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architexts ISSN 1809-6298

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Em texto de 2007, Roberto Segre apresenta uma trajetória da arquitetura de Oscar Niemeyer, relacionando-a com a produção cultural nacional e o avanço da arquitetura internacional.


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SEGRE, Roberto. Oscar Niemeyer. Tipologias e liberdade plástica. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.01, Vitruvius, dez. 2012 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4604>.

Teatro de Araras. Arquiteto Oscar Niemeyer
Foto Nelson Kon

Um mítico centenário

A vida é um sopro. Assim define Niemeyer a pequenez do homem frente ao incomensurável Universo. É o tempo infinito frente ao ritmo lento da história das civilizações, que se construiu numa trabalhosa decantação ao longo de séculos e milênios. O século é o metro temporal mais próximo ao ser humano, mas quase nunca a vida pessoal teve esta permanência: somente se lembram saudáveis camponeses búlgaros, moradores da estepe siberiana, e ascéticos japoneses, assimilados no lento ciclo evolutivo da natureza. Tradicionalmente tiveram menor longevidade os habitantes das cidades, especialmente os das metrópoles contemporâneas, submetidos ao stress e as angústias da dura cotidianidade. Por enquanto a medicina moderna facilitou a boa saúde da população, é quase um milagre chegar aos desejados cem anos de idade. Justificam-se as festividades e comemorações populares que acompanham cada mudança do século pela sua significação mítica e religiosa: não esqueçamos que o ritmo da civilização ocidental foi marcado pelo nascimento de Cristo.

Daí o valor extraordinário que tem a comemoração do centenário de Niemeyer, o único arquiteto do século XX que chegou a esta idade: lembra-se que quase ficaram perto dele o norte-americano Philip Johnson, o suíço Alberto Sartoris e o italiano Leonardo Ricci. Mas ainda mais surpreendente é o fato de atingir o século de vida com total lucidez e em plena produtividade criativa, desenvolvendo novos projetos que rapidamente se concretizam em obras construídas. Partícipe da vanguarda do século XX, criador das obras paradigmáticas que identificaram as mudanças radicais do Movimento Moderno, consegue ainda acompanhar o ritmo imaginativo e renovador das novas gerações do século XXI: não é por acaso que em 2003 construiu no Kensington Gardens em Londres o Serpentine Pavillon, inserido na seqüência de obras semelhantes realizadas pelos membros do jet set arquitetônico internacional, como Zaha Hadid, Daniel Libeskind, Toyo Ito, Rem Koolhaas, Snotena, Álvaro Siza e Eduardo Souto de Moura.

Para comemorar a mágica do centenário foram selecionadas cem obras significativas construídas, entre as mais de 300 executadas, provenientes dos quase 2000 projetos elaborados ao longo de setenta anos de trabalho profissional. No mundo, é sem dúvida o arquiteto do século XX com maior número de edificações realizadas, espalhadas em vários continentes. Na organização dos cem prédios tentamos elaborar uma estrutura diferente das interpretações publicadas até agora. Como afirmou recentemente Ricardo Ohtake, se editaram mais de meia centena de livros sobre a obra de Niemeyer. Alguns deles dedicados a exemplos ou temáticas específicas ou classificando-os pela função; outros percorrendo cronologicamente a sua produção, desde os inícios até o presente. Para ensaiar um caminho alternativo aos já percorridos imaginamos a possibilidade de agrupar os exemplos segundo famílias tipológicas formais que definem a linguagem expressiva da sua obra. Esta identificação não significa assumir uma atitude positivista ou de taxidermia, de rígida separação de elementos formais, espaciais ou estruturais; mas procurando, pelo contrário, identificar as alternativas criativas que determinaram as opções estéticas e as soluções outorgadas ás demandas funcionais e simbólicas que exigiram as obras realizadas.

Como demonstrou com precisão o crítico italiano Giulio Carlo Argan, o tipo foi uma constante ao longo da história da arquitetura universal, concebido como sistema ordenador e racional na organização das funções sociais, na aplicação dos elementos construtivos; ou expressivo de enunciados estéticos que surgem de componentes psicológicos, fisiológicos e simbólicos do ser humano. Uma vez definida a particularidade dos arquétipos – a cabana, a tenda e a caverna –, os princípios de regularidade geométrica da composição, a simetria, eurritmia, harmonia, modulação, caráter, hierarquia, monumentalidade, foram constantes ao longo da história da arquitetura ocidental, em particular no vocabulário clássico. O Movimento Moderno liberou-se de algumas normas tipológicas que identificavam soluções formais fechadas; mas na liberdade plástica obtida nas obras do século XX, se manteve a essência de destes princípios. Niemeyer não os rejeitou e as suas radicais inovações formais não abandonaram os esquemas tipológicos da tradição clássica, que serviram de embasamento para atingir as soluções formais inéditas que caracterizam algumas das suas obras. Neste sentido, ele assumiu os valores conceituais contidos nas tipologias temáticas e funcionais utilizadas, sem cair na armadilha do modelo, tão repetido na arquitetura historicista do século XIX, e nos exemplos do International Style no século XX.

Museu de Arte Moderna de Caracas. Arquiteto Oscar Niemeyer
Imagem divulgação

A persistente racionalidade

Seria esquemática uma análise morfológica da obra de Niemeyer, baseada somente na interpretação de obras com formas curvas, segundo a sua afirmação que “de curvas é feito todo o universo, o universo curvo de Einstein”. Mas também o homem criou a persistente “linha reta, dura, inflexível” que subsiste nas estruturas formais e espaciais da arquitetura e das cidades existentes no planeta. E ele não conseguiu fugir do sistema geométrico cartesiano, que utilizou nas torres, laminas, cubos, cilindros, pirâmides, projetadas e construídas ao longo da sua vida. O que é importante é verificar como transformou com renovada imaginação as formas abstratas dos sólidos “filebianos” – o cubo, a esfera e a pirâmide, elogiados por Platão – em composições livres, atribuindo-as novos significados, que as distanciam dos princípios da estética clássica; regionalizados em um processo de elaboração antropofágica da herança acadêmica. Um exemplo evidente desta transmutação volumétrica e formal dos modelos históricos – a pirâmide como exemplo elementar do peso da matéria –, é a pirâmide invertida utilizada no projeto do Museu de Arte Moderna de Caracas (1954), logo sublimada em cálice ou flor no Museu de Arte Contemporânea de Niterói (1996).

O embasamento da sua formação “racional” provém dos primeiros anos da sua educação universitária. Ao iniciar em 1929 os estudos de arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes, teve reduzida ao mínimo a aprendizagem da arquitetura clássica, com a breve reforma introduzida por Lucio Costa em 1930, que mudou a orientação do ensino acadêmico. Formado em 1934, começou a colaborar no escritório de Costa, e assimilou assim os princípios teóricos do Movimento Moderno, as relações com a história da arquitetura universal e com a realidade brasileira, contidos no texto essencial de “Razões da Nova Arquitetura”. A teoria foi integrada com a prática do projeto quando em 1936 trabalhou um mês ao lado de Le Corbusier, absorvendo não somente a aplicação dos cinco pontos canônicos – planta livre, pilotis, fachada livre, janela horizontal contínua e teto-jardim –, mas assumindo a metodologia de desenho e a subtil percepção da paisagem carioca do mestre francês. O ciclo formativo fechou-se quando se integra em 1937 á equipe fundador do Iphan e entra em contato direto com a arquitetura colonial brasileira, tanto com a simplicidade e honestidade construtiva das construções populares como com a exuberância decorativa do barroco mineiro.

Sede da ONU em Nova York. Arquitetos Oscar Niemeyer, Le Corbusier e equipe
Foto Mario Luiz Junior

Os princípios da lógica estrutural e funcional obtidos de Le Corbusier; a importância da natureza e da paisagem, e a significação da história e da tradição se complementaram com a necessária racionalidade que exige a solução dos problemas que apresenta a obra de arquitetura, segundo a explicação fornecida por Niemeyer: o estudo do programa, do terreno, da orientação, do custo, dos materiais e os sistemas construtivos, da relação com o entorno urbano ou natural. Logo, surge a idéia, a invenção, a proposta inovadora final, que soma a intuição á racionalidade. Mas, tem temas e funções onde é difícil fugir da normativa cartesiana: escritórios, escolas, hospitais, hotéis, prédios de apartamentos, entre outros. Lembremos a lamina da sede da ONU em Nova York (1947), elaborada com Le Corbusier, que deveria ser o símbolo da concórdia universal; a seqüência dos ministérios no Eixo Monumental de Brasília, adaptados ao esquema axial imaginado por Lucio Costa (1958); as torres do conjunto habitacional JK em Belo Horizonte (1951); as 500 escolas CIEPs no Rio de Janeiro (1984); as recentes obras em Brasília: a sede da OAB (2002) e a Biblioteca Nacional (2007). Neste sentido, se a curva é uma expressão de liberdade criativa, também a geometria cartesiana é uma manifestação da razão humana em procura do conhecimento, da clareza do pensamento, da legibilidade do mundo através do desenvolvimento científico. Em arquitetura constitui a evolução da nitidez do templo grego até as formas geométricas puras de Boullée e Ledoux na Revolução Francesa, como representação visível de valores éticos e morais da sociedade democrática. Em termos filosóficos é a confiança no progresso da Humanidade formulada pelo Iluminismo, e logo continuada com o novo embasamento social e econômico do marxismo, atingida na inconclusa utopia socialista do século XX. Niemeyer, militante comunista, é parte desta dinâmica estética e ideológica, baseada na esperança de um mundo humano mais equilibrado e socialmente justo, merecedor de cidades e arquiteturas belas.

Os enunciados racionalistas não foram assumidos por ele mecanicamente, nem reproduziu os modelos formais europeus, mas em cada caso eles foram re-elaborados na procura de uma contribuição original, adaptada ás condicionantes locais. Os baixos pilotis de Le Corbusier nos projetos do MES se transformaram nas altas e elegantes colunas de 10m da sede do Ministério (1937). A banal reiteração dos suportes modulados nos embasamentos das laminas se converteram nas esculturais colunas em V e W do Conjunto JK em Belo Horizonte (1951); no Hospital Sul América no Rio de Janeiro (1952) e no bloco residencial da Interbau em Berlim (1955). Também no uso dos brises nas fachadas, adotou múltiplas soluções; desde os verticais móveis na Obra do Berço e os horizontais do MES no Rio de Janeiro (1937); até as faixas horizontais contínuas de concreto no prédio de apartamentos em Belo Horizonte (1954). Os anônimos e estáticos panos contínuos de vidro atingiram um ritmo ondulante no Banco de Boa Vista (1946), e uma vibração dinâmica na sede do jornal Manchete (1978) no Rio de Janeiro. E o racional sistema de composição no Grande Hotel de Ouro Preto (1940) se mimetizou ao contexto histórico e á linguagem regional, tanto na escala do prédio como no uso dos materiais locais.

A sua vez a tipologia da caixa dentro da caixa – a gaiola estrutural que contém uma caixa virtual de vidro –, utilizada em múltiplas soluções, permitiu transformar o rígido retângulo em uma peça escultural, definida pela liberdade plástica das colunas: citemos o Palácio do Planalto (1958) e o Palácio de Itamaraty (1962) em Brasília; a sede da Editora Mondadori em Milão, Itália (1968). Liberdade na imagem exterior, que alterna opacidades e transparências, que se complementa com a dinâmica espacial dos ambientes interiores, e que hoje é aplicada nas obras minimalistas e tecnológicas realizados por Jean Nouvel, Norman Foster ou Peter Zumthor. Por último, a expressão “brasileira” da herança do racionalismo europeu – que tanto escandalizou Max Bill – é a presença dos painéis cromáticos ou figurativos nos muros dos embasamentos dos edifícios: eles aparecem nos azulejos de Cândido Portinari no MES; ou a persistente colaboração de Athos Bulcão nos projetos realizados no início da construção da capital: por exemplo, no Brasília Palace Hotel (1957).

Palacio do Planalto e Praça dos 3 Poderes, Brasília. Arquitetos Oscar Niemeyer e Lucio Costa
Foto Victor Hugo Mori

Curvas, cascas e suportes

Desde o começo da sua atividade profissional, Niemeyer assumiu o concreto armado como o material básico da sua produção arquitetônica. O seu entusiasmo se baseava na disponibilidade e o baixo custo do cimento no Brasil, e na criativa tradição construtiva forjada pelos engenheiros locais, que persistentemente questionaram as rígidas normas estruturais provenientes da Europa e dos Estados Unidos, e cujas inovações permitiriam soluções técnicas inéditas. O objetivo era explorar as possibilidades construtivas do novo material que se iniciou reproduzindo o sistema trilítico de coluna e viga, utilizado nas estruturas de madeira e de aço. Mas como bem demonstraram os arquitetos expressionistas alemães nos anos vinte – no Gotheanum de Rudolf Steiner –, a plasticidade do material motivava explorar novos caminhos formais. E ao mesmo tempo, com o uso de arcos e abóbadas, era possível cobrir espaços de grandes dimensões, como fizeram os engenheiros Marie-Eugène Freyssinet na França e Robert Maillart na Suíça.

Sem dúvida Niemeyer teve a sua primeira aprendizagem na obra do MES, cuja original estrutura foi calculada pelo engenheiro Emílio Baumgart. Ali entrou em contato com a leveza das lajes sem vigas de suporte, baseadas em uma solução nunca concretizada até esse momento no Brasil. Ou seja, verificou que com iniciativas estruturais criativas, tudo o que ele imaginava era possível com o concreto armado. E também que podia construir formas livres sem a tradicional modulação regular estabelecida ao longo de séculos pela madeira e logo pelo aço. Por uma parte, o concreto armado não necessita “componentes” modulares fixos; por outra, a construção realizada com mão de obra barata, não impõe a disciplina do canteiro que existe nos países desenvolvidos. A sua primeira experiência com a abóbada começou na igreja de São Francisco em Pampulha (1940), cuja forma foi definida por quatro abóbadas auto-portantes de diferente tamanho; solução que facilitava a entrada da luz na nave principal. Sem as tradicionais paredes de suporte, a originalidade da solução foi assumida como a expressão de um novo caminho na arquitetura brasileira. A tipologia da abóbada foi persistentemente utilizada por Niemeyer, mas a familiaridade com a técnica e a ajuda dos engenheiros Joaquim Cardozo, Bruno Contarini, José Carlos Sussekind, Fernando Rocha Souza, entre outros, o permitiu de cobrir extensos vãos ou pendurar as finas lajes curvas de gigantescas vigas, para gerar extensos espaços internos: lembremos á borboleta do auditório da Universidade de Constantine (1969) em Argélia; e as abóbadas penduradas no Auditório e na Biblioteca do Memorial de América Latina em São Paulo (1986); e o recente Teatro Popular de Niterói (2007).

Igreja de São Francisco de Assis, Pampulha, Belo Horizonte. Arquiteto Oscar Niemeyer
Foto Victor Hugo Mori

Mas a “liberdade plástica quase ilimitada” – parafraseando Niemeyer –, sem constrições estruturais, apareceu nas formas livres das lajes. A primeira surgiu na Casa de Baile em Pampulha (1940), cujo percurso curvilíneo acompanha a sinuosidade da borda do lago. Aqui começa a manifestar-se a linguagem arquitetônica das formas livres que segundo o crítico inglês Kenneth Frampton, expressa o dialogo com a natureza – neste caso a água – que gera a sinuosidade; a flexibilidade assumida do corpo como modelo; e a vocação hedonista inerente à cultura carioca do Mestre. A imaginação criadora, a inspiração, supera os limites impostos pela razão, e se nutre das experiências de vida, da absorção da multiforme qualidade da paisagem, da beleza dos corpos das mulheres, e da procura da felicidade na vida, também através do hedonismo e do prazer; gerando obras que criem intensas sensações vitais aos usuários. A dimensão urbana foi criada na Marquise do Parque de Ibirapuera em São Paulo (1951), cuja forma sinuosa se expande no espaço verde, configurando um salão coberto dinâmico que incita ao passeio do flâneur, mas ao mesmo tempo, facilita uma multiplicidade de atividades sociais. A dimensão individual aparece na sua casa em Canoas (1953), cuja laje curvilínea que define o espaço social da residência, é uma nuvem captada do céu e inserida no claro da mata atlântica. A razão construtiva e estética das formas geométricas puras ficou submetida à exuberância expressiva da natureza, e ao desejo do corpo de se movimentar livremente no espaço, elementos que definiram o traço espontâneo da mão do mestre. É notável como esta linguagem de formas surgidas do traço espontâneo e das novas possibilidades estruturais – tanto do concreto armado como dos novos materiais leves –, uma vez difundidas as obras de Niemeyer, tiveram uma repercussão nos Estados Unidos, no Japão e na Europa: lembremos a terminal aéreo TWA no aeroporto JFK de Nova York (1962) de Eero Saarinen; os estádios olímpicos em Tókio (1964) de Kenzo Tange; e o Pavilhão Alemão na Expo 67 de Montreal (1967) de Frei Otto e Ralf Gutbrod.

A cúpula como forma autônoma, livre no espaço natural – lembrança da oca indígena brasileira – é outra tipologia que persistiu na obra de Niemeyer. É uma forma assumida da tradição histórica universal, mas dilatada na sua dimensão espacial interna. É a metáfora racional da perfeição, mas ao mesmo tempo da nitidez formal e do rigor contido no espaço concêntrico que exige a democracia. A primeira experiência desenvolvida no Pavilhão de Exposições de Ibirapuera (1951), construída em concreto armado, foi contemporânea da cúpula metálica do Festival of Britain desenhada pelos arquitetos Powell & Moya; continuada nas cúpulas geodésicas de Buckminster Fuller, como a da Expo USA em Moscou (1959). O sucesso obtido em Ibirapuera culminou nas duas cúpulas – uma delas invertida – que identificam o senado e a câmara dos deputados no prédio do Congresso em Brasília (1958). Diversas versões foram desenvolvidas recentemente na Fundação Oscar Niemeyer em Niterói (1999); no Centro Cultural de Goiânia (2006); no projeto do parque aquático em Potsdam, Alemanha (2005); e no Museu de Arte de Brasília (2007). Se bem no caso do Congresso, a forma tem uma relação direta com a função – os dois hemiciclos dos salões de reuniões –; na OCA e no museu, o caráter estático da cúpula é dinamizado pelas formas livres das lajes interiores e as rampas de circulação. Estabelece-se assim um intenso diálogo entre razão e sentimento; entre rigor geométrico e liberdade plástica. Aqui Niemeyer identificou-se com a tese de Charles Baudelaire: “l’inattendu, l’irrégularité, la surprise et l’étonnement sont une partie essentielle et une caractéristique de la beauté“.

Por enquanto as tipologias estruturais da abóbada, a cúpula e a laje, constituíram o embasamento de um grupo significativo de obras surgidas do traço lineal elementar do Mestre; começou a liberação destes esquemas formais simples em procura de representações mais plásticas e complexas, cuja imagem tivesse uma expressão simbólica associada ao Brasil. Era o momento em que se desejava estabelecer a identidade nacional baseada na herança cultural, mas ao mesmo tempo desenvolvendo os parâmetros que definiriam a construção da modernidade presente e futura do país. Aspiração identificada com a Bossa Nova na música, o Cinema Novo, e o movimento do Neoconcretismo na pintura. Surgiram assim as originais e inesperadas colunas do Palácio da Alvorada, cuja leveza e continuidade rítmica abandonaram a imagem estática do suporte isolado clássico, e assumiram a significação icônica de Brasília, difundida urbe et orbi. Variações do tema logo desenvolvidas no Palácio do Planalto e no Supremo Tribunal Federal (1958). A estrutura como elemento gerador do edifício, aparece na sinuosa peça de concreto armado, utilizada na síntese obtida na Catedral (1959). O caráter escultural dos volumes, a superação das geometrias elementares e a inspiração nas formas complexas da natureza acontecem nas assimetrias dos dois vulcões do Centro Cultural de Le Havre (1972); e na forma plástica – quase um casco animal – da cobertura do auditório da Bolsa de Trabalho de Bobigny (1972).

Oca, Parque do Ibirapuera, São Paulo. Arquiteto Oscar Niemeyer
Foto Nelson Kon

Monumentalidade e dimensão urbana

Nos anos quarenta em Nova York, Sigfried Giedion, Fernand Léger e José Luis Sert elaboraram o texto programático que definia os “Nove pontos da nova monumentalidade”, para diferenciar esta tipologia da arquitetura moderna dos atributos acadêmicos e historicistas, baseados nas simetrias axiais e a linguagem dos estilos clássicos, como representação do poder autoritário. Ao contrario, seriam os conteúdos sociais da função, a identificação com a comunidade e a representação icônica das estruturas políticas democráticas que justificariam a excepcionalidade de uma solução arquitetônica. Na sua capacidade de controlar a qualidade estética das formas criadas nas diferentes escalas, desde móveis e esculturas, até as propostas urbanísticas, Niemeyer, soube adaptar os projetos, não somente as exigências funcionais e simbólicas, mas também ao relacionamento e integração com o contexto paisagístico e a particularidade das cidades. O seu vocabulário formal, baseado em elementos geométricos simples e relações espaciais complexas, procura a clareza perceptiva, a leveza dos componentes volumétricos e a sua imediata leitura icônica no entorno urbano. Lembremos a significação simbólica obtida pelo edifício Copan em São Paulo; o MAC em Niterói e o Museu Niemeyer em Curitiba, entre outros.

No predomínio das formas abstratas sobre a expressão orgânica da natureza, se desenvolveram dois caminhos na composição dos conjuntos: um baseado no diálogo e na articulação com o entorno natural; outro gerador de uma segunda natureza, com a criação das extensas plataformas que contém os edifícios. Na primeira experiência de Pampulha, a particularidade da dimensão geográfica é totalmente assimilada por Niemeyer, na seleção da localização dos edifícios no perímetro lacustre: ao situar o Cassino na posição visível de um alto promontório, hierarquizou a função hegemônica do conjunto; ao contrário da Casa de Baile, mimetizada na borda do lago. No Parque de Ibirapuera, as rígidas geometrias dos prédios são articuladas pela sinuosa marquise que se assimila a irregularidade do terreno e a livre disposição da vegetação. Relações orgânicas com o sítio que absorvem a forma arquitetônica – no projeto do Convento dos Dominicos em Saint-Baume, França (1967) –; ou condicionam a livre e irregular disposição dos volumes, como acontece na proposta de urbanização de Pena Furada, El Algave, Portugal (1965); nas laminas curvas do centro financeiro e comercial na Claughton Island em Miami; na contraposição das torres verticais á horizontalidade do deserto de Negev em Israel (1964); e na extensão de funções sociais da cidade de São Paulo ao longo do rio Tieté (1986).

Segundo Niemeyer, a persistência da plataforma ou esplanada provém da sua admiração pelas praças italianas, em particular a de São Marcos em Veneza. Mas, considerando a escala quase geográfica dos espaços criados, a referência está mais próxima dos grandes conjuntos cerimoniais pré-colombianos dos astecas e dos maias. Com a definição da plataforma, os sólidos “filebianos” ou as articulações volumétricas são facilmente percebidos pelos usuários que os percorre livremente sem orientações espaciais pré-estabelecidas, ao contrario do sistema de composição clássico. Ao mesmo tempo, a plataforma é imaginada como o espaço público democrático, de convívio social, de encontro da comunidade. Daí a sua contradição com Le Corbusier no projeto da sede das Nações Unidas, ao propor uma grande praça que permitisse as atividades públicas e o relacionamento com a cidade de Nova York. Em diversos projetos, a plataforma é assumida como um elemento contínuo horizontal: na Feira Internacional do Líbano (1962); na sede da Universidade de Haifa (1964); no campus da Universidade de Constantine (1968) e no Centro Cultural Oscar Niemeyer em Goiânia (2006). Em outros casos, a esplanada assume níveis diferenciados, ao afundar-se na terra, como no Centro Cultural de Le Havre (1972); ou se compartimenta como no Memorial de América Latina em São Paulo (1986).

Universidade em Constantine. Arquiteto Oscar Niemeyer
Imagem divulgação

Sem dúvida, o clímax da sua criatividade na proposta de um conjunto monumental é o sistema urbanístico formado pela Esplanada dos Ministérios, o Palácio do Congresso Nacional e a Praça dos Três Poderes. Aqui Niemeyer soube outorgar a necessária dimensão simbólica á arquitetura que concretizava as idéias propostas por Lucio Costa no Plano Piloto. Era necessário criar a representação icônica do novo Brasil, com uma imagem capaz, não só de identificar a nova capital do país, mas ao mesmo tempo, ser facilmente reconhecível pela população brasileira. A persistência do eixo clássico definido pela extensão de grama, era indispensável para a percepção á distância; mas a genialidade do Mestre foi criar uma plataforma, quase virtual, suspensa no ar, onde posam as duas cúpulas do Senado e da Câmara de Deputados, estruturadas em uma composição assimétrica horizontal, contraposta á verticalidade das duas torres do Secretariado. Elementos volumétricos fechados, mas ao mesmo tempo de grande leveza, refletidos no espelho de água que os separa da Praça dos Três Poderes. Finalmente, a monumentalidade tradicional some, na re-interpretação da linguagem elaborada por Niemeyer. Exemplo único no mundo – Chandigarh, a capital do Punjab, na Índia, desenhada por Le Corbusier, não atingiu uma expressiva iconicidade internacional –; e impossível de ser reproduzido. Quando em 1962, Nelson Rockefeller tentou que Albany, capital do Estado de Nova York, tivesse um sistema formal semelhante à Brasília, o projeto de Wallace Harrison foi um total fracasso. Mas o seu domínio da escala e das articulações volumétricas – no caso do Copan ou do conjunto JK –, antecipam as experiências recentes de prédios de grandes dimensões realizados no mundo desenvolvido, que Rem Koolhaas define como bigness.

Em conclusão, um século de vida de Niemeyer, resume a trajetória da arquitetura moderna brasileira, cuja linguagem, criatividade e expressividade, a projetaram no mundo moderno, demonstrando a significação não somente do Brasil, mas também como representação da América Latina e dos países do Terceiro Mundo. E não foi somente uma presença estética ou formal; foi fundamental o surgimento da criatividade por séculos reprimida dos povos historicamente explorados, que acompanhou na segunda metade do século vinte, os processos de emancipação política. A obra do Mestre é a concretização da sua genialidade criativa, mas também a expressão do seu compromisso ideológico com os movimentos sociais populares e democráticos.

Praça do Congresso Nacional, Brasília. Arquiteto Oscar Niemeyer
Foto Nelson Kon

nota

NA - O texto foi originalmente publicado no seguinte livro: SEGRE, Roberto. Oscar Niemeyer: 100 anos, 100 obras. Organização de Ricardo Ohtake. São Paulo, Instituto Tomie Ohtake, 2007.

NE – Sob coordenação editorial de Abilio Guerra (editor Arquitextos), número traz nove artigos sobre vida e obra do arquiteto Oscar Niemeyer, falecido no dia 5 de dezembro de 2012. Os artigos do número especial em tributo a Oscar Niemeyer são os seguintes:

VALLE, Marco do. Oscar Niemeyer. Morreu nosso arquiteto maior. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.00, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4603>.

SEGRE, Roberto. Oscar Niemeyer. Tipologias e liberdade plástica. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.01, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4604>.

NOBRE, Ana Luiza. Niemeyer e a modernidade sem crise. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.02, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4605>.

BARRIOS, Carola. Transcrições arquitetônicas: Niemeyer e Villanueva em diálogo museal. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.03, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4465>.

ZEIN, Ruth Verde. Oscar Niemeyer. Da critica alheia à teoria própria. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.04, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4608>.

ROMERO, Marta Adriana Bustos. Niemeyer e o sentido do lugar: uma visão bioclimática. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.05, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4609>.

ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. Oscar Niemeyer: a arquitetura renegada na cidade de São Paulo. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.06, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4630>.

KAMITA, João Masao. A graça estética da arquitetura de Oscar Niemeyer. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.07, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4631>.

QUEIROZ, Rodrigo. Forma moderna e cidade: a arquitetura de Oscar Niemeyer no centro de São Paulo. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.08, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4632>.

sobre o autor

Roberto Segre, arquiteto e crítico de arquitetura, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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151.01 tributo a niemeyer
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151

151.00 tributo a niemeyer

Oscar Niemeyer. Morreu nosso arquiteto maior

Marco do Valle

151.02 tributo a niemeyer

Niemeyer e a modernidade sem crise

Ana Luiza Nobre

151.03 tributo a niemeyer

Transcrições arquitetônicas: Niemeyer e Villanueva em diálogo museal

Carola Barrios

151.04 tributo a Niemeyer

Oscar Niemeyer. Da critica alheia à teoria própria

Ruth Verde Zein

151.05 tributo a Niemeyer

Niemeyer e o sentido do lugar: uma visão bioclimática

Marta Adriana Bustos Romero

151.06 tributo a niemeyer

Oscar Niemeyer: a arquitetura renegada na cidade de São Paulo

Luis Espallargas Gimenez

151.07 tributo a Niemeyer

A graça estética da arquitetura de Oscar Niemeyer

João Masao Kamita

151.08 tributo a niemeyer

Forma moderna e cidade: a arquitetura de Oscar Niemeyer no centro de São Paulo

Rodrigo Queiroz

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