10
ANDRADE, L.A.B; SILVA, E.P.; PASSOS, E. O que é ser humano?. In: Ciências e Cognição 2007; Vol 12: 178-191. Publicado on-line em 03 de dezembro de 2007, p.187.

11
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1.artes de fazer. Tradução: Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994, p. 176.

12
OITICICA, Hélio. Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p.111.

13
MATURANA et. al. Op. Cit., 1995, p. 32.

14
Idem ibidem, 1995, p, 20.

Todas as imagens do artigo são cenas extraídas do documentário "Tempo de Pedra". Fotógrafo responsável: André de Oliveira

sobre o autor

Jornalista formada pela Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS. Participa do Grupo de Estudos da Espacialidade Contemporânea, do PROPAR-UFRGS, com o qual desenvolveu duas cine-reportagens, o "dasgaragens" (48min) e "tempo de pedra" (51min); ambas no universo da arquitetura móvel produzida pela informalidade. Faz parte do Coletivo Catarse

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