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architexts ISSN 1809-6298


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O ensaio de Douglas Aguiar consta de uma exploração teórica acerca do tema da urbanidade como característica típica da cidade. O conceito de urbanidade, aqui focalizado, se refere ao modo como espaços da cidade acolhem as pessoas


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AGUIAR, Douglas. Urbanidade e a qualidade da cidade. Arquitextos, São Paulo, ano 12, n. 141.08, Vitruvius, mar. 2012 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.141/4221>.

Esse ensaio consta de uma exploração teórica acerca do tema da urbanidade como característica típica da cidade. O conceito de urbanidade, aqui focalizado, se refere ao modo como espaços da cidade acolhem as pessoas. Espaços com urbanidade são espaços hospitaleiros. O oposto são os espaços inóspitos ou, se quisermos, de baixa urbanidade. Vivemos em cidades onde o espaço público é cada vez mais inóspito, marcado por grades nas fachadas de prédios, extensos muros contornando introvertidos condomínios, mega shopping-centers / mega estacionamentos e, a pior parte, as áridas freeways urbanas. Essa parece ser cada vez mais, nas mais diversas culturas, a urbanidade da classe média.  Em meio a essa forte tendência ao desurbano o que poderia justificar o nosso interesse - meu e de outros tantos pesquisadores e estudantes que compõem esse nosso grupo - em estudar e discutir sobre a urbanidade? (1) Sugiro em resposta que haveria compartilhada entre essas pessoas, ou pelo menos entre boa parte delas, um entendimento de espaço público como lócus de uma cultura urbana compartida, fundada em valores coletivos, uma cultura que envolve o convívio com os opostos, envolve diversidade, troca e, mais que tudo, o desfrute de uma cidade que tenha o espaço urbano como fundo ativo.  Tudo muito ao contrário da atual tendência à segregação em guetos residenciais, profissionais, comerciais e viários. A urbanidade, assim conceituada, emerge como um parâmetro maior, e abrangente, na avaliação da qualidade dos lugares. O reconhecimento da arquitetura e da cidade a partir da urbanidade re-propõe os valores essenciais da arquitetura como arte social.

Ambiguidade conceitual

Meu ponto de partida em uma especificação maior do conceito de urbanidade é a definição de senso comum do termo. Segundo o Aurélio, dicionário, urbanidade é o caráter do urbano. Já urbano, para ele, é algo relativo ou pertencente à cidade.  Portanto ao falarmos em urbanidade estaríamos, por essa definição, falando necessariamente de cidade e, mais especificamente, do caráter da cidade. Entenda-se como caráter, seguindo a mesma fonte, como o conjunto de qualidades, boas ou más, que distinguem algo ou pessoa. Urbanidade portanto, por esse encadeamento conceitual, seria o conjunto de qualidades, boas ou más, que distinguem uma cidade. O termo urbanidade tem no entanto, em paralelo, uma definição em sentido figurado, que é aplicável à conduta das pessoas, referindo-se à atributos tais como cortesia, delicadeza,  polidez, civilidade. Uma pessoa cortês, educada, será assim uma pessoa dotada de urbanidade. Esse modo de utilizar o termo é certamente mais conhecido e mais utilizado que aquele relacionado aos estudos urbanos, que se refere, como vimos acima, às qualidades ou ao caráter do urbano ou da(s) cidade(s). A definição urbanística não prescinde no entanto das especificações dadas na definição em sentido figurado. Falar de urbanidade ao nos referirmos à cidade significa estarmos falando de uma cidade ou de um lugar que acolhe, ou recebe, as pessoas com civilidade, com polidez, com cortesia. Ou, na mão contrária, estaríamos nos referindo a situações destituídas dessas características positivas, situações que ao invés de evidenciarem cortesia e polidez, evidenciam hostilidade às pessoas, ao corpo. A referência ao corpo enfatiza um tipo específico de hostilidade que é, seguindo Tschumi, a violência arquitetônica. (2)

SOS urbanidade

Interessei-me pelo conceito de urbanidade por entendê-lo, ainda que abrangente, capaz de descrever de modo sintético o ingrediente que falta em tantas situações arquitetônicas e urbanas projetadas por técnicos especializados, arquitetos e engenheiros. Vejo nesses lugares a falta absoluta de urbanidade. O que significa essa palavra urbanidade nesse contexto?  Utilizo o termo exatamente em seu sentido tradicional e mais corriqueiro – aquele que se refere à cortesia entre pessoas - apenas que aplicado aos não humanos; edifícios, ruas e cidades. Edifícios dotados de cortesia, gentis com o corpo. Ruas e bairros dotados de civilidade, e por aí vai. Ou ao contrário, situações espaciais onde o corpo sofre ou situações da cidade que foram abandonadas pelo corpo. Situações com baixa urbanidade.

A urbanidade é composta portanto por algo que vem da cidade, da rua, do edifício e que é apropriado, em maior ou menor grau, pelo corpo, individual e coletivo. A urbanidade, assim entendida, estaria precisamente nesse modo de apropriação da situação pelas pessoas, seja na escala do edifício, seja na escala da cidade. Urbanidade não é sinônimo de vitalidade, no sentido de presença de pessoas, embora possa incluí-la. Nesse contexto o corpo naturalmente é o parâmetro; o comportamento espacial. A medida da delicadeza, da civilidade, é demonstrada pela conduta do corpo, individual e coletivo; em sua presença, em sua ausência, em sua postura. Ou seja, a urbanidade está no modo como essa relação espaço/corpo se materializa. Como descrever então essa acomodação, ou não, do corpo ao espaço? Quais seriam então os componentes espaciais determinantes da urbanidade, dessa civilidade vinda do espaço?  Em busca de alguma clarificação para essas questões me proponho a elaborar no que segue, uma circunscrição do conceito de urbanidade que venha a permitir alguma operacionalidade em sua utilização como parâmetro de qualidade em arquitetura.

Meu propósito nessa exploração sobre o conceito de urbanidade foi, outrossim, o de buscar refúgio conceitual em algo que pudesse auxiliar na elaboração de um antídoto eficaz ao horror arquitetônico e urbanístico que nos assola, de modo crescente, desde a chegada do automóvel.  Refiro-me à arquitetura do espaço público, gerada nas últimas décadas, quando esse passa a ser colonizado ao modo do automóvel, nas urbanizações novas que trabalham essencialmente em cima do conceito de segregação espacial - seguida da segregação social naturalmente – em, segue o mantra, condomínios residenciais fechados, centros de negócios, também fechados, shopping centers em localizações cada vez mais rodoviárias, nascendo daí o espaço desurbano, hostil ao corpo, ao pedestre, desenhado francamente para o automóvel, tendo a velocidade como parâmetro maior da sua efetividade. Não se trata aqui no entanto de uma manifestação contra o automóvel em geral. Muito ao contrário. O automóvel, devidamente civilizado, é um elemento chave na qualificação do espaço público contemporâneo.

Entendo, de um modo ampliado, que o conceito de urbanidade seja inerente à arquitetura do espaço público, de um modo geral. Refiro-me à urbanidade inerente às diferentes escalas do espaço público, desde o desenho do corrimão da escadaria da praça, que em algum momento vai dar guarida à mão do velho, passando pela largura da calçada, chegando até à definições sobre o desenho de ruas, quarteirões e bairros inteiros. Cada um desses elementos, vindos de diferentes escalas, tem a sua contribuição à condição de urbanidade, na medida em que cada um deles tem uma qualidade arquitetônica intrínseca que vem da adequação, melhor ou pior, da sua forma ao corpo, individual e coletivo. Portanto a urbanidade é por definição uma qualidade da forma ou das formas; trata-se de algo essencialmente material, ainda que repercuta diretamente no comportamento e no bem estar das pessoas no espaço público. Urbanidade seria o equivalente urbano daquilo que Vitruvio conceituou, na arquitetura, como comodidade. Urbanidade é a comodidade do espaço público. Há que notar aí a sutil distancia entre os conceitos de comodidade e utilidade, diluídos hoje no limitado conceito de função. Ainda que ser funcional implique necessariamente em ser útil, não implica de modo algum em ser cômodo. Nesses termos a condição de urbanidade seria necessariamente coincidente com a condição de comodidade, podendo ocasionalmente prescindir da condição de utilidade.   

A emergência da urbanidade nos estudos urbanos

O tema da urbanidade é relativamente recente no campo da arquitetura. Foi ao longo da segunda metade do século 20, em meio ao reconhecimento do fracasso urbanístico do movimento moderno, que os arquitetos se deram conta de que havia algo errado com as cidades criadas artificialmente, a uma só vez, nas pranchetas. (3) Faltava-lhes algo, faltava-lhes urbanidade. A partir de então diferentes autores se dedicaram ao tema. O trabalho de Jane Jacobs (1961), ainda na década de 60, tornou-se um emblema nessa linha. Jacobs é uma aficionada da vitalidade, da animação, do burburinho dos lugares urbanos, da vida na rua, as pessoas, as lojas, a mistura de tipos arquitetônicos e humanos interagindo no espaço público, conjunto de características que ela sintetiza da condição de diversidade. A critica de Jacobs é focalizada predominantemente na perda de diversidade das urbanizações novas, produzidas em grande escala, em comparação com a diversidade das cidades ditas de crescimento natural. Entenda-se diversidade como algo que tem, para Jacobs, uma dimensão arquitetônica, na diversidade de tipos de edificação, de tipos de espaços públicos e de tipos de atividades, e uma dimensão social, na diversidade de tipos humanos, tanto em termos econômicos e quanto étnicos.

Ela detecta o problema das urbanizações produzidas ‘all at once’, bairros construídos a uma só vez, grandes conjuntos de habitação, situações em geral privadas da diversidade arquitetônica natural na cidade produzida por diferentes agentes ao longo do tempo. Ela critica igualmente as ‘supposedly cosy, inward-turned neighborhoods’ capturando aí o problema da articulação espacial desses bairros aos bairros vizinhos. (4) Esse aspecto configuracional é também por ela capturado na recomendação de ‘quadras mais  curtas’ mostra igualmente o quanto Jacobs  valoriza a oxigenação, a irrigação da cidade com espaço público, um dos elementos chaves da condição de urbanidade. Jacobs, ainda que de modo tentativo e assistemático, parece identificar os principais ingredientes da urbanidade, tanto em sua escala local arquitetônica quanto na escala mais global da articulação com o entorno. Curiosamente Jacobs é hoje referenciada por alguns, de modo equivocado, como a ‘mãe’ do dito new urbanism, que de new tem muito pouco. (5)

Kevin Lynch (1960), contemporâneo a Jacobs, é outro autor que contribui em nossa formulação tentativa dos elementos da urbanidade. Lynch propõe e exercita um "modo prazeroso" de olhar a cidade. O urbano é visto por Lynch como um conjunto de seqüências espaciais onde, nas palavras do autor; "os elementos móveis de uma cidade e, em especial, as pessoas e suas atividades, são tão importantes quanto as partes físicas estacionárias". (6) Esse modo Lynchiano de apreciação da cidade através da leitura do modo como edifícios e pessoas conformam em conjunto a cena urbana detecta aquilo que, tanto quanto entendo, seria a essência do conceito de urbanidade. Essa apreciação estética coloca lado a lado os elementos físicos que constituem a cidade, incluídos ai seus elementos inertes, os espaços públicos e edifícios, e os elementos animados, as pessoas (e veículos) que lhe conferem vida. Essa apreciação estética não é gratuita. Ao contrário, ela é comprometida. (7) Trata-se aí de uma formulação na qual o atendimento às conveniências do corpo é protagonista chave em sua capacidade de construir urbanidade.

O aspecto central na formulação Lynchiana da imagem da cidade, desenvolvida a partir de entrevistas com habitantes, está em sua dimensão estrutural formulada a partir das imagens mentais descritas, nas quais ele percebe "o predomínio visual do sistema viário e sua importância fundamental como rede, a partir da qual a maioria das pessoas vivencia o espaço da cidade". (8) Esse parece ser um elemento central na formulação do conceito de urbanidade ora perseguido ou seja, a condição estrutural – por definição relativa – de cada um dos espaços da cidade, compondo um todo, uma rede interconectada. Lynch detecta, na percepção dos entrevistados a respeito da cidade, um caráter puramente estrutural compondo a imagem descrita, uma estrutura espacial, uma rede, um todo espacial que predomina no imaginário do observador acima das situações individuais:"A Back Bay, em Boston, é uma interessante rede viária. Sua regularidade é notável, em contraste com o resto do centro da cidade (...)". (9)  E mais adiante:"Jersey City parecia ter esse caráter puramente estrutural". (10)  Um dos atributos de base dessa condição estrutural é a capacidade de propiciar, ou facilitar, uma leitura da cidade. Lynch utiliza dentre seus conceitos de base aquele de legibilidade ou clareza, que ele define como sendo "a facilidade com que as partes da cidade podem ser reconhecidas e organizadas em um modelo coerente" na percepção de um observador ou usuário; um modelo coerente ou seja, uma estrutura. (11) As palavras de Lynch sugerem uma determinada gradação de legibilidade, ou de clareza, inerente aos espaços ou conjuntos de espaços da cidade. Para o autor essa gradação de legibilidade das diferentes partes da cidade estaria associada à percepção por parte do observador/ habitante de uma estrutura, um todo espacial em relação ao qual as diferentes partes e elementos são percebidos. Essa clareza ou facilidade de uma determinada situação da cidade ser lida, referenciada a um todo maior, parece ser o elemento central na condição de urbanidade, e de sua gradação.   

A percepção desse caráter estrutural depende, segundo Lynch, de uma percepção de continuidade espacial. Diz ele: "a exigência fundamental (na legibilidade urbana) é que a via em si, ou o leito pavimentado, sigam adiante; a continuidade de outras características tem menos importância". (12) A noção estrutural de um leito pavimentado conformando uma rede espacial é a mais percebida. Diz ele: "as vias, a rede de linhas habituais ou potenciais de deslocamento através do complexo urbano são o meio mais poderoso pelo qual o todo pode ser ordenado". (13) A pesquisa de Lynch sugere igualmente a importância de uma hierarquia visual, segundo ele, "uma escolha sensória dos canais principais e sua unificação como elementos perceptivos contínuos". Este é, segundo Lynch, o esqueleto da imagem da cidade. Curiosamente essa ambicionada "unificação dos espaços da cidade como elementos perceptivos contínuos" termina sendo um objetivo inatingido nas descrições gráficas resultantes da pesquisa de Lynch. Os assim denominados mapas mentais tem muito pouco dessa clareza estrutural percebida pelos entrevistados e por Lynch relatada. Ao contrário, tendem a ser descrições cujas principais características são a descontinuidade e a fragmentação.

Lynch apresenta no entanto outros modos descritivos que nos interessam na formulação da condição de urbanidade. Ele nos fala da qualidade cinestésica do espaço urbano decorrente de sua apreensão em movimento. E sugere a linha de movimento como fator chave na percepção do espaço: "a configuração da linha de movimento vai conferir-lhe identidade". (14) O conceito de linha de movimento estendido à totalidade da rede urbana constitui a base do modo descritivo por ele proposto: "uma cidade é estruturada por um conjunto de vias organizadas. O ponto estratégico de tal conjunto é a intersecção, o ponto de ligação e decisão para a pessoa em movimento; se isso puder ser claramente visualizado . . . o observador poderá então criar uma estrutura satisfatória". Lynch propõe a certa altura uma descrição diagramática do espaço urbano através da representação da sua rede de espaços através de linhas de movimento interconectadas. Diz ele: "as vias também podem ser imaginadas não como um modelo especifico de certos elementos individuais, mas como uma rede que explique as relações típicas entre todas as vias do conjunto sem identificar qualquer via especifica. Esse requerimento implica na existência de um traçado que tenha alguma consistência de inter-relação topológica ou de espaçamento". Essa compreensão e representação diagramáticas do espaço urbano, sugerida por Lynch, é coincidente, e antecipa em duas décadas, o método descritivo proposto por Hillier e Hanson e que veio a tornar-se conhecido como sintaxe espacial.

Vinte e cinco anos mais tarde Hillier ET al, no seminal artigo ‘Space Syntax: a different urban perspective’ (1983) circunscrevem de modo mais preciso, os elementos da – perdida e ambicionada - urbanidade. (15) Isso ocorre em meio a uma onda de public inquiries envolvendo áreas de habitação social que aconteciam na Inglaterra no início dos anos oitenta. É neste contexto que Hillier e seus colegas entendem que "a busca da urbanidade tornou-se um tema central em arquitetura". A condição de urbanidade, para esse grupo, está assente em três pilares. O primeiro deles é a condição de rede que ele assim expressa: "a organização global do espaço atua como um meio através do qual cidade e áreas urbanas  podem tornar-se potentes mecanismos capazes de gerar, sustentar e controlar os padrões de movimento de pessoas". E complementa: "o modo como os edifícios estão distribuidos em torno de determinados lugares é importante, mas essa forma de arranjo espacial não pode reproduzir urbanidade. O modo como o espaço se posiciona com relação ao entorno é um determinante mais importante. Urbanidade e a comunidade virtual são produtos da escala maior de organização do espaço, que é, o desenho global". Há nesse parágrafo uma gama de insights úteis no entendimento hillieriano da condição de urbanidade. O primeiro deles se refere à enigmática sobreposição das condições local e global no espaço urbano. O local e o global se sobrepõem naturalmente em qualquer situação, seja mar, campo ou cidade. (16) Ocorre que no mar ou no campo a pessoa tem uma visualização simultânea das diferentes escalas, o local ou entorno imediato, as situações posicionadas longínquas e a gradação entre escalas. Na cidade, ao contrário, a visualização de uma determinada situação local - um trecho de rua, uma praça - é tudo o que o habitante urbano tem, via de regra, à sua disposição para localizar-se, ainda que a informação ali existente possa pouco mostrar, visualmente, do que ocorre no quarteirão vizinho. Há no entanto no habitante urbano a consciência dessa energia de posicionamento, de localização, inerente a cada ponto da rede urbana, na sua condição de centralidade. (17)

Hillier sugere que essa escala global ou arranjo global do espaço atua, sendo determinante no modo como o espaço é apropriado pelas pessoas. Ele vê o espaço como um fundo ativo para a ação humana, e assim responsável pela presença ou não ali de pessoas, a dita vitalidade do espaço público. Hillier vê essa condição de publicização do espaço – o quão público um determinado espaço seria - expressa na intensidade da interface entre moradores, os habitantes do lugar, e os visitantes ou, como diz Hillier, os estranhos: "a percepção da presença de outras pessoas não é provavelmente aquilo que os sociólogos chamam comunidade; é mais como uma comunidade latente ou virtual que viemos a crer como importante por si própria, porque ela oferece um sentimento de segurança e pertencimento que pode ser reduzido a uma comunidade". O conceito de comunidade virtual estaria, assim conceituado, em um patamar superior, em termos de urbanidade, comparativamente ao conceito de comunidade. O conceito ideal de comunidade virtual poderia – mediante o desenvolvimento de relações interpessoais - degenerar em comunidade. Entende-se aí que o conceito de comunidade tem nele embutido a afinidade do grupo, da comunidade, com relação a valores, desejos, etc, específicos daquela comunidade, enquanto a dita comunidade virtual seria, por definição, includente do outro, o estranho. O conceito de comunidade virtual descreve esse grupamento humano heterogêneo que ocupa os espaços públicos das cidades como uma comunidade que não existe como realidade, mas sim como potência ou faculdade. No entanto, paradoxalmente, por ser virtual essa comunidade equivale igualmente à comunidade estrito senso, podendo fazer as vezes desta no imaginário do habitante urbano que está, ainda que só, permanentemente acompanhado. Portanto, paradoxalmente, a comunidade virtual é suscetível de exercer-se ainda que não esteja em exercício.

O terceiro elemento da urbanidade de Hillier é a arquitetura, a escala local, o modo como o espaço publico é constituido. Diz ele: "A organização convexa do espaço público e a interface deste com os edifícios - se há paredes cegas ou barreiras que distanciam os edifícios do espaço público – pode igualmente afetar fortemente a relação entre moradores e seus vizinhos e entre habitantes e estranhos". Portanto, ainda que a dimensão local seja subsidiária - sendo o posicionamento em relação à escala maior o fator preponderante na realização da urbanidade - Hillier não subestima a importância do fator local. Em nossa realidade, por exemplo, a ocorrência generalizada do gradeamento das edificações tem efeito tão devastador quanto as paredes cegas. O conceito de organização convexa coloca a proposição de Hillier num patamar sitteano; a condição de convexidade, ou de enclausuramento se quisermos, é típica da cidade dita tradicional, aquela da rua, da praça e do quarteirão. Quanto mais essa configuração espacial do espaço público dada pelo posicionamento das edificações for substituída por um espaço público contínuo pontuado por edificações – ao modo de Brasilia ou Chandighar – menos teremos a dita condição de convexidade, ou de enclausuramento ou ainda, se quisermos, de acolhimento. Por outro lado na citação acima Hillier reforça a distinção que faz entre as comunidades real, aquela estabelecida entre moradores e seus vizinhos, e a dita comunidade virtual, que se estabelece entre habitantes e estranhos.  

Em seu trabalho Architecture and Disjunction (1994) Bernard Tschumi define arquitetura como ‘o lugar onde espaços e ações se confrontam’. (18) Interessa aí, em nossa busca de formulação dos elementos da urbanidade, a recuperação do conceito de ação para o campo da arquitetura; que traz consigo a presença do corpo e do movimento. E nos interessa igualmente a noção de confronto entre espaços e ações; que aponta um outro entendimento, um entendimento mais complexo, da relação entre forma e função. Tschumi vê a arquitetura não como um pano de fundo para a ação, mas como a ação, ela própria. Essa percepção de Tschumi sobre o corpo como parte da equação arquitetônica vai na linha do conceito de urbanidade, ora delineado, em sua ambição de incluir espaços e pessoas como protagonistas em relação. A arquitetura se torna aí, nas palavras de Tschumi, um discurso de eventos tanto quanto um discurso de espaços. (19)

Holanda (2003) conceitua urbanidade como uma condição "simultânea ao espaço físico e a comportamentos humanos" e que se caracterizaria pela "minimização de espaços abertos em prol de ocupados" ou seja, na densidade de edificações, na existência "do maior número de portas para lugares públicos / jamais paredes cegas’ ou seja, na constituição do espaço, na ‘minimização dos espaços segregados, guetizados, becos sem saída (...)" ou seja, na busca da condição de integração espacial decorrente do posicionamento do espaço no todo maior i.e., a condição de rede. (20) O modelo de urbanidade sugerido por Holanda herda as características, locais e globais, do modelo de Hillier. Holanda, no entanto, agrega ao modelo um outro elemento, que está na relação entre a condição de urbanidade e um outro aspecto, outra característica da cidade e que se refere à condição de informalidade e, por oposição, a condição de formalidade.

Nesse aspecto Holanda sugere que a condição de urbanidade como sendo típica das "sociedades e instituições não hierarquizadas, não ritualizadas, caracterizadas pelo espontâneo e pela improvisação . . . o que não se atém ao preestabelecido, não é convencional" ou seja das situações urbanas e humanas dotadas de maior grau de informalidade. Em um trabalho mais recente Holanda trabalha com a polaridade formalidade/urbanidade como opostos e estabelece um conjunto de novas relações e significados para esses termos que resultam por sugerir que formalidade favoreceria desigualdade enquanto urbanidade favoreceria a democracia. (21)

A utilização dessa polaridade formalidade/urbanidade conduz a um entendimento problemático dos conceitos ali envolvidos e, por conseguinte, das situações que vierem a ser a eles relacionadas. Em primeiro lugar há o problema que esse modelo enfrenta pelo modo como colide com as definições senso comum, de dicionário, de ambos os termos. Formalidade, via Aurélio, tem como oposto informalidade; é o formal e o informal. Urbanidade, via Aurélio, é outra coisa, conforme já vimos. Não tem nada a ver nem com formalidade nem com informalidade. Em segundo lugar há o problema do modo como esses termos, o formal e o informal, vêem sendo tradicionalmente utilizados nos estudos urbanos; o que também colide com o modelo. A favela é dita e tida como a cidade informal.  Por que isso? Porque ela é diferente da cidade dita formal. E o que quer dizer isso? Quer dizer que ela é diferente da cidade formal na forma e no status jurídico. Formal, em termos de cidade, quer dizer algo estruturado, formalizado com geometria evidente, regularidades, sejam quais forem; essa é a cidade formal, um tipo de cidade que segue determinadas formalidades, alinhamentos, traçados. Vê-se aí que o termo formal em nosso campo de estudo tem um uso tradicional, laico, que não tem nada a ver com o sentido de austeridade, monumentalidade que o termo adquire em sua assumida polaridade com relação à condição de urbanidade.  

Vejo também dificuldade no modelo formalidade/urbanidade nas situações em que o primeiro termo, formalidade, é equiparado à ‘magnificência’ como no caso da Esplanada dos Ministérios em Brasília que é descrita pelo autor como uma situação carente de urbanidade. De fato estamos diante de um espaço com alto grau de formalidade e, simultaneamente, com baixíssima urbanidade, com baixa capacidade de acolhimento ao corpo, às pessoas. Mas o que dizer de outras tantas situações, milhares certamente, dotadas de formalidade plena, no sentido de magnificência, e, ao mesmo tempo, prenhes de urbanidade. Exemplo emblemático nessa linha seria a praça de São Pedro em Roma, formalidade plena no modo como as edificações literalmente abraçam o espaço público, espaço monumental, magnificente se quisermos, talvez não haja algo mais magnificente no planeta, e, concomitantemente, espaço acolhedor, cheio de urbanidade, desenhado com urbanidade, passível de ser desfrutado em sua urbanidade, uma grande casa coletiva. As escadarias que se tornam bancos abrigados pela galeria em curva, sem solenidade. O corpo é simplesmente acolhido, plenamente, por toda aquela monumentalidade. Vemos ali formalidade e urbanidade lado a lado. A Trafalgar Square é outro espaço memorável, monumental, formalíssimo largo frontal à imponente National Gallery, com suas duas fontanas e o obelisco. Do outro lado o Admiral Arch indicando o caminho ao palácio. Notável é como aquele espaço, assim formal, acolhe o corpo. As pessoas querem ficar ali. É o local da cidade destinado às grandes reuniões, manifestações e, simultaneamente, uma informal sala de estar muitíssimo cosmopolita. Formalidade plena no espaço, urbanidade plena no comportamento. Balsamo para o espírito. E não se trata de algo que só arquiteto observa, percebe e sente. Trata-se de algo que pessoas com sensibilidade observam, percebem e sentem. Na pele. Curiosamente ali, via axialidades, a sobreposição das condições local e global é explícita, e plenamente visível, no palácio ao longe. Situação semelhante, ainda que em escala menor, seria o largo de São Francisco no centro do Rio. E é provável que sem muita dificuldade cheguemos a uma lista de espaços dotados simultaneamente de formalidade e alta urbanidade. Outro aspecto é que a polaridade formalidade/urbanidade sugere, como corolário, uma associação entre urbanidade e informalidade o que é igualmente problemático.  A condição de informalidade é freqüentemente desurbana, agressiva e hostil; tanto na favela quanto no camelódromo.  

Ainda em nosso meio, Castelo (2007) vê a urbanidade como "uma qualidade tipica e única do ambiente construído . . . uma qualificação vinculada à dinâmica das  experiências  existenciais, conferidas às pessoas pelo uso que fazem do ambiente urbano público, através da capacidade de intercambio e de comunicação de que está imbuído esse ambiente". (22) O conceito de urbanidade elaborado por Castelo, ainda que não tão especificado quanto outros vistos acima sintetiza alguns dos principais atributos da urbanidade revisados aqui. Dentre esses está a explicitação da urbanidade como algo essencialmente da forma, da forma urbana, algo ‘típico e único do ambiente construído’ como diz o autor. Castelo no entanto não desconsidera as pessoas em sua equação da urbanidade. Ao mencionar a relação das pessoas com o espaço público ele reforça que a ‘capacidade de intercambio e comunicação’ pertence ao ‘ambiente construído’. Fica no entanto implícito na vinculação da condição de urbanidade à ‘dinâmica das experiências existenciais’ que essa dinâmica, ainda que subjetiva e dependente da cultura do observador, tem muito a dizer na formulação da condição de urbanidade, simplesmente por ser ela, essa dinâmica subjetiva, um provável determinante da presença ou não das pessoas nos lugares.  

Urbanidade e sintaxe espacial

Os enunciados dos autores acima referenciados – situados, tanto quanto entendo, entre os principais contribuintes na formação do conceito de urbanidade até o momento – sugerem que urbanidade e segregação espacial sejam fenômenos qualitativamente opostos, ainda que resultantes de um mesmo conjunto de condicionantes, sintetizados no arranjo espacial dos lugares. Entende-se aqui arranjo espacial como o modo como os espaços da cidade se estruturam, se articulam, constituindo a forma espacial urbana, a qual abriga aquilo que conhecemos como espaço público. Está aí embutido o entendimento da cidade como rede espacial. Esse modo de arranjo ou modo de articulação constitui a dimensão sintática da cidade, dimensão essa que se refere, por um lado, à articulação dos espaços públicos entre si - ruas, avenidas, etc. – e, por outro lado, ao modo como se relacionam esses mesmos espaços às edificações que os constituem, que os conformam, que os confrontam. Minha hipótese de trabalho - nessa tarefa de circunscrever ainda que tentativamente os elementos que constituintes da urbanidade - sugere que essa dimensão sintática tenha papel preponderante no grau de urbanidade existente nos diferentes espaços da cidade e, na mão contrária, no grau de segregação espacial - ou de desurbanidade ou ainda de baixa urbanidade - verificado em outros tantos.

A urbanidade é portanto, nessa linha, um fenômeno por definição resultante dessa dimensão combinatorial - de arranjo, de sintaxe - inerente ao espaço urbano. Entenda-se no presente contexto por sintaxe espacial um aspecto particular do termo mais geral configuração espacial, e que se refere a essa dimensão de articulação dos espaços criados pelo homem. Sintaxe é básicamente conectividade, articulação espacial, e urbanidade seria, assim entendida, função direta do arranjo espacial dos lugares. Em outras palavras, toda a ação humana no território ocorre mediante um arranjo espacial que tem, queiramos ou não, uma dimensão sintática através da qual o(s) corpo(s), humanos e capsulas motorizadas, se deslocam. Esse deslocamento acontece tendo por base a condição de axialidade; sequencias espaciais constituídas de sucessões de eixos. Essa é a essência da sintaxe espacial e aí parece repousar a sua utilidade maior para os arquitetos no entendimento da espacialidade.    Essa percepção do papel natural da axialidade na condição espacial não é nova. Diz o grande arquiteto: "o eixo é talvez a primeira manifestação humana; ele é o meio de toda a ação. A criança em seus primeiros passos busca mover-se ao longo de um eixo, o homem se debatendo em meio a tempestade traça para si próprio um eixo. O arranjo é a gradação de eixos, e assim também a gradação de objetivos, a classificação das intenções" (Le Corbusier, 1931). Esse entendimento das diferentes escalas a partir da gradação dos eixos e da acomodação do corpo/atividades -  ‘objetivos e intenções’ para Corbusier - é crucial na demonstração das razões da arquitetura e do urbano. São as linhas de movimento e de visada, umas maiores, mais longas, outras menores, que em conjunto e de modo articulado compõem a espacialidade dos lugares; cidades, edifícios e interiores privados.  As escalas local e global se sobrepõem nesse arranjo espacial. A escala local é aquela visível pela pessoa, a visualização in situ e seu entorno imediato, aquele trecho de rua, aquela esquina, o conjunto de linhas de visada que ali se interconectam. No âmbito local um atributo crucial da condição de urbanidade é a constituição do espaço, no sentido hillieriano ou seja, a intensidade de ligações entre interiores privados e o espaço aberto público, através da ocorrência de portas e janelas. Essa característica, aparentemente banal, seria talvez aquela mais negligenciada no desenho urbano modernista.  Ainda na dimensão local contribuirá também na condição de urbanidade a forma geométrica ou, se quisermos, a dita dimensão de convexidade dos espaços. Aí entram naturalmente a largura e a altura dos espaços, largura das calçadas, relação dessa com a dimensão do leito viário e outros tantos detalhes e desdobramentos. A urbanidade da forma urbana, em sua dimensão local, é assim constituída por uma miríade inesgotável de elementos e suas combinações. Ao apreciar essa escala local a pessoa estará simultaneamente vivenciando a escala global ou seja, a condição espacial global na qual aquela situação local está imersa, ainda que não a esteja vendo. A efetividade dessa escala global sobre uma determinada situação urbana é predominante. Pode-se dizer, na linha sugerida por Hillier, que uma mesma situação local – tipo e arranjo de edifícios, estilo, etc – quando, hipoteticamente, imersa em outra situação global resultará, essa mesma situação local, em outra condição de urbanidade, isso porque terá um padrão de uso do espaço distinto daquele observado na localização anterior e, provavelmente, um grau de vitalidade, de animação, igualmente diferente daquele, seja maior seja menor; todos elementos da urbanidade globalmente estabelecidos. A condição de urbanidade de toda e qualquer situação urbana seria, portanto, em qualquer circunstância, resultante da sobreposição de condições locais e globais, atuando simultaneamente em uma determinada situação. A urbanidade é portanto uma condição sinérgica, uma resultante ou ainda, se quisermos, uma qualidade-mãe, includente de outras tantas. Faz parte portanto desse entendimento que a componente global da urbanidade resida na condição de posicionamento de cada um dos espaços da cidade relativizada ao todo maior onde esse espaço, essa situação, se insere. Como sugere Hillier essa energia de posicionamento é descrita no grau, ou no potencial, de integração de cada espaço da cidade. Importante aí que se entenda o tecido urbano como rede espacial.

A vitalidade urbana e a urbanidade

Essa dimensão global, estrutural, da cidade – um dos fatores da urbanidade de Hillier - tende a estar correlacionada com a vitalidade dos espaços, entendida a vitalidade como a presença maior ou menor ali de pessoas. Os espaços sintaticamente mais integradores ou integrados – mais prenhes de urbanidadena escala global - tendem a ser aqueles com mais vitalidade.  A analogia com a oxigenação ilumina o ponto. As partes da cidade mais integradas espacialmente, mais oxigenadas, são aquelas com maior vitalidade, com mais pessoas utilizando,  vivenciando o espaço. Por outro lado, se uma determinada situação urbana é sintáticamente segregada ela terá, por genética, por natureza espacial, um baixo grau de urbanidade, ainda que ela seja localmente bastante constituída. Essa mesma situação, curiosamente, poderá no entanto ter um alto grau de vitalidade, presença de pessoas, e mesmo sucesso comercial, dependendo do grau de atratividade das atividades que ali se localizam. Ainda assim essa situação terá, por definição, um baixo grau de urbanidade; ela sempre dependerá de atratores para a realização da sua vitalidade.

Essa vitalidade ou condição de animação de uma determinada situação urbana poder ser aferida através da co-presença de pessoas no espaço público, aquilo que Hillier denomina como comunidade virtual. (23)  Ainda  que esse indicador, a vitalidade, e a urbanidade sejam condições conceitualmente distintas, a presença de pessoas no espaço público será a um primeiro indício, aquele mais básico, da condição de urbanidade, especialmente se essa co-presença for efetivada por pessoas com diferente poder de compra, etnia e religião. O conceito pode portanto ser entendido de um modo mais complexo, permitindo que falemos de tipos ou graus de urbanidade, em um processo de aferição onde contam, por um lado, as características ou qualidades dos lugares e, por outro lado, e a presença e a atitude das pessoas. A condição de urbanidade se diferenciaria da condição de vitalidade ainda que possa contê-la. Um espaço pode estar repleto de pessoas - como o aterro do Flamengo no Rio de Janeiro nos finais de semana – e tratar-se de uma situação de baixa urbanidade quando deixado por sua conta. 

Havendo urbanidade há naturalmente pessoas. No entanto, a urbanidade, essa condição, essa característica, ela é própria da cidade, da forma, e não das pessoas. A urbanidade é um tipo de espacialidade. Entenda-se espacialidade como uma relação, entre espaço e pessoas. Essa relação pode ocorrer nos mais variados meios, no fundo do oceano, no alto da montanha, na cidade e onde quer que o corpo humano venha a chegar ele será em qualquer caso parte em uma determinada espacialidade. A espacialidade urbana é o que chamamos de urbanidade. As pessoas, o corpo, individual e coletivo, interagindo com o espaço, são, nesse raciocínio, o parâmetro da urbanidade quanto à sua intensidade.  As pessoas, mesmo que inconscientemente, se relacionam naturalmente com o espaço urbano e assim usufruem da urbanidade.  A condição de urbanidade estará portanto no modo como a cidade acolhe as pessoas, recebe as pessoas, o corpo. Alberti falava, ainda no Renascimento, na cidade como uma grande casa. A cidade, seja qual for, de tipo que for, é, por definição e pré-condição funcional, um abrigo - algumas um mega abrigo - e são, todas, dotadas de urbanidade, de algum tipo e em algum grau, mesmo Milton Keynes.

Trata-se aqui de graus de acolhimento, de graus de urbanidade, e de tipos de urbanidade, relacionados ao modo como a cidade se apresenta, como ela está configurada. A condição de urbanidade está portanto em algo que se origina no urbano, na cidade, no meio edificado, e é passado, direcionado às pessoas. Esse acolhimento, do espaço para com o corpo, acontece de diferentes modos na rua do bairro, na rua do centro, no shopping Center, no condomínio fechado, na favela, no conjunto habitacional e em todo e qualquer situação urbana. São os tipos de urbanidade, centenas de tipos. Essa tipologia da urbanidade pode ser organizada de modo a rankear, hierarquizar, as diferentes situações urbanas, desde aquela mais formal até aquela mais informal. Entenda-se aqui formal como algo assentado predominantemente em regras vindas da geometria. Portanto a urbanidade é encontrada, de diferentes modos e em diferentes graus, em toda e qualquer situação urbana, desde aquelas mais formais, como a esplanada dos ministérios em Brasilia por exemplo, até aquelas mais informais, como a favela da Rocinha.

Notas finais: A essência da urbanidade

A trajetória bibliográfico-especulativa percorrida na realização desse ensaio indica que, em sua formulação mais essencial, a condição de urbanidade possa surgir já com a construção da segunda casa. Mas não, em hipótese alguma, apenas com a primeira, que estava sozinha na planície.  No momento em que a segunda casa é agregada à paisagem poderá ocorrer, dependendo do modo como essa segunda casa for posicionada com relação à primeira, o surgimento, o nascimento, ali mesmo, da urbanidade. O espaço entre essas duas casas será então, suprida uma única condição, um espaço urbano, uma situação urbana. E a partir de então esse lugar, espaço de algum modo delimitado, será detentor de urbanidade. Que condição seria essa, favorável a que o embrião da urbanidade germine em uma situação espacial assim incipiente? A condição essencial e única é que este espaço, surgido entre as duas casas, seja um espaço público, um espaço de uso coletivo isto é, de uso compartilhado pelos que habitam as duas ou mais casas e, simultaneamente, por qualquer pessoa que por ali passe, portanto, com diz Hillier, um espaço compartilhado por habitantes e estranhos. Para que estranhos se interessem em passar por ali é evidente que o lugar tem que ter alguma atratividade, ou que seja passagem para algum lugar que tenha essa atratividade. Portanto, configuração e atratores se complementam na realização da urbanidade.

Temos ai desse modo o nascimento de um espaço genuinamente público, ao modo do que ocorria no faroeste ou nos primórdios urbanos, e com ele, seja lá de que modo e com quais ingredientes – tipos de configuração e tipos de atratores - temos o nascimento da urbanidade. Os elementos e efeitos da escala local e aqueles da escala global se sobrepõem, já nessa situação embrionária. Porisso os alphavilles e os shopping centers rodoviários, independentemente das suas configurações locais, tem uma a urbanidade capenga; a escala global urbana é substituída por elementos de escala regional, no primeiro caso, e limitada pela imposição de sucessivos protocolos de acesso no segundo.  No modelo da urbanidade essencial, apresentado acima, se as duas casas estiverem cercadas, ao modo de um condomínio, não temos por definição urbanidade, simplesmente porque não temos espaço público. Teremos aí naturalmente uma espacialidade condominial que poderá até ser, e é em alguns casos, interessante como paisagem. Muitos condomínios residenciais, na leva do New Urbanism, procuram imitar o traçado e a tipologia de casas alinhadas da cidade antiga, sem conseguir no entanto criar ali a urbanidade correspondente, simplesmente pela supressão da condição de espaço público. Na mão contrária os ditos lugares clonados, como os pastiches homéricos de Las Vegas, podem, suprida essa condição única de publicização do espaço, vir a ser, ainda que clones, lugares dotados de urbanidade em algum grau e, dependendo do caso, até de urbanidade plena.

A urbanidade é portanto algo material, palpável, visível. Algo que vem da cidade, do urbano, exala.  Uma outra coisa é o modo como a urbanidade é percebida, lida, sentida, amada, desejada, odiada, demonizada ou ignorada pelas pessoas. Aí entra a cultura, a historia, a origem, a vivencia, a sensibilidade, e mais ene outras características de cada individuo, que irão determinar o modo como a urbanidade é percebida, lida, sentida, desejada, demonizada ou ignorada aqui ou acolá. Entramos aí no complexo tema da relação dos protocolos da urbanidade com o comportamento espacial e com a percepção das pessoas. O habitante do condomínio fechado, em geral conservador, lê e sente a urbanidade do centro da cidade como uma situação hostil. Ele se sente bem no desurbano. Por outro lado o morador da cidade dita tradicional, rua e quarteirão, lêem e sentem a pseudourbanidade do condomínio fechado como algo exótico, esdrúxulo. E aí, naturalmente, já entrou a ideologia, o que torna esse tópico, que trata do modo como a urbanidade é apreciada pelas pessoas, bastante complexo e fora da abrangência desse texto.

notas

NA
A imagem mostra a diversidade arquitetônica que constitui o espaço público de Roma pontuado por galerias, interiores de igrejas, interiores de mercados e outros tipos de espaço interligados no continuo da rede espacial. A imagem, ao mostrar simultaneamente a dimensão local, arquitetônica, e a dimensão global ou de rede, sintetiza a descrição de urbanidade delineada ao longo do artigo em uma dimensão cartográfica à ela inerente. 

NE
A pesquisa que envolve esse trabalho fora realizada pelo autor ao longo de 2009, durante estágio pós-doutoral, realizado junto ao grupo de pesquisa ProLUGAR, liderado pelo Prof. Paulo Afonso Rheingantz, na UFRJ, com suporte do CNPq.

1
Refiro-me aqui à rede @urbanidade, rede de pesquisadores voltados aos temas urbanos, ou urbanísticos e em especial, ao tópico da urbanidade. Ao longo do período de realização do presente trabalho, o convívio virtual com esse grupo propiciou a mim um sólido benchmark intelectual, que veio a referenciar a construção e o teste das idéias e conceitos aqui mostrados.  

2
TSCHUMI, B. Architecture and Disjunction. Cambridge, Mass: MIT Press,1994, p.121-140.

3
As conceituações do Team 10 já apontam nessa direção no final dos anos 50, assim como as deliberações dos derradeiros CIAMs.

4
JACOBS, J. The death and life of great american cities. London: Jonathan Cape, p. 115.

5
A esse respeito ver SEGAWA, Hugo. “Vida e morte de um grande livro”. In: Resenhas Online, São Paulo, 01.001, Vitruvius, jan 2002 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/01.001/3259>. 6
LYNCH, K. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2006 (orig. 1960), p. 1-2.

7
Na linha sugerida por Kant: ‘a beleza de uma igreja, de um palácio ou de uma casa de verão pressupõe uma noção de finalidade que determina o que o objeto deve ser e conseqüentemente fornece a medida de seu ideal; portanto sua beleza é necessariamente comprometida’, KANT, I. (1790). Critique of Judgment, trans. by JH Bernard, Collier Macmillan Publishers, London and Jafner, New York, 1951, p. 60-61.

8
LYNCH, K. op.cit., p. 49.

9
LYNCH, K. op.cit., p. 67.

10
LYNCH, K. op.cit., p. 58.

11
LYNCH, K. op.cit., p. 3.

12
LYNCH, K. op.cit., p. 59.

13
LYNCH, K. op.cit., p. 106.

14
LYNCH, K. op.cit., p. 107-108.

15
HILLIER et al. “Space Syntax: A different urban perspective”. In: Architecture Journal 4. London, 1983.

16
Entenda-se espacialidade como uma relação entre espaço ou lugar e pessoa, o corpo.

17
Utilizo o termo centralidade no sentido utilizado originalmente por Bavelas (1948) que, em essência, corresponde aquele utilizado hoje em analises espaciais baseadas em medidas teóricas obtidas em grafos, tendo em conta relações nodais no espaço topológico.   

18
TSCHUMI, B. Op. Cit., p.141.

19
TSCHUMI, B. Op. Cit., p. 149.

20
HOLANDA ET al. Arquitetura e Urbanidade. São Paulo: Pro Editores, 2003, p.16.

21
HOLANDA, F. Brasilia cidade moderna cidade eterna. Brasília: Editora FAUNB, 2010, p. 42.

22
CASTELO, L.  A Percepção de Lugar. Porto Alegre: Editora Propar UFRGS, 2007.

23
HILLIER et al, Op. Cit.

sobre o autor

Douglas Aguiar é Arquiteto e Professor da Faculdade de Arquitetura da UFRGS.

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