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architexts ISSN 1809-6298


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O artigo aborda o Programa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador estabelecendo um contraponto com as diretrizes apontadas pelas Cartas Patrimoniais

english
The article talks about the Recuperation Program for the Historical City Center of Salvador establishing a counterpoint with the rules created by the Heritage Laws

español
El artículo tracta del Programa de Recuperación del Centro Histórico de Salvador estableciendo un contrapunto con las directrices apuntadas por las Cartas Patrimoniales


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SANTOS JÚNIOR, Wilson Ribeiro dos; BRAGA, Paula Marques . O Programa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador. E as lições das Cartas Patrimoniais. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 107.04, Vitruvius, abr. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.107/59>.

O debate atual acerca dos projetos de intervenção em áreas históricas, especialmente as situadas em centros urbanos, reitera que estes devem ter como objetivos preservá-las e reinserí-las nas dinâmicas atuais de seus respectivos contextos urbanos. Uma das questões difundidas e mais polêmicas neste debate registra que a forma recorrente utilizada para a reintegração dessas áreas históricas tem implicado em transformar muitas delas em destinos turísticos.

Um rápido olhar sobre as experiências de intervenção deste tipo em diversas partes do mundo revela que o turismo tem sido realmente uma função privilegiada, como se fosse um “caminho natural” a partir de uma leitura parcial das Cartas Patrimoniais, na implantação de novos usos em áreas históricas.

Observa-se, no entanto, que projetos focados no turismo, em muitos casos, devido à forma como foram executados, acabaram por surtir efeito contrário ao da preservação e valorização da cultura local, sendo o mais evidente a perda das características culturais particulares que se alegava querer preservar.

O conjunto desses efeitos negativos, conhecido de forma genérica como gentrification (2), traduz um processo de enobrecimento nas áreas históricas sob intervenção a partir, em geral, da valorização do turismo e da indústria cultural (3), acima das questões sociais presentes nesses locais, transitando a cultura local para o universo da cultura de massa, descaracterizando-a e acarretando, entre outras coisas, em forças de expulsão da população local residente.

A cidade deixa de refletir um significado social construído histórica e coletivamente para dar lugar à valorização da imagem, criando um ambiente artificial, um cenário, e as áreas históricas se transformam em museus a céu aberto (4).

O patrimônio arquitetônico e cultural, que em sua origem teve a função de proporcionar a ambiência histórica representativa de um determinado período, transforma-se em produto cultural, a ser consumido, restringindo o valor do bem patrimonial ao seu valor econômico.

O alerta para a necessidade de controle da atividade turística, para que não se perca a função social do patrimônio, vêm das Cartas Patrimoniais (5), documentos produzidos para orientar e indicar caminhos possíveis para diversas ações que envolvem o patrimônio cultural e que, apontando diretrizes, constituem-se em referências internacionais para a intervenção urbana.

Existem aspectos que devem ser considerados quando se trata de destinar aos centros históricos a função turística, tendo em vista a significação simbólica que desempenha para a população residente, a cultura local e, em escala maior, para o conjunto da cidade.

A falta de atenção à manutenção da autenticidade local na tentativa de esconder os problemas e diferenças sociais para agradar ao turista é contraditória, já que os objetivos turísticos seriam justificados pelo aspecto particular da cultura local.

A importância de um conjunto histórico revela-se não apenas pelo conjunto arquitetônico e urbanístico que representa, mas também, e com igual importância, pela conjugação de elementos identitários da população que habita a área e daqueles que com ela interagem de alguma forma, compondo seu patrimônio imaterial. Dessa forma, arquitetura, população, cultura e identidade, acabam por relacionar-se intimamente dentro do que se denomina conjunto histórico.

Uma das formas atuais propostas pelas Cartas para garantir a função social do patrimônio é o desenvolvimento de políticas de habitação social para estas áreas e o estabelecimento da gestão integrada das mesmas, compartilhada entre poder público, setor privado e população, tendo como objetivo central a permanência da população ali residente e a manutenção de suas práticas sociais.

A necessidade de preservação do patrimônio imaterial, e o seu reconhecimento como valor imanente fundamental das áreas históricas, da mesma forma como acontece com o patrimônio arquitetônico e urbanístico, podem ser observados em diversos documentos oficiais sobre o tema.

Em 1989, a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (6) já tratava desta questão ao descrever o significado da cultura e da tradição popular:

"A cultura tradicional e popular é o conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural fundadas na tradição, expressas por um grupo ou por indivíduos e que reconhecidamente respondem às expectativas da comunidade enquanto expressão de sua identidade cultural e social; as normas e os valores se transmitem oralmente, por imitação ou de outras maneiras. Suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a música, a dança, os jogos, a mitologia, os rituais, os costumes, o artesanato, a arquitetura e outras artes." (7)

A Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (8), de 2003, define o “Patrimônio Imaterial” como sendo o conjunto de manifestações culturais que um certo grupo social desenvolve em seu ambiente. Segundo esta Convenção:

"Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana." (9)

As Cartas Patrimoniais

É importante destacar neste debate que as Cartas Patrimoniais reforçaram, em certo momento, o papel do turismo como atividade e função para as áreas históricas.

As Normas de Quito (10), de 1967, por exemplo, colocam o turismo cultural como o meio através do qual seria possível reverter a degradação das áreas históricas da América Latina e preservar o patrimônio edificado. A Carta apresenta ainda as vantagens econômicas e sociais da implantação desta atividade, que constituiu-se na principal fonte de renda para muitos lugares.

De acordo com as Cartas Patrimoniais, os usos devem ser compatíveis com o contexto econômico e social de cada área, respeitando as necessidades sociais das comunidades locais.

As mesmas Normas de Quito, apesar de incentivarem o desenvolvimento da atividade turística, alertam para o perigo que o processo pode trazer se não for bem controlado, causando a perda dos aspectos particulares da área. Esta Carta ressalta ainda a importância da função social de todo monumento, que deve ser respeitada e que tem por objetivo tornar o monumento acessível a todos.

Reforçando este conceito, a Carta de Petrópolis (11) coloca que o valor social de um “bem” deve estar sempre acima de sua condição de mercadoria.

Para que a atividade turística não ameace a integridade local, a Carta de Burra (12) esclarece que o uso não deve mudar a significação cultural local:

"A expressão uso compatível designará uma utilização que não implique mudança na significação cultural da substância, modificações que sejam substancialmente reversíveis ou que requeiram um impacto mínimo". (13)

Para que isto seja possível, a Declaração de Amsterdã (14) coloca a necessidade da elaboração de uma política de habitação social para estas áreas, a fim de que a reabilitação não modifique a composição social local:

“A reabilitação dos bairros antigos deve ser concebida e realizada, tanto quanto possível, sem modificações importantes da composição social dos habitantes e de uma maneira tal que todas as camadas da sociedade se beneficiem de uma operação financiada por fundos públicos”. (15)

Segundo a Recomendação de Nairóbi (16), as funções essenciais existentes deveriam ser mantidas e os novos usos deveriam ser compatíveis com o contexto econômico e social da área, adaptando-se às necessidades sociais, culturais e econômicas da população para contribuir com o desenvolvimento da mesma.

A Carta de Brasília (17) complementa este conceito colocando que, para a manutenção da autenticidade do conjunto, é essencial a manutenção do conteúdo sócio-cultural. A Carta de Petrópolis também vai tratar da questão da preservação e consolidação da cidadania, ao reforçar a necessidade de dar ao patrimônio função na vida da coletividade.

Podemos perceber, através desta análise, que a questão do turismo e da função social das áreas preservadas estão diretamente interligadas. A valorização da primeira em detrimento da segunda prejudica o equilíbrio e sustentabilidade.

Para que estas questões sejam contornadas é necessário que Estado, iniciativa privada e população participem da elaboração dos projetos de intervenção e da posterior gestão desses espaços, através de ações integradas.

A participação da população nos processos de intervenção e reabilitação nesses espaços e na posterior gestão garantiria a manutenção das áreas preservadas. Conduzidos desta forma, a Declaração de Amsterdã aponta que esses projetos resultariam em benefício social, e a Declaração de Sofia (18), que estes trariam melhoria da qualidade de vida para os habitantes.

As diretrizes aqui apresentadas, trazidas pelas Cartas Patrimoniais, indicam maneiras possíveis de, ao mesmo tempo em que se implanta a atividade turística em áreas históricas, controlar e evitar possíveis efeitos negativos.

Hiernaux-Nicolas (19), por exemplo, ao analisar o caso de bairros na Cidade do México, levanta questões sobre as formas pelas quais se processa a gentrification e aponta para a possível reversibilidade desses processos através de uma maior participação da população, em parceria com o Estado e a iniciativa privada, o que indicaria que os processos de gentrification poderiam não ser caminhos sem volta. Segundo o autor:

"A gentrificação é, portanto, um processo cuja medida real e importância é preciso levar em conta. Não se trata, sem nenhuma dúvida, de uma tendência sem volta, porque é possível que os revezes econômicos ou a força dos setores populares ponham freio a esta retomada." (20)

O Centro Histórico de Salvador

A análise destes conceitos pode ser realizada através do estudo do processo de intervenção no Centro Histórico de Salvador que, iniciado em 1991, ainda hoje está em andamento e congrega diversas destas questões.

Salvador foi fundada em 1549, por Tomé de Souza e desenvolveu-se dividida em Cidade Baixa e Cidade Alta (21). Na Cidade Baixa foram concentradas as atividades relacionadas ao porto, composta de apenas uma rua e casas de comerciantes atacadistas, e foi na Cidade Alta, composta de muitas ruas e duas praças públicas que se desenvolveu o núcleo fundador da cidade, que deu origem ao que é hoje o centro histórico (22).

Com o crescimento da cidade, as condições do sítio, anteriormente consideradas ideais para a construção de uma cidade-fortaleza, tornaram-se um entrave ao desenvolvimento urbano, que se expandiu para novas áreas, influenciando os futuros problemas para o funcionamento da cidade (23).

O processo de abandono do Centro Antigo pelas classes dominantes – o Centro Histórico de Salvador era a princípio ocupado por uma população nobre, formada por homens de negócios, grandes comerciantes, exportadores e importadores, senhores de engenhos e funcionários da administração pública – e, conseqüentemente, pelo poder público, ocasionado pelo crescimento da cidade, foi aos poucos mudando as características da área.

A área, até a época caracterizada como de uso administrativo, residencial e comercial, entrou em processo de perda de valor imobiliário e acentuada desvalorização e descaracterização (24), perdendo espaço para os subcentros especializados.

Sem manutenção, os prédios históricos ficaram comprometidos. Nos anos 30 do século XX o centro antigo passou a ser designado como área de prostíbulos e cortiços da cidade (25). Passou a abrigar uma população pobre, de baixa escolaridade, que fixou residência de forma precária. Surgiram também ali diversos movimentos culturais.

Entre os anos de 1938 e 1945 o IPHAN tombou diversos monumentos, porém de forma isolada, o que não garantiu a força necessária para impedir a degradação da área. Esse processo foi mais acentuado a partir de 1960, com a modernização da cidade e a transferência de atividades econômicas para outras regiões.

Em 1985 o Centro Histórico de Salvador foi reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela Unesco. De acordo com Silva (26), foram os itens (iv) e (vi) dos critérios para a inscrição de um “bem” na Lista do Patrimônio Mundial (27) que sustentaram a inscrição do Centro Histórico de Salvador como Patrimônio da Humanidade.

"O Icomos reiterou o posicionamento brasileiro, acrescentando que o centro histórico de Salvador deveria ser inscrito com base no critério iv, por ser um eminente exemplo de estrutura urbana da Renascença, tornando-se, pela densidade dos monumentos reunidos, a capital por excelência do nordeste brasileiro. Por outro lado, a inscrição do bem cultural com base no critério vi devia-se ao fato, segundo o Icomos, de ser um dos principais pontos de convergência das culturas européias, africanas e ameríndias dos séculos XVI a XVIII." (28)

Com o reconhecimento da área como Patrimônio da Humanidade, esta volta a ser alvo de atenções e de diversos projetos de reabilitação, sobretudo a partir dos anos 90.

O Programa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador

A área, sobretudo a região do Pelourinho, passou a ser vista como um grande potencial turístico para a cidade e no ano de 1991 o Governo do Estado lançou uma Carta de Referência com objetivos de reabilitação física e restauro das edificações, transformando-o em pólo de atração turística.

O uso do item (vi) para o reconhecimento do Centro Histórico de Salvador como Patrimônio da Humanidade revela a forte característica cultural da área, sobretudo a cultura negra, considerada tão importante quanto o conjunto arquitetônico para sua preservação.

À semelhança do ocorrido em muitos projetos dessa natureza, também no Centro Histórico de Salvador, o objetivo apresentado por seus idealizadores consistia, de modo geral, na recuperação dessas áreas e de seu patrimônio, na reinserção à dinâmica da cidade, na melhoria das condições sociais e de habitação da população e na valorização econômica, sobretudo através da atividade turística (29).

Porém, o que se observa a partir da análise do processo de intervenção iniciado em 1991, é que o aspecto particular da área, apesar de utilizado como justificativa para a implantação do projeto, não foi respeitado durante os longos anos de execução das obras, com a substituição das características particulares por elementos da cultura de massa, voltada para atender a um turismo de alta renda, o que acarretou ainda em problemas relacionados à perda das atividades cotidianas da área e à expulsão da população residente.

O processo chamou atenção em um primeiro momento, constituindo-se em publicidade oficial do Estado da Bahia, mas não se viabilizou economicamente.

As análises já realizadas acerca do projeto revelaram diversas contradições. De um lado, críticos denunciaram a expulsão da maioria da população moradora original, titular dos “direitos de posse” do Pelourinho, para as periferias da cidade, tornando a área de intervenção quase desabitada. De outro lado, os defensores da intervenção alegavam que sem ela e uma compreensão ampla da revitalização, esse Patrimônio da Humanidade poderia ter-se extinguido (30).

O projeto de intervenção foi dividido em duas fases. A primeira delas durou de 1992 a 1995 e foi dividida em 4 etapas. A idéia era transformar a área em um shopping ao ar livre, com área exclusiva para comércio e serviços.

A segunda fase compreende os anos de 1996 à 1999, dividida em mais 4 etapas. As etapas 5 e 6 tiveram por característica a construção de estacionamentos, a proteção de monumentos e recuperação de edifícios históricos. O projeto encontra-se atualmente na sétima etapa de intervenção.

Até a conclusão da sexta etapa de intervenção, o projeto caracterizou-se por ter como base a remoção da população residente transferindo-a para áreas periféricas na cidade através do pagamento de indenizações e a recuperação dos imóveis a fim de abrigar comércios e serviços de alto padrão voltados para a atividade turística. Buscava-se com isso transformar o turismo na principal fonte de arrecadação da cidade.

As novas atividades implantadas foram subsidiadas pelo Estado, com aluguéis reduzidos e programação cultural gratuita, o Programa Pelourinho Dia e Noite, criado em 1994 como uma tentativa de manter a freqüência durante todo o ano através de eventos e shows. A área ficou caracterizada como “pólo de lazer especializado da cidade e da região metropolitana”, mas por outro lado acentuou a “dependência dos empresários em relação ao governo” (31).

No que se refere ao conjunto arquitetônico, os imóveis foram dotados de infra-estrutura (água, esgoto, energia elétrica) antes inexistentes e as fachadas passaram por intervenções. Porém, no que diz respeito aos usos e ocupações, itens relacionados à preservação do patrimônio imaterial, como já mencionado, considerado de grande importância quando da sua inscrição na Lista do Patrimônio Mundial, com o andamento do projeto deixaram de ser considerados.

O resultado, a exemplo de outras intervenções similares, foi a tendência à gentrification, o que implicou na retirada de famílias residentes da área, na transformação do patrimônio em objeto de consumo cultural de massa e no tratamento do Pelourinho de forma destacada do conjunto do Centro Histórico, sem integrá-lo à vida da cidade. O projeto passou a se contrapor às diretrizes das Cartas Patrimoniais aqui citadas.

Assim como indicado pelas Cartas, o uso turístico foi privilegiado como âncora para a recuperação do Centro Histórico de Salvador e o projeto desenvolvido pretendeu em suas intenções atender às recomendações da Unesco e também formulações que se seguiram às Normas de Quito (32). Mas a falta de controle da atividade, como é indicado pelas Cartas Patrimoniais, levou à supervalorização do turismo no Centro Histórico de Salvador, impossibilitando o estabelecimento de interfaces entre o valor comercial e turístico da área e a função social que ela representa.

Esse processo levou a mudanças de usos na área e os novos usos implantados estavam relacionados a atividades turísticas de alta renda (bares, restaurantes, lojas, artesanatos, jóias), substituindo os usos tradicionais anteriores.

Com isso, a população local de baixa renda, transferida para outras áreas, foi substituída pelo visitante sazonal de alta renda, gerando a mudança do quadro populacional e de renda. Com a saída da população, houve uma mudança das características culturais da área, comprometendo-se seu caráter singular, um dos itens a justificar o tombamento, já que o visitante não tem raízes ou ligação cultural e afetiva com a área. O turismo foi colocado acima das questões sociais e a função social, essencial ao patrimônio cultural, foi aos poucos se perdendo.

Assim como o projeto de intervenção, a gestão da área após a conclusão das etapas de intervenção ficou por muito tempo a cargo do governo estadual, que além de gerenciar a implantação do projeto, também concedia benefícios para que os comerciantes se estabelecessem na área após a intervenção, o que criou uma situação de comodidade da iniciativa privada, já que os encargos eram de responsabilidade do governo do estado.

A gestão controlada pelo Estado centralizou as regras que definiam a exploração econômica da área, sendo o IPAC o órgão responsável por analisar as propostas e determinar a localização das atividades econômicas na área, definindo também os aluguéis. Nesta fase surgiram os bares, restaurantes, galerias de arte, lojas de souvenirs, ateliers de artistas, principalmente voltados para visitantes e turistas. A lei do “ponto” foi proibida (33).

Com esse processo, a visitação à área do Pelourinho, núcleo principal do projeto, recebeu um grande número de visitantes quando foram inauguradas as primeiras etapas de intervenção. Porém, passado este momento, a visitação inicial começou a decair.

Neste contexto, acompanhar as novas etapas e propostas de intervenção que se iniciam atualmente no Centro Histórico de Salvador ganha relevo e importância para o debate atual a respeito das intervenções urbanas em áreas centrais históricas pois as inflexões que apresentam podem vir a representar uma alteração da concepção do programa, a partir de dois focos distintos, a participação da AMACH (Associação dos Moradores e Amigos do Centro Histórico) no processo e a formulação de uma nova proposta de intervenção na área.

A participação da AMACH foi decisiva, em última instância, para a entrega, em outubro de 2007, do primeiro imóvel recuperado para habitação de interesse social, o que indica a possibilidade de que as futuras decisões sobre a área possam ser tomadas de forma compartilhada.

Em relação à nova proposta de intervenção para a área, houve a criação de um novo conselho para gerenciar o processo, o Conselho Gestor do Antigo Centro, coordenado pelo Escritório de Referência do Antigo Centro, formulado na mesma data. Esta mudança representa a alteração do foco de abrangência do projeto, cujo nome foi alterado para “Centro Antigo de Salvador. Plano de Reabilitação Integrado e Participativo”.

Pode-se observar também em Salvador o início de um processo de mudança na forma de condução das intervenções, o que poderia traduzir, em certa medida, a intenção de aplicação das diretrizes colocadas pelas Cartas Patrimoniais.

Assim, pode estar começando em Salvador, a partir das alterações propostas, uma revisão crítica na forma de intervir na área preservada, reforçando uma possível hipótese de que os processos de gentrification, como já foi dito anteriormente, não sejam processos inevitáveis, apontando possíveis outros caminhos para intervenções desta natureza.

O que se coloca aparentemente como aspecto definitivo, porém, é o entendimento de que o foco no turismo, implantado de forma isolada, sem parceria com outras atividades, não foi suficiente para a manutenção da área pós-intervenção. Conseqüentemente, os usos voltados exclusivamente ao comércio e serviços mostraram-se inadequados e torna-se clara a necessidade de implantar e resgatar outros usos. Resulta daí a importância simbólica da entrega, já citada, da primeira habitação de interesse social na área, o que poderá auxiliar no resgate da sua função social, contribuindo para o resgate da população e da cultura local.

notas

1
O presente artigo tem como referência o trabalho intitulado “Requalificação Urbana: novos caminhos para o Centro Histórico de Salvador”, dos mesmos autores, publicado originalmente nos Anais do Encontro Nacional de Arquitetos, ArquiMemória 3, Sobre Preservação do Patrimônio Edificado, realizado em Salvador (BA) de 08 a 11 de junho de 2008.


2
Gentrification é um termo que, segundo Silvana Rubino (2004, p. 288), foi utilizado pela primeira vez pela socióloga inglesa Ruth Glass, ao relatar transformações ocorridas no centro de Londres. RUBINO, Silvana. “Gentrification” – Notas sobre um conceito incômodo. In BENFATTI, D.; SCHCCHI, M. C. (Org.). Urbanismo: Dossiê São Paulo – Rio de Janeiro. Campinas: Puc-Campinas / PROURB, 2003, p. 287-296.

3
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Unesp, 2001.

4
JEUDY, Henri-Pierre. Espelhos das cidades. Rio de Janeiro: Editora Casa da Palavra, 2005.

5
Todas as Cartas Patrimoniais aqui abordadas foram retiradas de CURY, Isabelle (org). Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, Edições do Patrimônio, 2004. As Cartas Patrimoniais não constituem uma entidade homogênea. Ainda que muitas delas apresentem pontos de convergência no que se refere às recomendações para os centros históricos, elas representam um conjunto formado por documentos regionais, nacionais e internacionais de diversas instituições e organizações.

6
Recomendação sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular. Conferência Geral da Unesco – 25a Reunião. Paris, 15 de novembro de 1989. In: CURY, Isabelle (org). Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, Edições do Patrimônio, 2004, p. 293-301.

7
Idem, p. 294, 295.

8
Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. Paris, 17 de outubro de 2003. In: CURY, Isabelle (org). Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, Edições do Patrimônio, 2004, p. 371-390.

9
Idem, p. 373.

10
Reunião sobre Conservação e Utilização de Monumentos e Sítios de interesse histórico e artístico. OEA, Organização dos Estados Americanos. Quito, novembro / dezembro de 1967. In: CURY, Isabelle (org). Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, Edições do Patrimônio, 2004, p. 105-122.

11
Primeiro Seminário Brasileiro para Preservação e Revitalização de centros históricos. Petrópolis, 1987 (p. 285-287).

12
Carta de Burra. ICOMOS, Conselho Internacional de Monumentos e Sítios. Austrália, 1980. In: CURY, Isabelle (org). Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, Edições do Patrimônio, 2004, p. 247-252.

13
Idem, p.248.

14
Declaração de Amsterdã. Congresso do patrimônio arquitetônico europeu. Conselho da Europa. Ano europeu do patrimônio arquitetônico. Amsterdã, outubro de 1975. In: CURY, Isabelle (org). Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, Edições do Patrimônio, 2004, p. 199-210.

15
Idem, p. 200.

16
Recomendação relativa à Salvaguarda dos Conjuntos Históricos e sua função na vida contemporânea. Conferência Geral da Unesco, 19a sessão. Nairóbi, 26 de novembro de 1976. In: CURY, Isabelle (org). Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, Edições do Patrimônio, 2004, p. 217-234.

Carta de Washington. Carta Internacional para a salvaguarda das cidades históricas. Icomos – Conselho Internacional de Monumentos e Sítios. Washington, 1986. In: CURY, Isabelle (org). Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, Edições do Patrimônio, 2004, p. 281-284.

17
Carta de Brasília. Documento regional do Cone Sul sobre autenticidade. Brasília, 1995. In: CURY, Isabelle (org). Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, Edições do Patrimônio, 2004, p. 323-328.

18
Declaração de Sofia. XI Assembléia Geral o Icomos. Sofia, 9 de outubro de 1996. In: CURY, Isabelle (org). Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, Edições do Patrimônio, 2004, p. 355-357.

19
HIETNAUX-NICOLAS, Daniel. A reapropriação de bairros da Cidade do México pelas classes médias: em direção a uma nova gentrificação?. In: BIDOU-ZACHARIASEN (Org). De volta à cidade. Dos processos de gentrificação às políticas de “revitalização” dos centros urbanos. São Paulo: AnnaBlume, 2006, p. 229-264.

20
Idem, p. 259.

21
CALMON, Pedro. História da Bahia – Resumo didactico. São Paulo: Companhia Melhoramentos, Rio de Janeiro: Cayeiras, 1925, p. 37.

22
CARNEIRO, Edson. A cidade do Salvador (1549) Uma reconstituição histórica. Rio de Janeiro: Edição da Organização Simões, 1954, p. 130,104.

23
DOMINGUES, Alfredo José Porto; KELLER, Elza Coelho de Souza. Bahia – Guia da excursão número 6, realizada por ocasião do XVIII Congresso Internacional de Geografia. Rio de Janeiro: Edição do Conselho Nacional de Geografia, 1958, p. 204.

24
GOTTSCHALL, Carlota de Sousa, SANTANA, Mariely Cabral de (Org). Centro da Cultura de Salvador. Salvador: EDUFBA, 2006, p. 35.

25
BROOKE, James. No Brasil, uma cidade tem seu próprio Harlem renascido. In Centro Histórico de Salvador – Bahia. Pelourinho – A grandeza restaurada, s.n.t, p. 58.

26
SILVA, F. F. As cidades brasileiras e o patrimônio cultural da humanidade. São Paulo: Edusp, Editora Peirópolis, 2003, p. 101.

27
Idem, p. 102.

28
São 6 os critérios para a inscrição de um “bem” na Lista do Patrimônio Mundial, estabelecidos pelo Comitê do Patrimônio Mundial / Unesco. O objetivo é determinar se o “bem” possui valor excepcional. SILVA, F. F. As cidades brasileiras e o patrimônio cultural da humanidade. São Paulo: Edusp, Editora Peirópolis, 2003, p. 93,94. O item (vi), ao assegurar a salvaguarda de “eventos ou tradições vivas, com idéias ou com crenças”, ressalta o aspecto da cultura local, denominado “Patrimônio Imaterial”, que ganha cada vez mais reconhecimento como aspecto fundamental para a preservação de um bem cultural.

29
FREITAG, Bárbara. O Pelourinho: Centro Histórico de Salvador. Correio Brasiliense, 18 fev. 2005. Disponível em <http://www.unb.br/ics/sol/itinerancias/grupo/barbara/Artigos/pelourinho.htm> Acessado em 20 jun. 2006.

30
FREITAG, Bárbara. O Pelourinho: Centro Histórico de Salvador. Correio Brasiliense, 18 fev. 2005. Disponível em <http://www.unb.br/ics/sol/itinerancias/grupo/barbara/Artigos/pelourinho.htm> Acessado em 20 jun. 2006.

31
SANT’ANNA, Márcia. A recuperação do Centro Histórico de Salvador: origens, sentidos e resultados. RUA, Salvador, n 6, p. 44-59, 2003.

32
GOTTSCHALL, Carlota de Sousa, SANTANA, Mariely Cabral de (Org). Centro da Cultura de Salvador. Salvador: EDUFBA, 2006, p. 81.

33
GOMES, Marco Aurélio A. de Filgueiras, FERNANDES, Ana. Operação Pelourinho: o que há de novo, além das cores?, In Sílvio Zanchetti, Geraldo Marinho, Vera Millet (Org). Estratégias de intervenção em áreas históricas. Recife: MDU / UFBE, 1995, p. 46-52.

sobre os autores

Paula Marques Braga, arquiteta e urbanista (FAU PUC-Campinas), mestre em Urbanismo pelo Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da PUC-Campinas (bolsista Capes), doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da USP / São Carlos.

Wilson Ribeiro dos Santos Júnior, arquiteto, mestre e doutor em Arquitetura e Urbanismo (FAU USP) é coordenador e professor do Mestrado em Urbanismo e da FAU PUC-Campinas e líder do Grupo de Pesquisa Requalificação Urbana do CEATEC PUC-Campinas

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