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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O artigo faz uma análise comparativa dos estudos para o projeto do Grand Hotel de Ouro Preto: desde o neocolonial de Carlos Leão (1938), passando pelas variantes modernistas de Oscar Niemeyer (1939), até o projeto definitivo (1940)

english
The article develops a comparative analysis on the project for the Grand Hotel Ouro Preto: from the neocolonial project by Carlos Leão (1938), through the modernist version by Niemeyer (1939) until the ultimate project (1940)

español
El artículo hace una análisis comparativa de los proyectos para el Grand Hotel Ouro Preto: del proyecto neocolonial de Carlos Leão (1938), a la variación modernista de Niemeyer (1939), hasta el proyecto definitivo (1940)


how to quote

COMAS, Carlos Eduardo. O passado mora ao lado. Lúcio Costa e o projeto do Grand Hotel de Ouro Preto, 1938/40. Arquitextos, São Paulo, ano 11, n. 122.00, Vitruvius, jul. 2010 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.122/3486>.

Projeto neocolonial e projeto moderno

A construção dum hotel de turismo em Ouro Preto é iniciativa do prefeito Washington Dias em 1938, com o apoio de Rodrigo Mello Franco, diretor do Sphan recém criado. Rodrigo confia o projeto a Carlos Leão, assessor técnico do órgão e membro da equipe de arquitetos do Ministério de Educação. O Estado cede terreno na Rua das Flores, ladeira ligando a Casa dos Contos ao antigo Palacio do Governador. O terreno é uma encosta de morro. A área menos desfavorável à construção tem uns 3000 m², triângulo retângulo de cantos chanfrados cuja hipotenusa é a testada sul, o cateto menor é a divisa com a Casa dos Contos vizinha e o cateto maior uma cota de nível.

Leão regulariza a topografia complicada com aterros e muros de arrimo. Propõe um edifício neocolonial de alvenaria de tijolos à volta de pátio retangular, sobre base de pedra.uns três metros acima do extremo mais alto da testada. O andar térreo inclui hall e portaria na esquina sul, bar e estar na fachada sudoeste, restaurante na sudeste e serviços na nordeste. As alas menores do segundo andar são paralelas ao cateto maior e tem quatro apartamentos de dois quartos, sala e banheiro voltados para noroeste. As alas sudoeste e nordeste são paralelas ao cateto maior e menos extensas no terceiro andar para gerar uma silhueta escalonada; tem corredores internos e sessenta e dois quartos, dos quais trinta flanqueiam banheiros e podem constituir quinze apartamentos. As escadas ficam nos cantos dos corredores. Da esquina sul do bloco e em nível com o passeio arranca um vestibulo de dupla altura, contendo escada para a portaria. À sua direita, uma escada externa conduz aos serviços. Entre a Casa dos Contos, o Hotel e a rua, sobra triângulo ocupado com outra escada e plataformas de pedra, a mais alta adossada ao estar. Não há acesso veicular ao terreno.

Em 5 de dezembro de 1938, Rodrigo escreve ao ministro Capanema anunciando promessa do Presidente de financiar metade do custo da obra. Em 23, Dias solicita de Rodrigo um orçamento, concluido uma semana depois. Mas em 12 de janeiro de 1939, Dias acusa recebimento de carta de apresentação de Oscar Niemeyer firmada por Rodrigo. Em telegrama e carta de 23 de março para Rodrigo, Dias registra a aprovação unânime de todos que viram a maquete de projeto elaborado por Oscar. E diz que “a algum que fazia qualquer objeção sobre o estilo repetia as palavras que decorei de tanto ouvi-lo falar em Belo Horizonte”.

A réplica moderna de Oscar é uma barra de estrutura independente de concreto com três fileiras de colunas, lajes de piso e cobertura em balanço, teto gramado e projeção retangular com uma ponta chanfrada do lado do Palácio. A fachada nordeste se alinha com o cateto maior e tem dezoito intercolúnios, a fachada oposta tem vinte, sua extensão ecoando a do Palácio acima. A ponta chanfrada tem quatro andares, acolhendo a circulação social, sala de jogos térrea e portaria no primeiro andar. A ponta próxima da Casa dos Contos, mais funda, acolhe a circulação de serviço, lavanderia em subsolo ou acima de doca de carga escavada um nível abaixo, a cozinha no nível da sala de jogos, terraço e salão do restaurante no nível da portaria. Um painel divide o espaço entre cozinha e salão de jogos em pórtico e área de recreação coberta, contígua a pequeno platô na encosta. Recria-se a situação do vazio entre dois sólidos já vista no Ministério da Educação e no Pavilhão Brasileiro da Feira de Nova York. Do lado do restaurante, parte do vazio a escada perpendicular à fachada que leva ao seu terraço; do lado da portaria, sob o balanço, a rampa paralela à fachada que leva à entrada principal. Entre portaria e restaurante se introduz a galeria de estar, arranjo binuclear análogo ao da cobertura do Ministério. O vazio tem em parte pé-direito duplo, e a colunata aí é colossal, retomando outro elemento do Ministério e do Pavilhão. Como neste, o mecanismo da “planta livre” se exterioriza, acusando a independência entre laje, suporte e vedação.

As colunas continuam afastadas das paredes nos dois últimos andares. Apartamentos normais correm aí ao longo da encosta, vinte e dois de solteiro, seis de casal. Apartamentos duplex tem sala de pé-direito duplo e sacada para a rua, banheiro interno e quarto para a encosta um andar acima; dezesseis unidades tem um quarto, uma unidade é de dois quartos. A secção engenhosa prescinde de elevador e resulta em empena escalonada do lado da Casa de Contos, ático recuado do lado do Palácio e frente à rua, simplicidade no fundo.

A fachada para a rua é coroada pelo plano horizontal das venezianas corridas das sacadas e pelo plano horizontal recuado das esquadrias das salas. Não registrada a congruência das projeções de lajes e rampa de acesso, o bloco de apartamentos aparece superposto a um pilotis que define um corpo virtual recuado; volume de serviço e rampa de acesso são incidentes periféricos numa estratificação horizontal. Reconhecido o plano virtual definido pela congruência assim como a substituição da alvenaria rebocada por pedra aparente na empena abaixo do restaurante e o recuo da vedação do salão de jogos na ponta oposta, a colunata de ordem colossal ao centro engaja a atenção. A fachada parece oscilar entre uma organização tripartita vertical e uma organização tripartita horizontal. No primeiro caso, dois volumes verticais virtuais flanqueiam um centro afundado, o bloco de apartamentos operando como entablamento. No segundo caso, o corpo da edificação inclui tanto o volume dos balcões quanto o andar nobre da portaria e salão do restaurante, sobre uma base.incluindo o térreo e os volumes de serviço. O vazio central parece resultar de remoção de material que revela a penetração do corpo pela base. O recuo correspondente ao terraço do restaurante produz sensação similar, com o efeito adicional de impulsão para baixo de parte do corpo – que se relaciona aos vetores inclinados da rampa e do gradiente do terreno triangular entre a rua e o hotel. A obliquidade planialtimétrica desse átrio tensiona a ortogonalidade dominante, ajudado em primeiro plano pelas curvas dos muros de arrimo e do caminho rampado de acesso veicular interno. A pedra nos muros dá um toque de rusticidade, como na Casa Mathes e nos apartamentos da Porte Molitor, a ordem colossal remete à associação antiga do grande hotel com o palácio.

O confronto do neocolonial e do moderno

A lotação é aproximadamente 10% maior na proposta de Leão e seus apartamentos são mais flexíveis – mas a de Oscar tem menos corredor e mais banheiros, incorpora o veículo, é mais econômica no trato da topografia. As desvantagens do pastiche são intrínsecas ao partido adotado, as da proposta moderna não. O partido moderno é pragmaticamente superior, mas a correspondência sugere que a rejeição do projeto neocolonial tem base numa argumentação sobre estilo.

Cabe creditá-la à Lucio Costa, promotor da arquitetura moderna mas também consultor do Sphan e amigo de Rodrigo. Lucio deixara o país no inicio de 38 para fazer com Oscar o projeto do Pavilhão Brasileiro na Feira de Nova York. Ou não tomara conhecimento do problema do Hotel ou estava muito ocupado para prestar atenção, situação que muda ao voltar em setembro, três meses antes da chegada do parceiro. Em memorando manuscrito não datado mas que pelo conteudo se pode situar entre janeiro e março de 39, a argumentação de Lucio se enuncia clara.

“A reprodução do estilo das casas de Ouro Preto só é possível hoje em dia, a custa de muito artifício. Teríamos ou uma imitação perfeita e o turista desprevenido correria o risco de... tomar por um dos principais movimentos da cidade uma contrafação, ou...um arremedo “neocolonial” sem nada de comum com o verdadeiro espírito das velhas construções.

Ora, o projeto do O.N.S, é.. uma obra de arte e..não deverá estranhar a vizinhança de outras obras de arte, embora diferentes, porque a boa arquitetura de um determinado período vai sempre bem com a de qualquer período anterior, o que não combina com coisa alguma é a falta de arquitetura.

Da mesma forma que o automóvel de último modelo trafega pelas ladeiras da cidade monumento sem causar dano visual nenhum a ninguém, concorrendo mesmo.. para tornar a sensação de “passado” ainda mais viva, assim também a construção de um hotel moderno, de boa arquitetura, em nada prejudicará Ouro Preto, nem mesmo sobre o aspecto turístico sentimental, porque, ao lado de uma estrutura como essa tão leve e nitida, tão moça, se é que posso dizer assim, os telhados velhos se despencando um sobre o outro, os rendilhados belissimos das portadas de S. Francisco e do Carmo, a Casa dos Contos, pesadona, com cunhais de pedra do Itacolomy, tudo isso que faz parte desse pequeno passado para nós tão espesso...parecerá muito mais distante, ganhará mais um século, pelo menos, em vetustez”.

É a presença do novo que, por contraste, faz a vetustez ganhar profundidade. E a vetustez de Ouro Preto tem um valor evocativo que não se confunde com seu valor documental, é subjacente à sua condição de testemunho dum momento histórico particular e.irrecuperável. A intenção plástica na memória da Universidade do Brasil já soava afim à “kunstwollen” de Riegl. A argumentação em apreço faz recordar o que o historiador austríaco definira, no começo do século, como o valor-idade dos artefatos humanos, independente de sua utilidade ou beleza, o seu poder de tornar palpável a passagem do tempo. O valor-idade é democrático, tem um efeito emocional imediato que não é privilégio do homem instruído. Desperta o sentimento do ciclo vital, do nascimento no barro ao inevitável retorno ao pó que é parte da condição humana.

A experiência de mudança continua e irreversível, típica da modernidade burguesa, levara à valoração.dos artefatos humanos como documentos no século XIX, sua preservação se assentando em duas premissas: a originalidade de estilo – o valor histórico do monumento – e a unidade de estilo – seu valor-novidade. Justificava-se a supressão ou adição de partes para obter uma composição totalmente integrada. A emergência do valor-idade fazia condenar a interferência no monumento. Para Riegl, os traços de restauração conspícua em artefatos antigos resultavam tão abomináveis quanto o envelhecimento prematuro de artefatos novos. Se é próprio da natureza desmanchar a obra do homem – transformando tudo em história, é próprio do homem desafiá-la, criando a coisa nova e inesperada, “tão diferente das existentes quanto possível”, que nega por momento a futilidade da vida mortal. O valor-idade.e o valor-novidade são complementares. A distinção entre o novo e o velho responde tanto a uma exigência de autenticidade histórica quanto à necessidade de confrontar o novo e o velho para chegar ao sentimento pleno do ciclo vital. O pastiche é intolerável porque ao mesmo tempo corrompe e consome a identidade do passado e do presente.

A proposta de conciliação e as propostas de relocação

Lúcio alega que não se abre assim precedente para a má arquitetura – pois Ouro Preto, cidade pronta e tombada, terá suas construções novas controladas. A sequência do memorando mostra que nem todos partilham da apreciação de Lucio. e a situação o leva a uma especulação procurando conciliar a visão dos CIAM e do Sphan:

“me pergunto se, em casos assim tão especiais, e dadas as semelhanças tantas vezes observadas entre a técnica moderna – metálica ou de concreto armado – e a tradicional do ‘pau-a-pique’, não seria possível de se encontrar uma solução que, conservando integralmente o partido adotado e respeitando a verdade construtiva atual e os principios da boa arquitetura, se ajustasse melhor ao quadro e, sem pretender de forma nenhuma a reproduzir as velhas construções nem se confundir com elas, acentuasse menos ao vivo o contraste entre passado e presente, procurando, apesar do tamanho, aparecer o ménos possivel, não contar, melhor ainda, não dizer nada (assim como certas pessoas grandes e gordas mas de cuja presença a gente acaba esquecendo), para que Ouro Preto continue à vontade, sozinha lá no seu canto, a reviver a própria historia”.

Há algo de pensamento esperançoso nesse tamanho que não conta, mas a ideia de atenuar o contraste entre entorno vetusto e artefato novo tem alvo preciso, a cobertura plana. Como mostra o esboço subsequente, sugere-se substitui-la por um telhado de barro tendo em vista a conveniência do que, em termos acadêmicos, se diria caracterização do sítio. A localização e o terreno são condicionantes de composição para Guadet, que registra o impacto de Paris e Roma nas proporções distintas de cheios e vazios do Louvre e da Cancelleria e poderia ter mencionado igualmente a diferença de declividade de telhados. Inversamente, o maior envidraçamento e a mansarda acabam índices da latitude mais alta.

Na memória da Universidade do Brasil Lúcio parafraseara o velho Quatremère, quando afirmava poder-se imprimir caráter local à arquitetura moderna através da “escolha de materiais a empregar e seu respectivo acabamento”, além de “particularidades de planta” e da “vegetação apropriada”. A paráfrase simplifica, porque Quatremère fala de “género de construção e materiais” como estratégias no Dicionário Histórico de 1832. Por extensão, estas incluem também a configuração dos componentes técnico construtivos, considerados desde Durand como elementos de arquitetura. Para Lucio, preocupado com expressar uma modernidade assente na tradição e afirmar a identidade do país no âmbito da civilização ocidental, parte do apelo corbusiano vinha da prescrição de elementos de arquitetura que se podiam inscrever numa tradição construtiva racional e nacional. O pilotis se podia assimilar à palafita das casas mineiras, o pano de vidro às janelas corridas fechando os seus alpendres, os brise-soleil aos muxarabis. Como no caso dos azulejos no Ministério, seu uso atualizava técnica e evocava história local, denotação pragmática e conotação significativa.

A obra corbusiana referendava outras soluções de cobertura que não o teto-terraço. Desde 1929 rompia o compromisso exclusivo com a iconografia maquinista: uma parede divisória de pedra ancora painéis metálicos pré-fabricados nas casas Loucher, a fonte explícita do Monlevade de Lucio. Na casa Errazuris de 1930, o teto borboleta inverte o telhado tradicional, a telha de barro sobre a madeira roliça e as paredes de alvenaria rebocada sinalizando a inserção na praia chilena. Os apartamentos da Porta Molitor de 1933 exibem paredes laterais de concreto ciclópico e abóbada de cobertura contrastando com os muros cortina das duas frentes. Em 1935, a casa de La Celle-Saint Cloud tem abóbada catalã, paredes portantes de alvenaria, forro de compensado curvo e painel de tijolos de vidro; a casa Mathes na provincia francesa tem alvenaria portante de granito e vidros grandes, telhado borboleta feito com chapas onduladas de fibrocimento. O recado é claro. A condição moderna implica coexistência de materiais, técnicas e componentes tradicionais e modernos. A arquitetura moderna não se reduz a novos materiais, novas técnicas ou novos elementos.

A analogia do esqueleto de concreto armado com o esqueleto de madeira do pau a pique é procedente. Entretanto, a evidencia direta da analogia não é independente da configuração do suporte, como a mensagem da coluna clássica não é independente da ordem escolhida. As colunas cilíndricas do Ministério, severas, podem tomar-se por abstração de colunas dóricas, capaz de materializar versão contemporânea da ordem colossal do Campidoglio nas fachadas da galeria de exposições e do auditório. A vizinhança das palmeiras imperiais faz recordar a sua origem vegetal e as associa tanto à Tebas quanto a D.João VI, a Quinta da Boa Vista, o Jardim Botânico tão carioca, mas não a Ouro Preto. Como convém a uma estrutura efêmera de feira, o perfil I de aço do Pavilhão parece esbelto e facil de desmontar, o revestimento ondulado lhe dá aura de voluta jônica extrudada. O arranjo alude à pretensão classicizante comum em feira mundial, mas tampouco sugere mineirice. A analogia com o pau a pique exige pilares de secção quadrada, de preferência pintados de marrom e exteriorizados, feito revelação.possível pelo uso do concreto no lugar da madeira. Cabe igualmente dispor as vedações opacas ou envidraçadas em eixo com os pilares e por conseguinte organizar as elevações a partir duma grelha. A solução abandona a ortodoxia da “planta e fachada livres”, está mais próxima dos apartamentos de Mies em Sttutgart ou de Terragni em Milão que de Corbusier – ajustando-se melhor à natureza celular repetitiva dos apartamentos. Afinal, segundo Guadet, “o caráter é a variedade na verdade”. A variedade na configuração do elemento de arquitetura é legítima quando precisa os conteudos diversos que especificidades de programa ou situação suscitam.

Tudo isso posto, a proposta conciliadora desaponta. O telhado de duas águas recobre uma planta de projeção retangular. Mantem-se três fileiras de suporte, mas suprime-se o balanço frontal da laje dos apartamentos e aparece balanço face à encosta. As varandas cobertas pelo telhado tem peitoril treliçado. A rampa da portaria e o terraço do restaurante ficam descobertos. A secção se simplifica, a supressão do recortado da empena a empobrece. A grelha elimina os contrastes e ambiguidades de leitura na fachada da rua. A ausência de tesouras preserva a planaridade da cobertura, mas desaparecem a subversão figurativa picante do telhado borboleta e a periferização focal que ele promove, mais afim ao espaço-sanduiche do esquema Dom-ino que a centralização favorecida pela cumieira intermediária.

Aventam-se em paralelo as hipóteses de construção em área suburbana e de reciclagem de prédio existente, mas ambas são rejeitadas pelo prefeito em 9 de junho de 1939. Para este, os fatos recomendam localização central para o hóspede turista e para o hóspede vindo a negócios; o único prédio passível de aproveitamento tem localização inconveniente em termos de acesssibilidade, vistas e insolação. Por volta do fim do mês, estão praticamente afastadas a hipótese neocolonial, a relocação e a reciclagem, mas Oscar retorna à prancheta e apronta alternativa no fim de julho, finalmente aprovada para desenvolvimento e execução.

A solução final

A solução final amalgama elementos dos estudos anteriores e uma novidade fundamental – o telhado de uma água caindo para a rua, equacionado sem tesouras. Literalmente apoiada em vigas de concreto coroando as paredes divisórias dos quartos, sua aura moderna se estabelece pela planaridade avantajada e a linearidade sem quebra de perfil. A estrutura de concreto armado de projeção retangular, sem chanfro, compreende três fileiras de vinte pilares de secção quadrada – pintados de marrom. A laje das sacadas dos apartamentos volta a balançar-se, cobrindo o terraço do restaurante e a rampa. A elevação da encosta permanece um plano perfurado, como as do edificio de Mies no Weissenhof de 27, mas as empenas cegas viram planos integralmente rebocados. Consagra-se a escavação do terreno sob a cozinha para ganhar doca de carga, com muro de arrimo transversal prolongado em curva no recuo frontal e a lavanderia relocada no nível da cozinha. O recorte da empena se acentua, correspondendo à alternância de planos frontais recuados e corpos avançados: aqueles incluem a faixa alta dos duplex e as superfícies virtuais definidas pela colunata abaixo, os outros abrangem as sacadas, ainda tratadas como quartos descobertos, a cozinha e a rampa. Entretanto, quando o hotel é visto desde a rua, a estratificação por pavimento sai de foco. Domina a ideia de blocos superpostos, o setor privativo coroando o setor público. A dualidade enfática e as novas proporções se ajustam melhor com o Palácio do Governador.

O bloco superior é um entablamento marcadamente horizontal. Em primeiro plano, a vista da rua mostra uma grelha definida pelo topo da laje dos quartos, os topos das paredes divisórias das sacadas e verga de madeira, enquadrando a silhueta em L do painel treliçado e pintado de azul que substitui as venezianas do primeiro estudo e os peitoris corridos do segundo. Atrás aparecem os pilares e a verga do telhado, emoldurando o painel superior de venezianas fixas acima das portas de correr entre a sala e a sacada. O envidraçamento.fica reduzido ou velado – e as paredes divisórias entre quartos permanecem inscritas nos intercolúnios transversais, não se enfatizando a independência da estrutura.

Incluindo a doca de carga, o bloco inferior tem três niveis de soleira. A atenção pode concentrar-se no plano virtual definido pela série externa de colunas e diretriz obliqua da sua intersecção com o terreno, reiterada pela rampa levando ao ‘piano nobile’. Pode também destacar, um corpo principal de dois andares de fora a fora e uma base que integra a doca às superfícies do jardim e caminho de acesso, curvas extraordinárias que continuam ressaltando a organização retilinea da edificação. Em qualquer caso, as colunas dominam o campo de visão e introduzem efeito de verticalidade contrário à tração horizontal aportada pelo patamar da rampa e pela cozinha – cujos vidros se protegem com treliças pivotantes.

O volume da cozinha intercepta cinco colunas numa ponta. A escada adjacente quase se encosta na primeira das oito colunas – exentas – que se seguem. A rampa sobe escondendo em diagonal, a partir do térreo, as seis colunas finais; a estas se colam por trás panos de vidro superpostos no bordo da laje, fechando a recepção acima e a sala de jogos abaixo. Como a rampa passa a recobrir o pano de vidro em toda a extensão, elimina-se o acesso à sala de jogos pela frente. Assim se articula – corretamente – como subsidiária a sequência sala de jogos – área de recreação coberta – campo de brinquedos ao ar livre, se reforça o estatuto de ‘piano nobile’ do andar da recepção. O isolamento das colunas centrais envolve agora, além dos 3 m de recuo do trecho da laje correspondente à galeria, a definição de corredor virtual ligando recepção à restaurante, feita pelo pano de vidro no bordo da laje e pela segunda fileira de colunas. É com esta que o painel de elementos vazados abaixo se alinha, sem encostar nos volumes laterais da cozinha e da sala de jogos.No terraço do restaurante a fileira de pilares continua definindo um mirante ao longo do peitoril e uma galeria para mesas junto ao pano de vidro, mas se refina a inserção da escada entre pilar e o balanço lateral de laje.

Grande Hotel, Ouro Preto. Arquiteto Oscar Niemeyer. Implantação [GOODWIN, 1943]

Grande Hotel, Ouro Preto. Arquiteto Oscar Niemeyer. Fachada [MINDLIN, 1956]

Grande Hotel, Ouro Preto. Arquiteto Oscar Niemeyer. Plantas [MINDLIN, 1956]

Grande Hotel, Ouro Preto. Arquiteto Oscar Niemeyer. Corte [GOODWIN, 1943]


A quase simetria da composição se torna mais clara. O redimensionamento dos avanços laterais e recuos centrais de lajes e vedações reforça, simultâneamente, a percepção de centralização e de binuclearização periférica, serialidade e singularidade, axialidade e repetição. A fecundidade da ideia da arquitetura moderna como debate se confirma de modo original, em paralelo à reinterpretação de temas de composição trabalhados no Ministério e/ou no Pavilhão: o pórtico hipóstilo, a ordem colossal, a ideia do vazio entre dois sólidos, o corpo permeável da edificação entre pátio e jardim, as evidências exteriores da “planta e fachada livres”. No Ministério, o vazio entre dois sólidos é um propileu, no Pavilhão uma loggia, no Hotel uma ponte coberta. As defasagens entre paredes, lajes e colunas – tão espetaculares quanto no interior da galeria principal do Pavilhão – reiteram que a planta livre é questão de independência entre configuração de lajes, apoios e vedações, que tem como prerrogativas a independência de configuração de vedações em andares distintos e independência de configuração dos bordos de lajes distintas. As evidências são relativamente discretas no interior, praticamente restritas ao pano indentado de vidro entre duas fileiras de pilares e, na fileira do meio, ao par de pilares ante a caixa de sanitários.

Como seus antecessores, o Hotel é exuberante e poroso. A exuberância se manifesta também na multiplicação volumétrica, cuja qualidade expansiva justifica o nome de barroca nos termos de Wolfflin. A forma é aberta e suas qualidades pictóricas são enfatizadas na coreografia do acesso ao edifício, cuja elaboração é quase imposta pelas dificuldades topográficas a vencer. Wolfflin sugere que a precedência das qualidades pictóricas no barroco se acompanha de um óbvio interesse em imagens oscilantes, a composição do Hotel está impregnada de ambivalências. Wolfflin caracteriza como tendência barroca lutar contra a frontalidade e dar força ao escorço que intensifica a sensação de profundidade, afirmar uma unificação formal que está presente na ordem colossal. Oscar privilegia o escorço, quando dispõe lateralmente a rampa ou obstrui com painel de combogós o vazio central da composição, a ordem colossal é um motivo-chave. Wolfflin fala de clareza obscura, e o Hotel se candidata ao troféu de obscuridade planejada.

Como seus antecessores, o Hotel joga com o contraste exterior entre superfícies lisas ou macias e superfícies ásperas, rugosas, caladas. Não trata porém com fachadas opostas, o pano de vidro sul contra o brise-soleil norte no Ministério, nem com fachadas adjacentes, o brise-soleil sul e a parede cega oeste do Pavilhão. Aqui as duas empenas e a parede para a encosta conformam uma casca delgada envelopando a multiplicação volumétrica e o facetamento frente à rua. O Hotel lembra um geodo partido que revelasse seus cristais, analogia por certo não deliberada mas bem oportuna na situação mineira. Por outro lado, como se vê nas fotos de Kidder Smith ou nas fotomontagens do SPHAN, quando o Hotel aparece em foco entre as casas de esquina oitocentistas, as superfícies finamente rendilhadas e firmemente contornadas da fachada facetada contrastam com a vizinhança pela maior delicadeza de trabalho, exatamente o contrário do que acontece no Ministério, cujo envidraçado liso e unitário faz fundo para a superfície trabalhada da vizinha Igreja Santa Luzia. Visto da praça frente ao Palácio do Governador, o volume unitário e liso implantado diagonalmente em relação à rua contrasta com a textura da encosta vegetada. Em qualquer caso, a caracterização do monumento como coisa distinta garante a sua memorabilidade.

Em memorando a Rodrigo de 26 de julho de 39, Lucio mostra entusiasmo pela proposta – chamada de 3ª solução, mas, comparando-a com a proposta original de Oscar – dita 2ª, observa que:

“Conquanto as nossas preferências se inclinem para os princípios que nortearam a 3ª solução, consideramos que a 2ª apresenta ainda sobre ela certas vantagens, p. ex., vistas da rua ambas contam muito pouco mas do alto a cobertura plana toda coberta de grama contará provavelmente menos que o extenso telhado que as proporções da construção requer (embora admitindo que com o tempo ele deva perder o aspecto “novo” (sempre tão chocante entre telhados antigos)”.

Lúcio recomenda, portanto, “deixar para que no desenvolvimento do projeto se resolva em definitivo em detalhe de conveniência ou não da cobertura gramada”.

Dois meses depois, os escrúpulos de Lúcio parecem aplacados. A solução com telhado de uma água é encaminhada em setembro de 1939 ao ministro Capanema já aprovada por Rodrigo. A pedra fundamental se lança em julho de 1940. O projeto dos jardins é confiado a Burle Marx em 1942 e a construção finda em 1944.

Grande Hotel, Ouro Preto. Arquiteto Oscar Niemeyer [Foto Nelson Kon]


A repercussão do empreendimento

Esse projeto tão ponderado não passou desapercebido. A mostra “Brazil Builds” incluia o Hotel em construção e Philip Goodwin observa acertadamente no catálogo:

the hotel looks very much at home in its 18th Century setting. Obvious reasons are the sloping tile roof and the occasional use of Itacolomi stone. Less obviously, it is the design itself, bold in outline and delicate in detail, which has a sympathetic relationship with the native baroque.

O Grand Hotel anima a produção de Oscar por toda uma década, incluindo a própria casa do arquiteto de 1942. É referência para a Colonia de Férias da Tijuca dos Irmãos Roberto em 43, o Park Hotel de Lucio em Friburgo e as casas baratas de.Francisco Bolonha em Paquetá de 44, a espaçosa casa de campo Hildebrando Accioly do mesmo Bolonha e a primitiva casa de fim de semana de Carlos Frederico Ferreira, ambas de 49. Não é só em termos de biomorfismo que cabe entender a definição – feita por Kenneth Frampton – da arquitetura moderna brasileira como transformação do vocabulário e da sintaxe puristas em expressão nativa altamente sensual, que evoca em sua exuberância plástica o Barroco do século 18.

Yves Bruand reclama, no entanto, dos interiores. A opinião é comum mas questionável. Oscar satisfaz a dualidade do programa. O duplex tem atrativos num “resort hotel” ou hotel residencial de categoria. Não é a toa que a solução diferencia alguns “flats” paulistanos. Talvez a escada helicoidal pese demasiado visualmente e certo que a sala nunca foi bem mobiliada, mas ambos são problemas que uma boa redecoração resolveria. Os quartos de solteiro são efetivamente celas utilitárias – mas não se criticariam numa residência estudantil. A mistura choca por ferir convenções, não por erro essencial.

Em última instância é o hibridismo programático, técnico e formal do Grand Hotel que o torna peça altamente provocativa e de compreensão mais dificil. Como a casa Tugendhat e o citado edifício da Porta Molitor, o Hotel é um manifesto elaborado, antissentimental e antidemagógico, que não se enquadra no culto do novo pelo novo, nem no culto do velho porque velho. Esquecido por arquitetos e críticos e maltratado atrozmente por seus administradores, bem merece restauração que o retorne à condição original – sem prejuízo da atualização discreta de apartamentos e instalações.

nota

[Publicação original: COMAS, Carlos Eduardo Dias. “O passado mora ao lado: Lúcio Costa e o projeto do Grand Hotel de Ouro Preto, 1938/40”. Arqtexto, n. 2, Porto Alegre, 2002]

bibliografia

Arquivos

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sobre o autor

Carlos Eduardo Dias Comas, arquiteto, professor titular da FAU UFRGS

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Paulo Mendes da Rocha

Breve relato de uma mudança

Maria Alice Junqueira Bastos

122.02

Dos escaleras y un teatro, 3 espacios rítmicos

Magdalena Reches

122.03

El objeto técnico

La casa en Nancy (1)

Flavio Castro

122.04

A produção do espaço público no projeto urbano Eixo Tamanduatehy (Santo André, SP)

Aparecida Netto Teixeira

122.05

O limiar da cidade

Tensões entre práticas rurais e urbanas na configuração e representação da paisagem de sedes de municipais de menos 3 mil habitantes

Gisela Barcellos de Souza, Carla Martins Olivo and Isadora Ruiz Dias

122.06

Exercícios de liberdade

Cotidiano e transformação humana na obra de Fábio Penteado

Ivo Renato Giroto

122.07

Reconstrucción del proyecto

Colegio Experimental Paraguay-Brasil(1)

Julio Cesar Diarte

122.08

Turistas no Brasil

Muitas polêmicas e algumas conclusões sobre duas narrativas audiovisuais recentes

Leo Name and Bianca Freire-Medeiros

122.09

A desintegração da paisagem

Filipe II, Petrarca e os Astronautas

Emanuel Dimas de Melo Pimenta

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