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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Eduardo Rossetti explora a complexidade da Plataforma Rodoviária de Brasília, do projeto de Lucio Costa, que deve ser compreendida através dos limites entre as escalas de seu projeto arquitetônico e urbanístico

english
Eduardo Rossetti analyses the complexity of the Bus Station Platform in Brasilia, by Lucio Costa, that needs to be understood through the limits between the scales involved within the architectural and urban projects

español
Eduardo Rossetti analisa la complejidad de la Plataforma de la Estación de Buses de Brasilia, proyecto de Lucio Costa, que tiene que ser entendida a través de los límites entre las escalas de su proyecto arquitectónico y urbanístico

français
Eduardo Rossetti analyse la complexité de la Platforme de la Gare Routière de Brasilia, projet de Lucio Costa, que doit être comprise a travers les limites entre les échelles de son projet architecturale et urbanistique


how to quote

ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Lucio Costa e a Plataforma Rodoviária de Brasília. Arquitextos, São Paulo, ano 10, n. 119.03, Vitruvius, abr. 2010 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.119/3371>.

"Fim de tarde
no céu plúmbeo
a Lua baça
pairamuito cosmograficamente
satélite." (Manuel Bandeira)

Brasília, 17h55, falta pouco mais de uma hora para a Voz do Brasil ser irradiada. O afluxo de pedestres, motos, automóveis, ônibus, táxis, viaturas policiais é ainda mais intenso, como no começo do dia. O CONIC e o Conjunto Nacional já estão com seus letreiros acesos. Pessoas com celulares, engraxando os sapatos, conversando, tomando sorvete, carregando coisas, sacolas, malas; gente namorando, fumando, comendo pastel, comprando ou vendendo frutas, balas, chicletes ou algum badulaque eletrônico. Os apressados correm e se desvencilham dos carrinhos e jornaleiros. Enquanto isso, raios de sol penetram entre os planos da Plataforma Rodoviária, o âmago do Plano Piloto, igualmente concebida por Lucio Costa.

A Plataforma Rodoviária é o cerne do Plano Piloto de Lucio Costa. Sua implantação no ponto ideal do cruzamento dos dois eixos definidos por Lucio Costa, se transforma e se apresenta como um projeto arquitetônico complexo e de grandes dimensões. A Plataforma é o ponto fulcral do tecido urbano de Brasília, determinando um lugar privilegiado, constituindo-se como a gênese do desenho urbano do projeto de Lucio Costa. Neste sentido, ela e se configura como uma infraestrutura urbana fundamental para a consolidação do tecido urbano do Plano Piloto, articulando diretamente os setores conexos e se inscrevendo como espaço estratégico para o funcionamento do Plano Piloto.

Através de diferentes níveis - ou cotas - e das conexões entre seus ambientes, a Plataforma estabelece a continuidade do tecido urbano, ao mesmo tempo em que também articula a escala monumental e a escala gregária, incorporando em seus fluxos as especificidades de percepção do espaço urbano e arquitetônico na vida citadina de Brasília. Devido as suas articulações, às atividades, aos usos e às apropriações da Plataforma, seu caráter utilitário e funcional transforma-se. Considerando seu caráter articulador das escalas e fluxos urbanos entre as Cidades-Satélites, o Plano Piloto e suas áreas centrais, a Plataforma amplia a carga simbólica de sua inserção numa paisagem urbana e estabelece seu caráter metropolitano definitivo.

A complexidade da Plataforma Rodoviária de Brasília deve ser compreendida através dos limites entre as escalas de seu projeto arquitetônico e urbanístico. A imagem de uma superestrutura com 700m de extensão, revela uma estrutura de superfícies elaboradas e articuladas para a construção dos espaços da Plataforma. Dotados de feixes de pistas automobilísticas no sentido Norte-Sul e Leste-Oeste, calçadas, e áreas de estar, entre zonas de sombra e passeios a céu aberto, estas superfícies se convertem elas mesmas - através de seu desenho - em novos lugares e espaços urbanos. A infraestrutura e o programa da Plataforma se integram às demandas urbanas correlatas ao cotidiano da cidade. A vitalidade urbana da Plataforma, advém da presença dos habitantes e usuários dos múltiplos meios de transporte e serviços de interesse público que ela abriga, bem como dos milhares de transeuntes que se deslocam entre os setores urbanos que ela articula direta e indiretamente.

Tal fato deve ser incrementado com as características construtivas do espaço contínuo e relacional que a articulação destas superfícies definem. Menos que um edifício, a Plataforma da Rodoviária de Brasília se manifesta como um lugar de caráter urbano inequívoco, sendo pouco percebida como coisa edificada na paisagem urbana que desenha e que também possibilita apreender. A Plataforma está implantada magistralmente num arranjo topográfico concebido especialmente para acomodá-la ao seu lugar exclusivo e eterno, demarcando em definitivo o cruzamento dos dois eixos do Plano Piloto da Capital no território do cerrado e no Planalto Central do Brasil. Será através de um jogo mais que sábio e correto dos espaços e lugares existentes entre suas grandes superfícies, que a Plataforma Rodoviária de Lucio Costa se transforma no ponto máximo de correlação entre a arquitetura e o urbanismo.

A Plataforma de Lucio Costa

Inicialmente, no ponto 5 do Relatório do Plano Piloto, Lucio Costa considera que: "O cruzamento desse eixo monumental, de cota inferior, com o eixo rodoviário-residencial impôs a criação de uma grande plataforma liberta do tráfego que não se destine ao estacionamento ali, remanso onde se concentrou logicamente o centro de diversões da cidade, com os cinemas, os teatros, os restaurantes etc." (1). Desde sua concepção inicial antevista no Relatório do Plano Piloto, a Plataforma Rodoviária já se apresenta em função do arranjo dos espaços urbanos, devendo ser implantada numa situação topográfica que contemplasse o arranjo autônomo dos feixes de pistas automobilísticas e as "tramas autônomas para os pedestres, a fim de garantir-lhes o uso livre do chão" (2). Em função da "rede geral do tráfego de automóvel" (3) seria definida a as articulações com os espaços cívicos da Esplanada dos Ministérios, com os setores centrais e com os espaços residenciais das superquadras. Assim, subordinada à concepção urbana e não idealizada como um edifício, é que a Plataforma Rodoviária será elaborada como espaço público que articulará as escalas da cidade.

No texto do Relatório do Plano Piloto, Lucio Costa retomaria a questão da Plataforma no ponto 10. Detendo-se com especial atenção, Lucio Costa assinala que a face da Plataforma debruçada sobre o setor cultural e a Esplanada dos Ministérios não seria edificada, enquanto que o centro de diversões deveria ser o vetor da atividade urbana da futura Capital, assinalando sua concepção com referências de caráter urbano inequívocos, devendo este Setor central de diversões corresponder a uma "mistura em termos adequados de Piccadilly Circus, Times Square e Champs Elysées" (4), confirmando a expectativa sobre o grau de urbanidade destes setores e desses espaços urbanos conexos à Plataforma.

Ao mesmo tempo em que fornece essas cifras de sua vivência e de sua expectativa cosmopolita para os membros do júri que avaliariam a proposta do Plano Piloto, Lucio Costa incorpora a Rua do Ouvidor, as vielas venezianas, as galerias cobertas italianas como outras referências urbanas a serem decodificadas em novos espaços urbanos modernos, com seus serviços, cinemas, clubes, etc. que articulariam seus diferentes níveis através de escadas rolantes e elevadores. Note-se que a solução original deste centro de diversões está implantada justamente no centro do Eixo Monumental, competindo claramente com a inserção da Torre de TV, ao mesmo tempo em que se conecta diretamente com a Plataforma. A utilização de vidro e a presença da linha do horizonte da Bacia do Paranoá e da paisagem do cerrado deveriam ser fundidas ao caráter feérico e excitante da iluminação dos painéis publicitários. Deste modo, Lucio Costa também estabelece uma imagem da agitação e da pulsação urbana intensa que a nova Capital poderia atingir.

Posteriormente, em meados dos anos 80, quando Lucio Costa é instado a repensar Brasília nas circunstâncias de sua visita à cidade que concebera, ele se surpreende com a cidade-capital factual, culminando naquilo que seria o documento "Brasília revisitada". Em "Brasília revisitada", além de detectar a consolidação de seu Plano Piloto numa cidade vivaz, Lucio Costa se surpreende com a aglomeração popular junto à Plataforma da Rodoviária e seus setores conexos. O grande contingente popular passando, passeando, enfim, vivendo os espaços públicos entre a Plataforma, o Conjunto Nacional, o CONIC, o Teatro Nacional e o Touring Club, ou deslocando-se para o Setor Comercial Sul, ou para o Setor Bancário e para as autarquias. A constatação em muito se diferencia da sofisticada e elegante dinâmica vislumbrada por ele com casas de ópera, cafés, restaurantes... que lembraria mais a visão de urbanidade da Cité Contemporain de Le Corbusier - com mesas e cadeirinhas, xícaras, bule de chá sobre uma badeja - do que a urbanidade amalgamada no meio do cerrado.

Num depoimento, a questão da Plataforma Rodoviária é explorada com equivalente: "Aquela plataforma é fundamental lá no Plano, em três níveis, naquele cruzamento [...]. É que eu tinha concebido essa plataforma rodoviária no centro do Plano Piloto como um centro muito cosmopolita [...] como uma coisa muito civilizada e cosmopolita. O café, com aquela vista linda da esplanada [...]" (5). No entanto, segue ele, "invés daquele centro cosmopolita requintado que eu tinha elaborado, [a Plataforma] tinha sido ocupado pela população periférica, a população daqueles candangos que trabalham em Brasília. Era o ponto de convergência, onde eles desembarcavam e havia então esse traço de união, era um traço de união entre a população burguesa, burocrata com a população obreira e que vivia na periferia" (6). E assim, diante da apropriação popular da Plataforma Rodoviária e dos espaços urbanos conexos, ele se rende constatando que "Foi o Brasil de verdade, o lastro popular que tomou conta da área. Isso deu uma força enorme à Capital, me fez feliz de ter contribuído involuntariamente para essa realização." (7)

Augusto Guimarães e Nauro Esteves: colaboração e diálogo

"A arquitetura ocorre no encontro de forças
interiores e exteriores de uso e espaço." (Robert Venturi)

A proposta original do Plano Piloto de Lucio Costa foi, desde o princípio, uma idéia norteadora do desenho da futura cidade, como próprio edital do concurso postulava, e não um projeto executivo já desenvolvido. Para tanto a NOVACAP formaria uma grande equipe de trabalho, em que as especificidades técnicas de profissionais diversos deveriam contribuir com o esforço epopeico de construir a cidade e inaugurar e Capital no prazo almejado. Enquanto Oscar Niemeyer transferiu-se para o Planalto Central e passou a trabalhar diretamente no canteiro de obras apoiado por membros dessa grande equipe, Lucio Costa permaneceu no Rio de Janeiro. No entanto, para acompanhar o desenvolvimento dos trabalhos e certificar-se da implantação de seu Plano Piloto, ele designa o engenheiro civil Augusto Guimarães Filho como seu legítimo representante.

Enquanto Oscar Niemeyer chefiava a Divisão de Arquitetura, Augusto Guimarães integrou os quadros da NOVACAP como diretor da Divisão de Urbanismo. Lucio Costa passou a ser informado sobre tudo e, segundo Guimarães "[...] evidentemente que a última palavra era sempre dele, mas nominalmente eu era o chefe da Divisão de Urbanismo" (8). A "tarefa" era desenhar o projeto executivo do Plano Piloto - "pegar aquela planta [...] e botar na escala maior" (9). Além disso, ele outros membros da equipe também precisavam definir o ponto inicial, a estaca zero, justamente no cruzamento dos dois eixos, onde está a Plataforma Rodoviária, a partir de onde toda a implantação do plano Piloto seria determinada, e para tanto, o chefe de topografia, o engenheiro Joffre Mozart Parada foi fundamental.

Augusto Guimarães assinala que não trabalhava regularmente com maquetes, a não ser no caso da Plataforma Rodoviária: "nós nunca fizemos maquete. Só fizemos maquete do Eixo Rodoviário, no cruzamento da estaca zero, da Estação Rodoviária. [...] Porque nem o presidente entendia muito bem como é aqueles três planos, aquelas coisas. Então nós fizemos uma maquete desmontável (sic)" (10). Além do interesse de Lucio Costa pelo desenvolvimento do projeto da Plataforma, o próprio Presidente Juscelino Kubitschek tinha particular interesse pelo projeto. Segundo Augusto Guimarães, certa feita JK perguntou pelos desenhos, ao que reagiu querendo ver os cortes e não as plantas, pois até mesmo JK sabia que para ver como seria seu funcionamento e para compreender o projeto da Plataforma, as plantas se constituíam numa referência secundária. Além de atestar o grau de intimidade do Presidente com o trabalho rotineiro da nova Capital, esse fato demonstra a importância que a Plataforma teve durante as obras. Embora não estivesse integralmente construída por ocasião da inauguração da cidade, pouco tempo depois ela foi finalizada e inaugurada, apresentando-se integralmente como a macro-estrutura articuladora do desenho urbano do Plano Piloto.

Após a consolidação da nova Capital e o consequente aquecimento das atividades urbanas, das atividades comerciais e com novas demandas de consumo e lazer, finalmente os Setores de Diversão Norte e Sul concebidos por Lucio Costa encontraram o estímulo da iniciativa privada para serem construídos. Nauro Esteves, arquiteto que chefiou e conduziu as obras de Oscar Niemeyer em Brasília, já durante a construção, era também responsável pelo desenvolvimento de diversos outros projetos para o Plano Piloto. Em seu depoimento, o arquiteto pondera que mediante o risco de pleitearem um projeto arquitetônico incompatível com a linguagem e com a qualidade modernista predominante, era habitual desenvolver projetos até o nível de anteprojeto, com o objetivo de nortear o projeto arquitetônico que seria construído por quem viesse a incorporar as projeções (11) e consolidar a cidade.

Deste modo, o esquema das especulações espaciais e volumétricas referentes ao Setor de Diversões Norte - que hoje corresponde ao Conjunto Nacional - foi elaborado e desenvolvido para justamente ser adequado à ordem urbana pré-estabelecida do Plano, porque, segundo ele: "a gente queria fazer uma cidade decente" (12). Neste sentido, o Conjunto Nacional é um fato relevante deste respeito ao projeto do Plano Piloto e ao seu autor. Nauro Esteves relata que durante o desenvolvimento do projeto, foi conversar e apresentar os desenhos ao Lucio, com uma solução que possuía amplas varandas voltadas para a Esplanada, sem letreiros, sem os painéis publicitários aventados no Relatório do Plano Piloto. No entanto, não houve termo de negociação, e para que Nauro Esteves tivesse o "ok" de Lucio Costa foi preciso fazer outro projeto, elaborar uma fachada Leste, voltada para a Plataforma e para a Esplanada, com os grandes painéis luminosos para propaganda, de acordo com a concepção descrita no Relatório. Assim, o projeto do Conjunto Nacional de autoria de Nauro Esteves segue à risca a orientação do próprio Lucio Costa, consolidando sua concepção arquitetônica dos espaços urbanos esboçados outrora. Menos que anacronismo, ou a subordinação, detecta-se o respeito e o peso do capital simbólico de Lucio Costa no processo de consolidação de sua cidade.

Neste sentido, entre o pressuposto afastamento e este retorno simbólico em 1985 - que é concomitante com a retomada democrática do campo político - Lucio Costa constantemente se mantém atento à cidade, pronunciando-se publicamente para defendê-la já no Congresso Internacional Extraordinário dos Críticos da Arte (1959). Seja com artigos publicados na grande imprensa nos anos 60 - "O urbanista defende sua cidade", "Fiquem onde estão" - até as muitas "retificações" publicadas em jornais nos anos 70 e 80, ou ainda com ele próprio tomando a palavra na tribuna do Senado Federal, Lucio Costa sempre esteve ciente dos acontecimentos relacionados ao Plano Piloto de Brasília (13). Sua trajetória profissional indica um distanciamento presumivelmente maior do que ele sinaliza acerca de suas ausências da cidade. Inclusive porque, o protagonista que mais se destacaria na consolidação da Capital passa a ser Oscar Niemeyer, permitindo-lhe manter-se, aparentemente, distante, indiferente.

 

Nexos de edifício, cidade, lugar e paisagem

"Normalmente, urbanizar consiste em criar condições para que a cidade aconteça, com o tempo e o elemento surpresa intervindo..." (Lucio Costa)

"...o edifício deve fabricar a vida e, ao mesmo tempo, ser fabricado por ela, para corresponder às suas mutações." (Aldo Rossi)

As relações do edifício com o meio urbano em que se instala são potentes. As demais correlações estabelecidas entre o edifício, a cidade, o lugar, o contexto urbano, o desenho da cidade, a infraestrutura e o sítio geográfico do fato arquitetônico revelam as estratégias projetuais do arquiteto em face as muitas condições onde sua arquitetura está implantada. A arquitetura de Lucio Costa estabelece os vínculos urbanos que asseguram o seu caráter representativo inequívoco. Ao atuar direta ou indiretamente sobre os fluxos humanos, sobre a mobilidade urbana, sobre a rede dos espaços públicos da cidade, a Plataforma Rodoviária contribuiria com a qualidade de vida dos cidadãos com sombras, espaços de estar e demais equipamentos que configurariam o grau de urbanidade em que seus cidadãos merecem habitar - tais como lixeiras, bancos, iluminação e sinalização.

As relações edifício/cidade não se esgotam como um campo de dupla tensão, dela participando o sentido de lugar. Assim, o lugar em que se projeta torna-se outro elemento de identificação do fato arquitetônico, reforçando sua presença no tecido urbano. Para configurar-se como lugar, as relações entre o programa e o espaço se transformam em estímulos para o arquiteto captar a estrutura de funcionamento do projeto e considerá-lo potencialmente como instância de sociabilidade e convívio. A Plataforma é uma intervenção na infraestrutura de Brasília, em que a vinculação entre o fato arquitetônico e o traçado da cidade resulta da integração máxima entre os limites projetuais da arquitetura e do urbanismo para Lucio Costa. A acomodação topográfica faz pressupor que o equipamento foi implantado como se o terreno, naturalmente, já pré-existisse.

O impacto inaugural da implantação da Plataforma Rodoviária no terreno do Plano Piloto fica patente nas fotografias. Ao mesmo tempo em que pode ela ser registrada e percebida como uma potente estrutura de superfícies com suas vias sobrepostas articulando os níveis em que desenvolve seus espaços, ela também se apresenta devidamente incorporada à linha do horizonte do território da cidade, acomodada na tensão entre o Eixo Monumental e o Eixo Rodoviário-residencial – o Eixão. As fotos do processo de construção da Plataforma impressionam quando contrapostas às fotografias de seu estado finalizado. A dimensão e a pujança de sua estrutura em concreto armado é relativizada através do tratamento plástico de suas superfícies: asfalto, granilite, cerâmica Grassit branca, mármores brancos idênticos aos dos palácios governamentais. À materialidade do projeto se soma a excessiva transparência de seus vãos que recortam a paisagem da Esplanada, abrem visuais dos setores centrais e do céu de Brasília. Tudo isso, além da intensa movimentação da vitalidade urbana de gente em seus espaços, relativiza os esforços - técnico, social, histórico - hercúleos para construir o projeto.

Mesmo em se tratando de uma obra de grande porte, Lucio Costa não faz do concreto armado um fator expressivo, priorizando o seu caráter utilitário como material estrutural. A materialização de suas estruturas em concreto armado moldadas in loco - com vãos de 28.50m, vigas de 2m de altura - sendo paulatinamente acomodada sobre o seu lugar definitivo, antes das grandes movimentações de terra, impressiona pela grande dimensão e pelo arroubo estrutural, cuja consequência formal é, paradoxalmente, tornar-se uma estrutura que por suas proporções pode ser adjetivada de "leve", tornando-se imperceptível, e circunstancialmente desaparecer na paisagem. Deste modo, a Plataforma Rodoviária de Brasília dissolve sua presença de coisa edificada, abdicando - no limite - da forma. Ou seja, a solução de Lucio Costa abdica da questão da forma como parte exclusiva de sua formulação projetual. O que interessa é o lugar.

O conhecimento técnico e estrutural pertinentes para o cálculo e construção de rodovias ou implantar sistemas viários complexos foi aqui, justamente, utilizado para consolidar o projeto arquitetônico e urbanístico articulador dos fluxos viários, dos fluxos de pedestres e das conexões urbanas e as correlações simbólicas do Plano Piloto, resguardando fielmente o chão ao pedestre. Lucio Costa explora a macro-estrutura implantada no âmago do Plano Piloto, transformando-a também num mirante para proporcionar a apreensão, não do seu próprio traçado, mas a contemplação do espetáculo arquitetural de Niemeyer na Esplanada dos Ministérios, deixando o pedestre com maior intimidade perante a monumentalidade da cidade. Isso ocorre também para quem se desloca de carros: a Plataforma não se converte, meramente, num grande viaduto, permanecendo como um estímulo à promenade automobiliste - outra singularidade de Brasília a ser oportunamente explorada.

Plataforma de utopias

"As redes dessas criaturas [os habitantes comuns da cidade] avançando e entrecruzando-se compõem uma história múltipla, sem autor nem espectador, formada em fragmentos de trajetórias e em alterações de espaços: com relação às representações, ela [a cidade] permanece cotidianamente, indefinidamente, outra." (Michel de Certau)

Se a Plataforma Rodoviária do Plano Piloto de Brasília não se consubstanciou num pólo de vida urbana cosmopolita, as imagens de sua construção e as imagens do projeto modernista em que ela é engendrada, conseguiram corresponder às diversas aspirações utópicas que o campo da arquitetura produziu nos anos 60 e 70. Menos do que uma referência apropriada e conscientemente operada por dentro do campo da arquitetura, as imagens da superestrutura da Plataforma encontram conexões com perspectivas projetuais, urbanas, sociais e espaciais, diversas das perspectivas de Brasília, muito provavelmente devido à repercussão do feito representado por Brasília na imprensa mundial, durante todo o seu processo de construção e nos primeiros anos de sua existência.

Assim, será importante desdobrar, futuramente, as correlações e os diálogos arquitetônicos entre Lucio Costa e a Plataforma Rodoviária com os valores do campo arquitetônico dos anos 60. O interesse de Robert Venturi pelas vias expressas; as estruturas e a escala territorial dos projetos dos metabolistas japoneses; o caráter supra-territorial e sintetizador dos projetos do Archigram; a forma do Monumento Contínuo idealizado pelo Superstudio; até o projeto "Arquitetura para prisioneiros voluntários" de Rem Koolhaas ou a proposta da Sand City do MDRDV parecem conter questões correlatas às dimensões físicas, à superestrutura de sua tecnologia de construção, afeitos à carga simbólica, inerentes ao desenho urbano, as articulações da cidade e a infraestrutura subterrânea, ou vinculados ao programa de múltiplas funções que a Plataforma Rodoviária pode encerrar.

Como num fragmento imagético de uma deriva proposta pelos Situacionistas, mas encoberto e pela poeira vermelha do cerrado, a Plataforma Rodoviária foi registrada por Joaquim Pedro de Andrade, em "Brasília: contradição de uma cidade nova". Num dado momento, um travelling incrível em que o olhar do expectador desce as escadas rolantes, mergulhando nos espaços da Plataforma, permeando os olhares inquisitivos da massa popular que usa e vive seus espaços, até se deter no movimento de um ônibus cruzando o Eixo Monumental e fixar-se no Congresso Nacional.

Longe desta imagem, hoje, o que menos se houve na Plataforma Rodoviária é o ruído dos motores dos velhos ônibus. Enquanto os alto-falantes da Rádio Rodoviária ecoam mensagens publicitárias, hits dos anos 80, a hora certa, etc, é possível detectar outros inúmeros sons que perpassam os espaços e os ambientes da Plataforma ao longo do dia e da noite. Em seu funcionamento ininterrupto, 24h, a Plataforma Rodoviária apresenta sons absolutamente diversificados de acordo com os ciclos, suas rotinas e sua gama de usuários: engravatados, militares, trabalhadores de diferentes escalões, skatistas, emo's, prostitutas, vendedores de produtos de procedência duvidosa, viajantes e tantos outros retirantes, viciados, esfarrapados... Menos do que ser o centro de Brasília, a Plataforma Rodoviária do Plano Piloto permanece como o ponto de centralidade fundamental, articulando também a vida urbana da Capital com a dinâmica urbana das Cidades Satélites. A vida urbana de Brasília apresenta a dinâmica característica das cidades brasileiras, com ciclos de sucesso e decadência dos espaços e das atividades humanas em seus domínios, decorrentes da própria transformação econômica, social, cultural e tecnológica avassaladora que ocorreu no Brasil nos últimos 50 anos, que é justamente o tempo da existência de Brasília.

A população do Distrito Federal é de aproximadamente 2,6 milhões de habitantes. Considerando os números mais modestos, transitam pela Plataforma mais de 500.000 pessoas, ou seja, cerca de 20% da população do DF. Além dos serviços inerentes à uma rodoviária, tais como táxis, estacionamentos, lanchonetes, cafés, pequenas lojas, etc, a Plataforma Rodoviária também possui serviços públicos como Correios, ANTT, DF-TRANS, PMDF, Na Hora (14). Estatisticamente mais de 90% desse público que usa, habita ou transita pelos espaços da Plataforma pertence às classes C e D. Além disso, a estimativa de tempo médio de permanência na Plataforma que atinge 30 minutos parece ser mais que suficiente para denotar o seu constante funcionamento e justificar a instalação de 83 lojas e 64 quiosques. A incorporação da Plataforma no cotidiano da cidade é marcada por valores absolutamente corriqueiros a qualquer cidade brasileira, pois além dos fotógrafos lambe-lambe que fazem fotos 3x4 em minutos, a Pastelaria Viçosa que serve milhares de pastel acompanhados de caldo de cana já foi considerada uma atração turística incluída em roteiros para o depois das visitas aos monumentos. (15)

A Plataforma Rodoviária do Plano Piloto de Brasília possui um grau de urbanidade tão vital para a cidade devido as suas questões de conectividade, usos e valor de espaço público como parte fundamental do chão da cidade-capital, sendo ela vivenciada, experimentada e habitada pelos milhares de cidadãos oriundos de todas as partes do Distrito Federal e do Brasil, que chegam ao Plano Piloto de Brasília justamente através da Plataforma. Hoje, transformada no ponto de convergência entre o centro urbano de Brasília e as Cidades Satélites do Distrito Federal, a Plataforma Rodoviária pode reassumir o vigor de suas funções urbanas, instaurando um novo caráter articulador de Brasília com a nova dinâmica de escala metropolitana que transcorre no território do Distrito Federal.

A Portaria nº 314/1992 do IPHAN, que instaura o tombamento de Brasília, se concentra nas questões e nos aspectos urbanos da concepção e da consolidação do Plano Piloto. No entanto, ao afirmar que "a Plataforma Rodoviária será preservada em sua integridade estrutural e arquitetônica original..." o tombamento atenta para sua importância na preservação da escala gregária do Plano Piloto, mas, além disso, também reconhece seu caráter sine qua non para perpetuar - como fato e como imagem - a construção do cruzamento dos dois eixos idealizados por Lucio Costa, e a inscrição de seu traçado definidor do desenho urbano da Capital no território do cerrado brasileiro, tal como se configurou originalmente.

Para que a Plataforma Rodoviária possa permanecer como fator articulador significativo das relações entre o território do Distrito Federal com Brasília, correlacionando a carga simbólica intrínseca ao capital simbólico da Capital do país, será imprescindível implantar medidas que estejam necessariamente vinculadas ao planejamento regional. Neste sentido, Michel de Certeau considera que "planejar uma cidade e ao mesmo tempo pensar a própria pluralidade do real e dar efetividade a este pensamento do plural: é saber e poder articular" (16). Por se tratar de uma cidade moderna, as questões urbanas de Brasília não podem ser consideradas apenas pelos instrumentos tradicionais de preservação relativos às cidades históricas. Sua proteção depende de uma visão de planejamento regional, cumprindo finalmente o que Lúcio Costa já evidenciara no Relatório do Plano Piloto: "a concepção urbanística da cidade propriamente dita [...] não será, no caso, uma decorrência do planejamento regional, mas a causa dele, a sua fundação é que dará ensejo ao ulterior desenvolvimento planejado da região". (17)

A constante de Brasília é ser a cidade-capital do Brasil e, ao mesmo tempo, representar um momento de conquista de valores, que consolidou altos ideais coletivos de perseverança e otimismo. A preservação de Brasília deve, paradoxalmente, operar com a manutenção da força espacial e simbólica original do Plano Piloto e considerar a dinâmica vivaz da cidade e do Distrito Federal. Brasília é uma cidade sonhada nos anos 50 e plenamente vivida no século XXI, em que a Plataforma Rodoviária concebida por Lucio Costa permanece, hoje, como o ponto gerador também de seus desígnios futuros.

notas

1
COSTA. Relatório do Plano Piloto. p. 20.

2
Idem, p. 22.

3
Idem, p. 22.

4
Idem, p. 24. Grifos adicionais.

5
Lucio Costa. Depoimento. s/p.

6
Idem.

7
Idem.

8
Nauro Esteves. Depoimento. s/p.

9
Idem.

10
Idem.

11
"Projeção": é assim que se denominam o terrenos do Plano Piloto.

12
Nauro Esteves. Depoimento. s/p.

13
COSTA. Registro de uma vivência, p. 316-317.

14
O Na Hora equivale ao Poupatempo no Estado de São Paulo e ao SAC no Estado da Bahia. Trata-se de um lugar em que é possível resolver inúmeras questões correlatas à burocracia cotidiana, desde pagar as contas de luz, até renovar o passaporte. Este posto do Na Hora tem boxes para a Secretaria da Fazenda, Def. Pública, Secretaria de Justiça, CAESB, CEB, PROCON, Ouvidoria, INSS, DETRAN e outros.

15
Estes e outros números foram extraídos do "Questionário Perfil. Público/estrutura da Rodoviária do Plano Piloto". Material fornecido pela Administração da Rodoviária do Plano Piloto. s/p, s/d.

16
CERTEAU. A invenção do cotidiano, p. 172. Grifos adicionais para termos originalmente em itálico.

17
COSTA. Relatório do Plano Piloto, p. 20.

referências bibliográficas

BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1981.

Cartilha de preservação de Brasília. Brasília, IPHAN-DF, 2007.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis, Vozes, 2008.

COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995.

COSTA, Lucio. Depoimento. Brasília, Arquivo Público do Distrito Federal, 1988.

ESTEVES, Nauro. Depoimento. Brasília, Arquivo Público do Distrito Federal, 1989.

FOUCAULT, MICHEL. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro, Ed. Forense Universitária, 1997.

FRAMPTON, Kenneth. História Crítica da Arquitetura Moderna. São Paulo, Martins Fontes, 1997.

GUIMARÃES FILHO, Augusto. Depoimento. Brasília, Arquivo Público do Distrito Federal, 1989.

Le Corbusier: 1910-65. Barcelona, GG, 2001.

LUZ, Clemente. Invenção da cidade. Brasília, Editora de Brasília,1967.

Questionário Perfil. Público/estrutura da Rodoviária do Plano Piloto. Administração da Rodoviária do Plano Piloto. s/p, s/d.

Relatório do Plano Piloto de Brasília. Brasília, GDF, 1991.

ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Arquitetura em transe. Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi: nexos da arquitetura brasileira pós-Brasília (1960-85). São Paulo, FAU-USP, 2007. Tese de Doutorado.

ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Brasília, 1959: a cidade em obras e o Congresso Internacional Extraordinário dos Críticos de Arte. Disponível no Portal Vitruvius: <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq111/arq111_03.asp>

STEVENS, Garry. O círculo privilegiado: fundamentos sociais da distinção arquitetônica. Brasília, EDUnB, 2003.

TAFURI, Manfredo. Teoria e história da Arquitectura. Lisboa, Editorial Presença. 1988.

agradecimentos

Administração da Plataforma Rodoviária de Brasília, Polícia Militar do Distrito Federal, Arquivo Público do Distrito Federal, Carlos Café & Horia Georgescu (Lab 606), Andrey Rosenthal Schlee e Sylvia Ficher.

sobre o autor

Eduardo Pierrotti Rossetti é arquiteto, doutor em arquitetura e urbanismo, Técnido do Iphan-DF, pesquisador–pleno e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília – FAUUnB

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