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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
A Desintegração da Paisagem é uma reflexão sobre a emergência do conceito conhecido como “paisagem” após o Renascimento e a sua gradual desintegração no mundo contemporâneo. Uma análise sobre a metamorfose do espaço ao longo dos últimos séculos

english
The Disintegration of Landscape is a reflection on the emergence of the concept known as “landscape” after the Renaissance and its gradual disintegration in the contemporary world. An analysis on the metamorphosis of space over the last centuries


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PIMENTA, Emanuel Dimas de Melo. A desintegração da paisagem. Filipe II, Petrarca e os Astronautas. Arquitextos, São Paulo, ano 11, n. 122.09, Vitruvius, jul. 2010 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.122/3481>.

"As pessoas deveriam conhecer o Universo como uma estrada, como muitas estradas, como estradas para almas viajantes. (Walt Whitman)

Estamos caminhando no sentido de um mundo numa escala planetária (…) Eu não mais pertenço a este mundo. O mundo que conheci, o mundo que amei, tinha 1,5 bilhões de pessoas. O de hoje tem 6 bilhões. Não é mais o “meu” mundo. Para mim, atualmente, há um “Eu” real que não é mais que um quarto ou talvez a metade de um ser humano, e um “Eu” virtual que conserva a ideia do todo." (Claude Lévi-Strauss)

Vou contar algumas histórias. Porque, inevitavelmente, qualquer um que trate seriamente de paisagem, também estará lidando com uma história.

Não se trata, evidentemente, do conteúdo de uma história, mas sim da história enquanto tecnologia civilizatória.

A primeira história trata de Filipe II da Macedônia, amigo de Aristóteles, pai de Alexandre o Grande.

Conta-se que Filipe, que viveu entre 382 e 336 aC, realizou uma legendária escalada ao alto de uma montanha, com o objetivo de descobrir um local de onde fosse capaz de ver simultaneamente o mar Egeu e o mar Adriático, podendo controlar simultaneamente todos os movimentos militares na região.

Mas, aquela escalada, para além das consequências militares, terá mudado radicalmente a sua vida pessoal. Durante séculos, a subida de Filipe ao monte Hemus, hoje conhecido como parte da cordilheira dos Balcãs, foi envolvida em mistério.

A legendária subida de Filipe II ao monte Hemus terá sido, certamente, o evento do gênero mais importante da Antiguidade, tendo permanecido durante séculos no imaginário das pessoas como uma espécie de conquista da consciência humana, como notável transformação na estrutura do saber.

Não se tratou da subida ao Olimpo, lugar dos deuses. Filipe II não se aproximou dos deuses como inevitavelmente fariam os reis antes dele, mas pode, como certamente ninguém até então pudera, olhar para os seres humanos no seu conjunto, tornando-se com isso ainda mais humano.

Foi a visão omnipotente de um rei sobre o mundo – mas não de um rei divino.

Mais tarde, Tito Lívio negaria a veracidade histórica daquele acontecimento, contra a posição do cosmógrafo Pomponius Mela – que escreveu cerca de vinte e cinco anos após a morte do célebre historiador Romano.

É assim que Petrarca começa a sua célebre carta, presumivelmente escrita no Monte Ventoso, declaradamente no dia vinte e seis de abril de 1336, ao seu grande amigo, o padre Dionigi Roberti, da localidade Borgo de San Sepolcro, próximo da cidade de Florença.

E é com Francesco Petrarca que começamos, todos nós, a segunda história.

Alguns estudiosos consideram que Petrarca provavelmente reuniu e organizou a sua própria correspondência a partir de uma notável descoberta feita em Verona no ano de 1345, quase dez anos após a sua proclamada subida ao Monte Ventoso: um manuscrito com as cartas de Cícero.

A descoberta das cartas de Cícero no século XIV, quase mil e quinhentos anos após terem sido escritas, desencadeou uma generalizada onda de admiração criando um novo valor para os diálogos epistolares.

A natureza das cartas – manifesta na correspondência de Cícero – então tomada como conteúdo do meio literário, terá sido o impulso essencial para Petrarca reunir as suas próprias e, possivelmente, até elaborar algumas – pois apenas as cartas dizem realmente a verdade, somente elas são participantes íntimas dos acontecimentos, apenas nelas as interpretações do escritor são elementos fundamentais da ação, do fenômeno, do acontecimento.

Há então, com Petrarca, para usar a célebre expressão de Walter Benjamin, dois saltos de tigre ao universo de Roma – a Filipe II, que anuncia Roma; e a Cícero, que foi indissolúvel parte do seu núcleo.

Gradualmente, a partir de Petrarca e do Renascimento, a história de Filipe II foi se apagando da memória coletiva. Também assim, poucas pessoas no início do século XXI conheciam a de Petrarca.

Contava-se que a perturbação provocada pela visão da Humanidade, das pessoas e cidades, do alto da montanha, fazendo-o consciente da sua dimensão enquanto indivíduo fora tal que o grande poeta teria cometido erros gramaticais a partir do momento em que descrevia o seu choque.

Algumas centenas de anos mais tarde, já em pleno século XIX, o genial Jacob Buckhardt chegaria a considerar, no seu magnífico Die Kultur der Renaissance in Italien, que a carta de Petrarca teria sido a primeira descoberta da paisagem – “Petrarca conhece já a beleza das formações rochosas e sabe muito bem separar numa paisagem o significado pictórico e a sua utilidade”.

Pode-se argumentar que já existiam cenas de paisagem feitas muito antes daquela época, e até mesmo na pré-história, como pode servir de notável exemplo o caso da representação da erupção de um vulcão encontrada em Çatal Hüyük e datada de cerca de 6150 aC.

Mas, então, o elemento fundamental daquilo que constituiu o conceito moderno de paisagem – a diversidade do panorama direcionada a uma única singularidade: o observador – ainda não acontecia.

O que temos em Çatal Hüyük, por exemplo, é uma espécie de diagrama com o aparente objetivo de representar um acontecimento específico.

O mesmo acontece com a célebre cena da caçada de Tutankamon, datada de cerca de 1340 aC.

O objeto da verdadeira paisagem é o observador, nunca o seu conteúdo histórico.

Petrarca começa a carta exatamente com a história de Filipe II da Macedônia e a polêmica entre Tito Lívio e Pomponius Mela.

Ele descreve a dificuldade em encontrar um companheiro para a aventura. Todas as pessoas lhe pareciam exageradas em algum sentido, sem o ideal do equilíbrio como era defendido por Aristóteles, amigo de Filipe II.

Por fim, escolhe Gherardo, seu irmão mais novo.

No início da subida, depararam-se com um velho pastor que os aconselhou vivamente a desistir. Contou que ele mesmo tinha sucumbido ao fascínio da montanha quando jovem. Desde então, nunca mais fora o mesmo.

Estava definitiva e irremediavelmente transformado. Ninguém poderia voltar ileso de uma experiência daquelas.

Petrarca e Gherardo não deram atenção ao velho homem e continuaram, acompanhados de duas outras pessoas, a temerária expedição.

Quando está no alto, diante da maravilha da paisagem, Petrarca reflete sobre as suas próprias transformações pessoais tendo a si próprio como uma entidade individual soberana: “...quantas mudanças, e que mudanças, no teu comportamento!” – é o poeta falando a si mesmo, como terceira pessoa.

Extasiado, vai descrevendo o que vê: “vê-se nitidamente à direita os montes da província de Lion, e à esquerda o mar que banha Marselha... o Ródano estava sob os nossos olhos” – lembrando vivamente William Shakespeare quando, no Rei Lear, Edgar chama Gloucester:

“Venha senhor; aqui é o lugar; - fique quieto
– Como é aterrador
E estonteante olhar aquelas profundezas!
Os corvos e as gralhas voando ali no ar,
Parecem pequenos como besouros: à meia encosta
Alguém está pendurado colhendo perrexil – ofício terrível!
Penso que não é maior do que a sua cabeça:
Os pescadores, que caminham na praia,
Parecem camundongos; e lá embaixo um barco ancorado,
Parece tão pequeno como o seu bote, e o bote uma bóia
Quase tão pequena para se ver: o murmúrio das vagas,
Que se chocam contra os estéreis seixos,
Não podem ser ouvidos de tão alto. – Não vou olhar mais,
Para que o meu cérebro não tenha vertigens, e a fraca vista
Não me faça cair de cabeça para baixo.”

Gloucester está cego e Edgar constrói essa formidável cena tridimensional, uma verdadeira paisagem, tentando convencer o amigo para que não continue a sua caminhada.

Petrarca se lança, então, ao livro X das Confissões de Santo Agostinho: “Os seres humanos não deixam de admirar o alto das montanhas, o amplo movimento das ondulações do mar, os largos caminho dos rios, o oceano que lhes recebem, o curso dos astros; mas, esquecem-se de examinar a si próprios”.

E o grande poeta Italiano conclui: “Decidi, já tendo admirado suficientemente a montanha, voltar a minha atenção para mim mesmo”.

Aparentemente, a carta terá sido redigida ou corrigida anos mais tarde. Alguns colocam em dúvida se a subida ao Monte Ventoso terá realmente acontecido, ou se terá sido apenas uma simples alegoria ao percurso da ascensão de Agostinho.

Jérôme Vérain coloca em dúvida a veracidade do acontecimento, questionando-se como Petrarca poderia ter feito o percurso num único dia, tal como é descrito na carta, se a distância da vila de Malaucène, onde o poeta se encontrava, e o cume do Monte Ventoso, com partes de difícil percurso, dista cerca de vinte quilômetros.

Considerando que a carta pode ter sido corrigida anos mais tarde, a precisão temporal se torna relativamente desprezível. Assim, outros estudiosos consideram que Petrarca realmente subiu ao Monte Ventoso e lá registrou os seus pensamentos fundamentais, depois traduzidos em carta.

Uma das ideias fundamentais acerca dessa ascensão é a de que uma pessoa muda quando a sua escala de informação é alterada.

A outra ideia essencial é que uma pessoa apenas percebe que isso acontece quando o fenômeno já ocorreu.

Quando Petrarca subiu ao Monte Ventoso, tal como o velho pastor tinha anunciado, muitas pessoas passaram a considerar que o próprio poeta não era mais o mesmo. Tinha se transformado. Teria se transformado numa outra pessoa. Informações sobre essa possível transformação, tantas vezes pertencentes à memória oral, perderam-se no tempo, provavelmente tal como aconteceu com o que se terá dito de Filipe II.

Mas, durante anos, estudei com o compositor Hans Joachim Koellreutter, cuja linha direta de mestres o lançava diretamente a Jacob Buckhardt.

Koellreutter contava o que lhe tinha sido transmitido oralmente, ainda conhecimento comum na Europa do início do século XX: Petrarca voltara transformado, definitivamente perturbado, já não era a mesma pessoa.

No início do século XXI poucas pessoas se lembravam de algo que era comum nos anos 1960 e 1970, e que eu presenciei em diversos países: a crença quase generalizada de que aquele que fosse para o espaço voltaria com problemas mentais, inevitavelmente.

Contavam-se histórias de astronautas que tinham se tornado completamente insanos no retorno à Terra. Nos anos 1960 e início dos 1970 haviam relatos populares dando conta de suicídios, acessos de loucuras e todo o tipo de insanidade mental entre os astronautas retornados à Terra. Eram rumores que, apesar de falsos, revelavam algo mais.

Essa é a terceira história.

Por que Filipe II, Petrarca e os astronautas supostamente mudaram? Ou: por que aquilo que envolveu a sua subida numa altitude diferente, diante de uma avassaladora paisagem, foi considerado como uma mudança de estruturação do pensamento?

Walter Benjamin dizia no seu pequeno ensaio A Distância e as Imagens: “Não se alimentará a complacência no mundo das imagens de uma obstinação sombria contra o saber? Contemplo a paisagem: o mar está na sua baía puro como um espelho; os bosques sobem como imagens imóveis, mudas, até ao cume das montanhas; ali acima, desmoronadas ruínas de castelos, tal como já estavam há séculos; o céu brilha sem nuvens num eterno azul. Assim o sonhador o quer”.

O sonhador como o não pensador, aquele que viaja guiado pelas não domesticáveis e incontroláveis imagens do sonho.

Assim, o pensador é aquele que domestica as ideias, conferindo uma ordem especializada, um grau de diferenciação estável. Daí as antigas raízes das palavras mente e homem terem surgido do indoeuropeu *ma, que indicava a ideia de medir.

Nas três histórias – Filipe II, Petrarca e os astronautas – não temos o sonho de Walter Benjamin, mas a avassaladora tensão entre o ser e o não ser.

As três histórias nos revelam elementos comuns. As três se tornaram, por mais ou menos tempo, mitos relacionados à mudança de estruturas de pensamento. As três indicam uma mudança de escala na informação e uma mutação na sua configuração. E as três possuem uma espécie de ligação ao nível tecnológico.

Quando Filipe II subiu ao monte Hemus, a Grécia já tinha sido relativamente inundada pela produção de papiro vindo do Egito – um meio mais flexível e mais leve que o pergaminho. A afluência de papiro, e com ele um exercício especializado da visão, produziu não apenas Platão e Aristóteles, mas também Sólon, Eurípedes, Aristófanes, Tucídides, Ésquilo, Sófocles, Píndaro, Hipócrates ou Demóstenes.

Quando Filipe subiu ao Hemus, a antiga Grécia estava no seu final. Mas também era o anúncio de Roma, o fim do sonho Grego.

O início da importação de papiro pela antiga Grécia aconteceu em cerca de 1200 aC, numa lenta e gradual evolução, sedimentando Homero, cunhando o universo pré-Socrático e lançando as bases para uma futura derrocada dos Estados Nação e para a emergência de Roma.

A razão da imensa importância do uso do papiro na emergência e dissolução de estruturas sociais se deve à sua natureza simbiótica com a escrita e, mais especialmente, com a escrita do alfabeto fonético.

Quando escrito, o alfabeto fonético estabelece como elemento fundamental para a sua leitura e compreensão um exercício de movimentos sacádicos oculares que combina a visão central e a periférica em varreduras lineares e por conjuntos de informação.

Algo semelhante acontece quando estamos sendo transportados em velocidade numa linha reta. Por isso, a invenção da roda coincide com a das primeiras escritas na Suméria.

Esse exercício implica a sístase e estabelece um quadro de forte hierarquia na sua estrutura, que conhecemos como predicação.

Sístase significa tomar tudo num único lance. Essa expressão, indicando uma abordagem sensorial simultânea, foi elaborada pelo filósofo Polonês Jean Gebser, antigo amigo e colaborador de Carl Gustav Jung.

Gebser definia a sístase como sendo “a conjunção ou encaixe das partes numa integralidade... um processo onde as partes se fundem ou são fundidas no todo”.

A palavra sístase era frequentemente utilizada pelos gnósticos medievais, com o sentido de união mística, de totalidade transcendental.

A sua raiz etimológica indoeuropeia *s indicava a ideia de “ligação” – e daí as palavras ser e similaridade partilharem a mesma origem.

Sístase é a condição essencial da visão e também da pele enquanto sistemas sensoriais.

Associada à paralaxe, a sístase gera um complexo lógico semelhante, de alguma forma, à tecnologia da perspectiva plana. Conforme um observador se desloca numa linha reta em velocidade, a estrutura do campo visual articula velocidades diferentes de deslocação dependendo da profundidade, fenômeno conhecido como paralaxe; então, os seus movimentos sacádicos têm de combinar em rápida alternância a visão central, sensível à cor e à forma, e a visão periférica, orientada para o movimento e a luz.

Assim, o observador se torna ponto de fuga de toda a estrutura sensorial. Quando o observador emerge como ponto de fuga, ele se torna indivíduo. Por isso tratamos de Filipe II e de Petrarca, dois indivíduos.

Um tal estrutura lógica é o que caracteriza a história enquanto tecnologia – um sistema de encadeamento causal numa estrutura polar fortemente hipotática.

A palavra história surge das raízes indoeuropeias *wid e *tôr. Enquanto que *wid nasce de *weid, que significava ver e que passou quase diretamente ao Grego eidos; *tôr indicava a ideia de movimento entre dois pontos. Assim, a soma de *wid e de *tor, na formação da palavra história, apontava originalmente para a ideia “daquele que se move no sentido da visão, do que se vê”.

A tecnologia da história está profundamente relacionada com a visão, mas ainda mais especialmente com um muito especial, especializado e sistemático uso dela.

Por isso, a história – tal como convencionamos – surgiu na antiga Grécia, e não antes. Ela necessitou de milhares de anos de intensificação do uso da visão através dos vários tipos de escrita e do papiro.

Ao longo de milhares de anos, a partir da Mesopotâmia, essa estrutura lógica fortemente predicativa foi se intensificando, especialmente a partir do surgimento do papiro.

Quando, em cerca de 1200 aC, o papiro começa a ser introduzido na Grécia, o seu uso cada vez mais intensivo estabelece a estrutura das Cidades Estado, que coincide com uma determinada escala daquele complexo lógico. Mas, quando o uso do papiro ultrapassa um determinado limite, a interação entre as pessoas, mais individuais, desintegra aquele modelo de Cidades Estado e desencadeia o que se tornaria o Império Romano.

Filipe II está na fronteira entre dois mundos – o Grego e o Romano. Ele vive o momento em que o uso intensivo do papiro implicará a desintegração das Cidades Estado Gregas e a emergência do centralizado universo Romano.

Da mesma forma, Petrarca vive o momento de grande intensificação do uso do papel na Europa, anunciando o final da Idade Média e a emergência do Renascimento com a perspectiva plana, as viagens intercontinentais e a imprensa de Gutenberg entre outras invenções e descobertas.

Petrarca é testemunha do fim da realidade medieval.

Aquilo a que chamamos de paisagem só pode acontecer com movimento. Mesmo aquele que se julga parar diante de um fabuloso panorama, olha para todos os lados, mede a profundidade, a escala, e a toma como um todo.

É a aparentemente paradoxal conjunção entre o tomar tudo num único lance e o movimento, o que forma a paisagem.

A expressão paisagem, de origem Latina, surgiu da palavra indoeuropeia *pag, que significava enterrar, cravar, fixar algum marco. A sua raiz indoeuropeia *p indicava a ideia de purificação – e nela se encontra a origem remota das nossas palavras pureza, país e pacto.

Para o universo indoeuropeu a ideia de pureza era condição fundamental para se alcançar a imortalidade. A pureza dos alimentos evitava doenças, assim como os banhos e, portanto, significava vida. Assim, a limpeza do corpo e dos alimentos era relacionada à não-morte, à não-degeneração. Por isso, a palavra pai também surge do indoeuropeu *p, pois era ele o responsável pelos rituais de purificação, de limpeza, na comunidade.

É curioso, para dizer o mínimo, ter a origem da palavra paisagem fundamentada no princípio da purificação. Não será essa uma referência profunda e velada ao que Walter Benjamin chamou de sonho?

Quando Petrarca descrevia a sua visão sobre o Monte Ventoso não usava a expressão paisagem, pois ela ainda não existia. A palavra paisagem apenas surgiria no século XVI.

Ela surge como direta referência àquele que vive no campo, o camponês, o paysan, mais tarde também o peão. É a imagem do seu mundo. O mundo camponês tomado enquanto conteúdo. Um fenômeno que emerge num mundo feito de grandes distâncias.

Por outro lado, a palavra inglesa landscape é formada pela fusão de duas palavras. A primeira, land, terra em inglês, surgiu do indoeuropeu *lendh. A raiz indoeuropeia desse antigo étimo, o *l indicava a ideia de libertação. Terra e liberdade ligadas numa única raiz.

A outra palavra é scap que significava, no holandês arcaico, navio.

Assim, landscape é a imagem da terra que se tem quando se vê de um navio.

Tomada de empréstimo aos pintores holandeses que inauguravam um novo estilo de pintura, a palavra landscape, registrada pela primeira vez em 1598, apenas seria incorporada como expressão oficial em 1603.

No seu início a palavra holandesa landschap significava originalmente apenas “pedaço de terra”.

Não é de admirar que essa fusão entre terra e navio como indicação de uma abordagem visual especializada tivesse surgido nos Países Baixos.

Filipe II viveu no século IV aC, antecipando Roma e as suas célebres pinturas parietais, especialmente em Pompeia, muitas delas como motivos paisagísticos, mesmo que o conceito de paisagem propriamente dito ainda não existisse. Não eram, portanto, paisagens totalmente livres.

Quando Roma perde o controle sobre a produção de papiro em Alexandria, o Império se desintegra gradualmente.

Santo Agostinho, que viveu entre os séculos IV e V, testemunhou aquela desintegração e apontou criticamente para aqueles que se esqueciam de se “examinar a si próprios”. Agostinho foi um derradeiro e nostálgico sonhador literário, buscando resgatar um mundo que se desmoronava à sua volta, onde o indivíduo tinha cada vez menos valor.

Petrarca está numa posição especularmente inversa em relação a de Agostinho.

Aquilo que aspirava ser paisagem em Roma, simplesmente desapareceu nos séculos seguintes.Ela voltará à cena, ainda que timidamente no início, apenas à época de Petrarca e, mais especificamente, exatamente um ano antes da subida do poeta ao Monte Ventoso, em 1335, com Ambrogio Lorenzetti – ou Ambruogio Laurati – que é considerado como o primeiro pintor dedicado à paisagem.

Lorenzetti, que nasceu em 1290 e morreu em 1348, era apenas quatorze anos mais velho que Petrarca. Ambos eram de cidades próximas – Lorenzetti de Siena, Petrarca de Arezzo.

De toda a forma, a questão já era importante na época, como atesta um célebre afresco de Giotto na Igreja de São Francisco, em Assis, na Itália, feito entre 1297 e 1299 – quando Lorenzetti era criança!

Cerca de cem anos após a morte de Lorenzetti, Johannes Gutenberg se tornaria no responsável por uma das mais revolucionárias invenções de sempre: a imprensa de tipos metálicos móveis.

A imprensa de Gutenberg significou uma fabulosa aceleração naquele processo. Em pouco tempo milhares de pessoas passaram a exercitar a visão de uma forma especial cada vez mais horas por dia.

Se tomarmos cada pessoa como elemento isolado, um indivíduo isolado, tal como indicava o princípio lógico estabelecido pela fusão do alfabeto fonético e meios como o papiro e o papel, a imprensa de Gutenberg pouco representaria num processo de transformação de estruturas mentais. Mas, se cada indivíduo está ligado a outro, formando uma ideosfera, então o papel da imprensa de tipos móveis como um poderoso catalisador sinergético é notável, ampliando explosivamente o novo quadro mental.

Ainda assim, terão sido necessários cerca de cinquenta anos de intensificação e aceleração produzida pela imprensa de Gutenberg para que surgisse Joachim Patinir, considerado como o primeiro pintor dedicado quase que exclusivamente à paisagem.

É quando nasce a palavra paisagem e surgem os primeiros pintores paisagistas.

Joachim Patinir – que também era conhecido como Patinier ou Patiner – nasceu em 1480, cerca de quarenta anos após a invenção de Gutenberg, em Dinant ou Bouvignes, na Bélgica, e morreu em 1524. Aos trinta e cinco anos, mudou-se para Antuérpia, que tomou como lugar para o resto da vida. É a partir da sua mudança para Antuérpia, então importante centro de comércio, que a sua pintura se torna fortemente voltada para a paisagem.

Albrecht Dürer era muito seu amigo, chegando mesmo a pintar o seu retrato em 1521. Ele dizia que Patinir era der gute Landschaftmaler – um bom pintor paisagista, criando o neologismo que seria rapidamente traduzido para o francês.

Não sabemos a que ponto Dürer terá influenciado Patinir. Mas, a sua célebre Italian Mountains, datada de 1495, dez anos antes de Patinir se estabelecer em Antuérpia fornece alguma interessantes pistas.

Acredita-se que Patinir tenha sido tio do pintor maneirista Herri met de Bles. Ambos acabaram por ser responsáveis pela institucionalização da pintura paisagística.

Ambos estabeleceram as condições para que pudessem surgir Jan van Goyen e Nicholas Poussin entre tantos outros célebres pintores paisagistas.

Infelizmente, atualmente restam apenas cinco quadros assinados por Patinir.

Hieronymus Bosh, que viveu entre 1450 e 1506, portanto trinta anos mais velho que Patinir, também foi influenciado por Dürer. Mas, a sua fascinante obra estava para além da construção da paisagem.

Cerca de vinte e cinco anos após a morte de Patinir, Pieter Bruegel o Velho realizaria as primeiras paisagens livres de qualquer referência para além de si mesmas.

E, depois de Bruegel, Peter Paul Rubens.

Mas, há ainda outra história, anunciando a dissolução de si própria.

No século XVI, quando surgia a pintura paisagística, emergia a palavra ambient no inglês, e ambiant no francês, significando a ideia do entorno de um lugar específico, de um compartimento especializado, de natureza física.

Quatrocentos anos mais tarde, no século XIX, apareceria a palavra ambiance – tanto no francês como no inglês – indicando o conceito de ambiente não apenas no seu sentido físico, mas imaterial como, por exemplo, a ideia de um ambiente social, ou ambiente intelectual e assim por diante.

Tal como ambient, a palavra ambiance também lança o seu significado etimológico na expressão ambi, que indica a ideia de circularidade, e no indoeuropeu *i que indicava a ideia de seguir para algum lugar e que passou quase que diretamente para a palavra Latina ire – significando na sua fusão caminhar em torno de algo.

Por outro lado, o radical indoeuropeu *an e o termo *ambhi, gerador da expressão ambi, indicavam a ideia de sopro.

Assim, ambiance significa, na sua raiz, algo cercado como por um sopro.

Por outro lado, a palavra environment surge do francês medieval environner, que se tornou environ em 1350, época de Petrarca, significando algo em torno de um objeto.

Apenas em 1665 é que a palavra deixou de significar algo em torno de um objeto e passou a indicar as áreas em torno de uma cidade.

E somente em 1827, através das obras do escritor e historiador Thomas Carlyle é que a palavra environment passou a significar as condições que afetam um ser vivo.

O século XIX assistiu a descobertas e invenções como a fotografia, o telefone, a rádio, o cinema, a eletricidade que, de uma ou de outra forma, podem ser consideradas como o embrião de um processo de desmaterialização da cultura material.

Assim, as palavras environment e ambiente, nos sentidos que utilizamos no início do século XXI, surgiram no século XIX.

Temos, então, os astronautas e os rumores de que voltarão sempre loucos, transformados.

O surgimento do cinema, inicialmente em preto e branco, fazia uso intensivo da visão periférica. Para se penetrar num filme, é necessário focalizar cerca de um metro para além da tela, o que significa dizer – é necessário saber como liberar a visão periférica para um fluxo central de imagens.

Quando o cinema se tornou a cores, ele passou a obrigar a um maior envolvimento da visão central, obrigando a uma nova aprendizagem.

Mas, logo surge a televisão, e a frequência de varredura dos tubos catódicos passa a substituir os movimentos oculares sacádicos no estabelecimento da forma. Assim, a televisão se revelou um meio fortemente hipnótico e frio.

A televisão produziu uma outra inversão: ela concentra na visão central, especialmente em torno da região da fovea centralis, uma imensa quantidade de movimento e luz, invertendo o funcionamento normal do aparelho ocular.

Assim, gradualmente, a paisagem começou a desaparecer no final do século XX.

Ainda que tenhamos uma figura como Ansel Adams, a paisagem passou a ser considerada como algo fácil, comum a todos, onde basta apenas estar com uma câmera fotográfica. Mas, o conceito original da paisagem é sempre construção!

Gradualmente, a paisagem se transforma em ambiente, anunciando o provável fim de um dado da consciência.

Quando John Cage compõe o seu Imaginary Landscape nº1 em 1939, trata-se de música e não de algo visual. E o som, pela sua própria natureza, é muito mais coerente com os princípios de ambiente do que de paisagem.

Se tivermos em atenção como os movimentos oculares sacádicos acontecem, poderemos ter uma ideia clara desse processo de metamorfose.

A articulação sacádica, quando da leitura de um texto no período literário, é designada por movimentos lineares e por blocos. Na era do ciberespaço aqueles movimentos operam de uma forma totalmente diferente, formando nuvens de atenção.

Assim, o surgimento dos computadores pessoais evidenciou a grande metamorfose anunciada pelos falsos rumores sobre a sanidade mental dos astronautas no seu retorno à Terra.

Não apenas a frequência da tela dos computadores interage e substitui em parte os movimentos sacádicos, como os redesenham.

Se, antes, a roda e o movimento retilíneo, a paralaxe, tinham estabelecido uma estrutura lógica que encontra referência direta na estrutura da leitura de um texto; agora, os movimentos sacádicos passam a obedecer a uma organização de natureza totalmente diferente.

Os olhos passam a percorrer áreas mais vastas, num processo aberto, instável, eliminando o ponto de fuga virtual que caracterizou a literatura ao longo dos séculos.

A mudança da estratégia do fluxo da visão mostra uma transformação na forma do pensamento, estabelecendo uma condição na qual a consciência da paisagem tenderá a desaparecer, a ser desintegrada.

Mas, essa metamorfose não está restrita à leitura do texto escrito.

Tal como os fones de ouvido inverteram a audição estereofônica – com eles, os sons passam a ser ouvidos dentro da cabeça e não no exterior, num curioso fenômeno neuronal – também a Realidade Virtual inverteu a paisagem, tornando-a interior e não exterior.

Para completar a história, temos o fenômeno do tempo real – que acontece pela primeira vez na história da Humanidade, estabelecendo uma revolução sem precedentes: ele eliminou a distância física em termos de informação e tornou o planeta como conteúdo de si próprio, fazendo emergir os chamados movimentos ambientalistas.

Essas transformações sensoriais revelam a emergência de um novo universo civilizatório, para o qual a paisagem poderá praticamente desaparecer, ou ser incorporada como ocorrência menor, lentamente apagada das nossas memórias.

Tudo se transforma, rapidamente, em ambiente, tornando-se envolvimento total, como um sopro em torno de algo, como uma caça em ação.

Isto é, uma história para acabar com todas as histórias.

Sonho e paisagem que nos fazem lembrar um poema do genial Fernando Pessoa:

“Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,

E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...”

sobre o autor

Emanuel Dimas de Melo Pimenta é arquiteto, urbanista e compositor musical. Vive em Locarno, Suíça, e tem mais de cinquenta livros publicados – entre edições em papel e eletrônicas. Seu site é www.emanuelpimenta.net

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