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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Os quatro projetos aqui apresentados se configuram em “Quatro Travessias”, e seguem um percurso no qual o arquiteto/investigador é capaz de compreender um acontecimento, reconstruí-lo e reinventá-lo a partir do desenho, como gerador de conhecimento.

english
The four projects presented here told with my guidance and are configured in "Four Crossings", follow a route in which the architect / researcher is able to understand an event, rebuild it and reinvent it from the drawing, as a generator of knowledge.

español
Los cuatro proyectos presentados aquí contaron con mi guía y se configuran en "Cuatro Cruces", seguir una ruta en la que el arquitecto / investigador es capaz de entender un evento, reconstruirlo y reinventarla en el dibujo, como generador de conocimiento


how to quote

RETTO JR., Adalberto. Ler o tempo no espaço. O projeto e as estratificações na cidade contemporânea. Arquitextos, São Paulo, ano 15, n. 177.05, Vitruvius, fev. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.177/5489>.

Diversos caminhos podem ser trilhados para o entendimento do que seria um Trabalho Final de Graduação (TFG) no âmbito de um curso de Arquitetura e Urbanismo. Para efeito de reflexão, enumero dois: o primeiro é aquele que coloca o projeto final como uma continuidade dos ateliers, consubstanciando um percurso vertical escalar; o segundo, é em função da formação já consolidada, pois no fim do quarto ano os alunos já completaram seus créditos obrigatórios, ou seja, é aquele que coloca o projeto final como a primeira resposta profissional do discente a uma problemática. Vale explicitar, que no caso brasileiro, as universidades formam o aluno e o habilita profissionalmente em Arquitetura e Urbanismo, diferente de outros países, onde existe um “Exame de Ordem”.

Para elucidar a escolha do segundo percurso, o qual remonta uma experiência pessoal como aluno do trabalho coletivo de finalização de curso, conduzido na Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas no ano de 1991 (1), e reproduzida sob minha coordenação no âmbito do TFG do curso da Unesp, campus de Bauru, costumo utilizar algumas indagações a partir do filme Inception, do cineasta Christopher Nolan, traduzido para o português como Origens. O filão comparativo com o mundo arcaico e clássico, que aparece na figura do labirinto e da estudante de arquitetura Ariadne, faz emergir imediatamente as questões relativas à leitura, ao projeto e ao papel do arquiteto e urbanista no projeto da cidade contemporânea.

Perder-se na desordem ou aceitá-la passivamente, procurar na confusão um sentido ou uma estrutura submersa em grau de orientar o projeto, eis o papel assumido por Ariadne, e talvez seja esse o mote para pensarmos o papel do trabalho final de graduação dentro de um quadro mais complexo dos cursos de Arquitetura e Urbanismo. A cidade contemporânea é o resultado de tempos sobrepostos e também, de espaços descontínuos (como retrata muito bem o filme), que entrecruzados com grande complexidade dão vitalidade à metáfora do labirinto. O fio de Ariadne reúne cruzamentos explorados e conhecidos, torna-se uma conexão de pontos nodais, como um traçado que visualiza o percurso e igualmente, assegura o retorno. É a partir dele, entendido como uma estratégia de ação e reflexão, que Ariadne pode revelar, isto é, tornar visível o segredo do labirinto e consequentemente, de sua travessia.

A história da cidade contemporânea, que se problematiza pari e passu com a consolidação do projeto urbano como disciplina, restitui-nos uma história que fala de fundamentos e de camadas de tempos – a cidade como palimpsesto, de transformações e de interpretações infinitas, onde as permanências históricas são pontos fundamentais de reflexão e de interlocução para os novos projetos urbanísticos, arquitetônicos e paisagísticos: história de expansões e adensamentos, de exclusões e inclusões, de inovações e de perdas.

Se a cidade pode ser lida como um texto, o projeto do fragmento, nesse âmbito, é capaz de dialogar com profundidade na sua superfície, nos seus diversos ciclos de vida, conformados em estratos verticais sobrepostos, colocando-se como hipótese de transformação em potencial. É a cidade como lugar revestido de sentido e de valor simbólico, político, social e econômico, na qual cada tentativa de comunicação estabelece uma hierarquia temporal e uma espacial, a partir de uma relação escalar. Dessa forma, a história da cidade é escrita no tempo e em um espaço circunscrito, mesmo que estes sejam fluídos e mutantes, em grau de viver, de se regenerar e de absorver novos significados.

Nesse cenário, o arquiteto e urbanista é um profissional capaz de ler os tempos da cidade, e esta, passível de ser lida, é também aquela apta a ser escrita, em virtude dos seus sinais progressivamente inscritos, identificados e reinterpretados. A habilitação de arquiteto e urbanista para o desempenho das atividades profissionais, não deve ser em hipótese alguma, confundida como um mero treinamento. Para além do desenvolvimento de competências técnicas, a formação profissional envolve a produção de um discurso projetual crítico e transformador da prática, que relaciona os aspectos instrumentais e pragmáticos aos especulativos e ideais; associa a inovação de padrões normativos, quer sociais, técnicos ou plásticos; e dialoga com as temporalidades da cidade existente, com o novo.

Assim, ao invés de induzir os alunos a articular conteúdos compartimentados, os quais atingem o ápice em uma sequência vertical e coloca o projeto como “espinha dorsal”, prefere-se trabalhar o conceito da produção como hipótese de transformação, baseada em uma acurada investigação que coloca o desenho como gerador de conhecimento e de inovações, não apenas um instrumento ou representação. Elimina-se assim, a contradição entre teoria e prática, a diferença entre análise e projeto, apostando na formação de profissionais com capacidade para compreender um acontecimento, reconstruí-lo e reinventá-lo a partir de suas próprias estruturas, dando-lhes a possibilidade de formular e confrontar suas próprias hipóteses.

Quatro projetos – quatro travessias

Os quatro projetos que tenho prazer em vos apresentar constituem-se em quatro travessias, das quais fui o interlocutor nas discussões e na construção de um itinerário de investigação a partir do desenho.

Um Olhar mais Para o Tempo que Para o Espaço, de Ana Beatriz Giovani. TFG 2013 – Unesp/Bauru
Imagem divulgação

No primeiro trabalho intitulado Um olhar mais para o tempo que para o espaço, Ana Beatriz Giovani, após sua experiência de intercâmbio na Europa, coloca como preocupação basilar do projeto, não mais a relação entre Tempo e Espaço, mas a ideia de “projetar o tempo”. No segundo trabalho, de Ana Carolina Semenzato Pinto, denominado Intervenção na zona periférica de São José do Rio Preto: construindo uma identidade, emerge como discussão uma nova relação entre as cidades e suas articulações urbano-territoriais e entre centro e zona periférica, a partir da implantação de um equipamento de impacto regional – um shopping center.

Construindo uma Nova Identidade, de Ana Carolina Semenzato Pinto. TFG 2013 – Unesp/Bauru
Imagem divulgação

Eixo Sé – Arouche é o título do trabalho de Júlia Dourado, aluna que também passou pela experiência de intercâmbio durante um ano na cidade de Évora, em Portugal, tombada pela Unesco como Patrimônio Mundial. Já o quarto trabalho, intitulado Intervenção urbana no centro de São Paulo: um percurso e situação urbana, de Sofia Natsuko, elaborado a partir de uma acurada vivência da cidade de São Paulo e que detecta descontinuidades, descompassos e excesso de superfícies fragmentadas.

O debate sobre a construção de cada itinerário e em toda travessia, requer um distanciamento quase artificial para ajudar no embasamento da hipótese, sem tropeçar-nos em posturas individualizadas.

Travessia 1

A ideia de “projetar o tempo” levou-nos a um diálogo sobre as efemeridades conexas a processos contemporâneos no projeto do espaço público, que pressupunha a necessidade de estratégias operativas e programáticas.

No meu entender, o primeiro diálogo com o aluno que possui um objeto definido e circunscrito deve ser na própria área, a fim de explorar a relação corporal com seu alvo, nas suas relações mais próximas e naquelas mais amplas, isto é, deixar-se absorver pelo espaço na sua dinâmica mais imediata e naquela mais complexa. O debate in loco com Beatriz, na Praça Portugal da cidade de Bauru, objeto central de sua reflexão, levou-nos a uma estratificação escalar da área, na qual facultou o delineamento de um tipo específico de levantamento que levasse em conta a possibilidade de modificações a partir das hipóteses de alterações do tráfego e do entorno, do ponto de vista espacial e programático.

Um Olhar mais Para o Tempo que Para o Espaço, de Ana Beatriz Giovani. TFG 2013 – Unesp/Bauru
Imagem divulgação

Dessa forma, as variáveis temporais dentro do processo projetual poderiam emergir como principal material para elaboração de um cenário hipotético do espaço, a partir de um novo gabarito programático previsto em uma temporalidade mediana, a começar da consolidação de um perímetro ativo, com um fluxo circular de calçadas que fosse capaz de propor uma nova tipologia para a área, incentivando restaurantes e comércios, que estariam localizados na parte basal dos prédios, a exemplo do edifício tripartido Vila Real, localizado no próprio perímetro. A ligação do tráfego com os dois eixos urbano-territoriais, ou seja, a Avenida Getúlio Vargas e Avenida Comendador José da Silva Marta com a Avenida Rio Branco, dar-se-ia em dois níveis explorando o desnível topográfico já existente.

Um Olhar mais Para o Tempo que Para o Espaço, de Ana Beatriz Giovani. TFG 2013 – Unesp/Bauru
Imagem divulgação

As duas hipóteses desenvolvidas, seja a programática ou a espacial, visariam estabelecer uma nova relação entre tempo – espaço – lugar, a partir da indagação de duas possíveis declinações do fator tempo: evento e duração, que são dois instrumentos dinâmicos de controle dos territórios contemporâneos. A nova relação volumétrica criaria um fechamento visual na praça a partir da relação entre cheio (de prédios altos) e vazio (da praça-rotatória), reafirmaria o seu centro como espaços para maiores eventos, seguido de uma superfície contínua que, de um lado, se articularia em duas direções: ascendente – rumo à Avenida Getúlio Vargas até a pista de corrida do aeroporto, perseguindo a ideia de “re-enervamento” de calçadas; e descendente – que exploraria por conectividade vegetal a linearidade da Avenida Comendador José da Silva Marta, que seria integrada a um futuro parque de fundo de vale. O programa da quadra esportiva preexistente, em um movimento contrário, pulverizaria o espaço dilatado da praça com eventos menores. A resolução espacial da praça em patamares lineares e em movimento descendente, seguindo a topografia na direção da Avenida Comendador Joaquim da Silva Marta, consubstanciaria uma resolução técnica de drenagem urbana com a finalidade de atenuar, por cascatas, o movimento das águas pluviais.

O tempo como duração, internalizado em um processo projetual, é capaz de postular um movimento aberto, de introjetar as condições mutáveis da cidade e dos eventos que acontecem na área, ele intervém durante o processo da produção da hipótese projetual, principalmente quando confrontado com os dados das transformações de uso do entorno e da sua capacidade de conversão espacial. Nesse sentido, do ponto de vista metodológico, propôs-se o alargamento do horizonte da problemática a partir de consolidados exemplos na própria cidade, em outras do Brasil e do exterior, isto é, intentou-se o estabelecimento de um diálogo com a referência literária e espacial, baseado em linhas de investigações que emergiram durante a construção do próprio cenário.

Um Olhar mais Para o Tempo que Para o Espaço, de Ana Beatriz Giovani. TFG 2013 – Unesp/Bauru
Imagem divulgação

Dessa maneira, foram explorados dois eixos analíticos: praças distribuidoras de fluxos, resultado de um desenho rodoviário; e a noção de eventos em espaços públicos. No primeiro, é importante explorar o repertório do projetista/ investigador, os espaços vivenciados por ele; e no segundo, o entendimento das diversas concepções de tempo no espaço provenientes de soluções projetuais, contemporâneas ou não. Com isso, levar o arquiteto a entender, por exemplo, que os eventos podem ser ferramentas de legitimação do projeto urbano a partir da instrumentalização dos espaços e das ocorrências temporárias, como também, eles permitem a expressão do espaço temporal de múltiplos atores, são ferramentas de gestão territorial, demarcação diferenciada de abordagens espaciais e temporárias. Os eventos também funcionam como controle dos tempos urbanos, como forma de revelar a história do lugar e da cidade. O domínio do tempo pode ser justificado como ferramenta de controle do espaço; e o evento, como elemento de concretização da visão da cidade.

Nesse sentido, “projetar o tempo” para Beatriz, aconteceu como possibilidade de sondar novos horizontes hipotéticos e criativos de uma adequada transformação, plasmando diversos conteúdos que abrem as portas para um projeto futuro para a cidade de Bauru.

Travessia 2

Eixo urbano-territorial e a construção de uma “nova identidade” na cidade de São José do Rio Preto foi o percurso projetual trilhado por Ana Carolina.

O projeto passou por dois momentos temporalmente distintos: o primeiro, que compõe sua parte inicial, compreendeu a busca de referências projetuais a partir de três categorias: tema, escala e programa; e o segundo, foi o enfrentamento dimensional da aluna com a área a partir de uma prancha impressa na escala 1:200.

Construindo uma Nova Identidade, de Ana Carolina Semenzato Pinto. TFG 2013 – Unesp/Bauru
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Os projetos selecionados pela Ana Carolina na primeira fase passaram por um processo analítico, a começar pela construção de lâminas gráficas que puderam embasar e justificar sua escolha em uma das categorias supracitadas. Assim, a aluna elencou uma série de projetos em que o Tema emergia como elemento principal; da mesma forma, outros em que a Escala coloca-se como centro da concepção projetual; e por fim, o Programa assumindo a preponderância na articulação do projeto com a cidade.

A exigência de serem projetos experienciados in loco, que em certa medida substitui a visita à área, foi embasada pela vivência da própria aluna com outras paisagens e também, da sua participação no curso internacional de extensão universitária: A dimensão paisagística no projeto da cidade contemporânea: um itinerário de estudo nas cidades de Paris, Veneza e Roma.

O passo seguinte foi o confronto direto com a área na sua extensão, explorando as diversas possibilidades de articulações urbanas e territoriais a partir do centro da cidade até a região mais periférica do município de São José do Rio Preto. O desnível entre o centro – parte mais baixa e a área periférica – mais alta, deu a exata escala para a resolução projetual: o território como material operável na construção da paisagem de um eixo urbano-territorial.

Construindo uma Nova Identidade, de Ana Carolina Semenzato Pinto. TFG 2013 – Unesp/Bauru
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A ideia de paisagem possível na geração de uma identidade assumiu uma dupla acepção derivada de diferentes pressupostos, às vezes quase antitéticos: a primeira refere-se à concepção estético-perceptiva, ligada à compreensão visível da paisagem histórica e às sensações que essa provoca na consideração de formas perceptíveis em ângulos dantes invisíveis; a segunda deriva-se das inferências da geografia física, da conformação da avenida e na resolução técnica relativa, tanto à mobilidade como a drenagem urbana. O projeto agencia a sobreposição das duas acepções a partir da criação de um perímetro, dentro do qual, vários eventos são disseminados em diversas escalas, respeitando as relações e demandas do tecido adjacente e da constituição física da área.

A sequência de croquis da aluna, que introduz a segunda parte do seu trabalho, elucida claramente sua concepção projetual, na qual a paisagem como um território é desenvolvida na sua axialidade e absorve múltiplos eventos, que ao serem desenvolvidos em tridimensão, tanto em altura como em depressões côncavas e convexas, explorariam a visão urbana e territorial em uma relação pictórica. Nessa construção, a paisagem é a imagem do território artificializado, com a finalidade de revelar um processo histórico de consolidação urbana do centro para a periferia, em uma unidade orgânica, como um contínuo espaço-temporal.

Construindo uma Nova Identidade, de Ana Carolina Semenzato Pinto. TFG 2013 – Unesp/Bauru
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Esses eventos, ora expressões espontâneas do cotidiano, ora dos esportes, deslocamentos diários, ou mesmo práticas urbanas ligadas à escala regional, às condições climáticas, foram pensados de forma a criar uma sequência temporal e escalar para a ordenação do território. O registro definitivo desses eventos imersos na paisagem é aquele da dimensão temporal narrativa, o qual tornar-se constitutivo para uma nova identidade da cidade, excede o tempo do efêmero e coloca-se na perspectiva da sua reorganização através de um fornecimento adicional de legitimidade à identidade.

Interessante seria imaginar que esses eventos da cidade e região poderiam ser concebidos como múltiplas estruturas, envolvendo diferentes níveis de gestão, demonstrando envolvimento de atores públicos distintos.

Travessia 3

O percurso adotado no Projeto Final de Graduação da aluna Júlia partiu da sua observação atenta ao ordinário, às relações travadas entre os espaços abertos e os construídos, às transformações cotidianas e suas metamorfoses morfológicas, seus usos, como também, à apropriação desses espaços e suas relações em cada camada do tempo.

O olhar cuidadoso na reconstrução dessas camadas, as quais tem um rebaixamento escalar no Eixo Sé – Arouche, evita a queda na clássica (e já anacrônica) evolução urbana, além de explorar as mudanças dos usos nos vários níveis da morfologia do construído, da estrutura viária, dos alargamentos e contrações das calçadas, das mudanças nos lotes e das fachadas, incorporando desde a fase analítica à escala complexa da paisagem urbana.

Eixo Sé-Arouche, de Júlia Coelho Dourado. TFG 2013 – Unesp/Bauru
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Essa postura minuciosa, que é em si uma narrativa, explora o fato ordinário, elevando-o às consequências de sua metamorfose. A análise nesse sentido não se distancia da sua mutação, pelo contrário, absorve-a como elemento fundamental da criação do novo cenário. Como então, damos conta da nossa vida comum, da nossa rotina? De que maneira interrogamos nosso cotidiano? De que forma descrevemo-lo?

Todos esses questionamentos levaram-na a imaginar contextos e ritmos do viver cotidiano como o centro da metrópole de São Paulo, em uma descoberta quase antropológica da cidade e seus espaços multiplicados e distendidos, divididos e diversificados. Esse olhar, então, se deposita na cidade como parte constitutiva da identidade narrativa dos seus habitantes, dos itinerários de seus movimentos e deslocamentos. E assim, mira e observa, organiza, interpreta a cidade e seus territórios, para lançar-se na estética poética de um relato que aciona categorias projetuais. Nele, a cidade desponta como um tecido complexo de deslocamentos e percursos da sua população, herdeiros de tempos narrados e espaços construídos pela comunidade urbana ao longo do tempo, ela exprime-se na trama das resistências e das contestações dos grupos às suas transformações.

Eixo Sé-Arouche, de Júlia Coelho Dourado. TFG 2013 – Unesp/Bauru
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A partir dos anos de 1980, as administrações e os arquitetos e urbanistas começam a rediscutir os espaços centrais sob a ótica de um re-enervamento, o qual pudesse articular o casco histórico dilacerado pela ação imperativa dos carros, das suas necessidades de fruição e também, com uma ação política de retorno das habitações para os centros das cidades.

O projeto da travessia aqui apresentado, incorpora de forma plena essas diretrizes e propõe um cenário com o mesmo recorte extensivo de uma proposta pretérita da administração. Ao invés de um Plano Estrutural amplo, prefere qualificar a estrutura espacial do percurso a partir da construção de uma superfície contínua, que absorve os materiais urbanos existentes na área. Assim, a calçada, a faixa de segurança, o canteiro central, a guia de escoamento e a própria rua fazem parte de um mesmo plano acessível, que gradualmente constrói uma gramática urbana da dimensão pública àquela coletiva.

O plano e a análise do sítio, nesse cenário, são instrumentos fundamentais para projetar a boa qualidade urbana, porque não produz um quadro de imposições, em negativo, mas trabalha as possibilidades da forma e do espaço como material do projeto de cidade. Essa abordagem projetual atenta à dimensão ambiental do tecido urbano, à qualidade do espaço público, requer uma investigação que garanta a valorização da dimensão estética e da morfológica-funcional.

Eixo Sé-Arouche, de Júlia Coelho Dourado. TFG 2013 – Unesp/Bauru
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Esse urbanismo que pretende repercorrer seus objetivos baseando-se na qualidade das transformações do espaço físico e ambiental, radica-se internamente no novo contexto social e econômico, como também, tenta criar um valor agregado que converge em múltiplas estratégias de ações individuais e coletivas, públicas e privadas, a partir de três conceitos: o primeiro põe atenção à cidade e suas partes construídas, que são decompostas e perderam a articulação de outrora, ou seja, entre os espaços públicos e os edificados e entre a própria imagem urbana e o seu limite; o segundo funda-se na tentativa de recompor a cidade mediante uma nova ideia de revitalização ambiental urbana, que se estabelece na correta declinação dos aspectos arquitetônicos e paisagísticos em relação às formas, materiais, equipamentos, percursos, elementos naturais e à copresença de agregações sociais, culturais, recreativas e lugares de memória; e o terceiro instaura-se a partir da qualificação de novas regras para a qualidade ambiental do espaço residencial, perdido ao longo dos tempos.

Tal urbanismo, mais que problematizar e colocar grandes hipóteses, almeja ajudar as administrações locais a governar, quer apontar modos possíveis às cidades na economia contemporânea.

Travessia 4

O trabalho da aluna Sofia Natsue, pela sua experiência cotidiana na metrópole paulista, suscitou um debate teórico-reflexivo sobre a descontinuidade urbana, levando-nos a pensar sobre o sentido e significado do que seria um projeto que pudesse minimizar a excessiva fragmentação dos espaços da cidade, da embriaguez e do excesso de estímulos, da experiência do shock até aquela dos fluxos, das manifestações urbanas teorizadas desde o fim do século 19 até o 21, postuladas por George Simmel (2), Walter Benjamin (3), Siegfried Kracauer (4), Jean Baudrillard (5), Zygmunt Bauman (6) e Paul Virilio (7).

Intervenção Urbana no Centro de São Paulo, de Sofia Natsue Nishimura. TFG 2013 – Unesp/Bauru
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Em outras palavras, o itinerário da Sofia rediscute as formas de investigação do “dinamismo” metropolitano no horizonte contemporâneo. “city collage”, “città generica” ou “junkspace” são alguns conceitos colocados em pauta ao pensar a discussão ontológica da sua estrutura, sobretudo, da sua transformação, que atualiza tradicionais teorias e práticas estético-interpretativas à luz de novas formas experimentais e sensoriais, perceptivas e cognitivas, as quais o tecido metropolitano produziu e ainda produz na vida cotidiana individual.

No contexto mais específico da área escolhida para intervenção, repassa-se os conceitos como o de conservação, renovação urbana, qualidade ambiental, patrimônio, das intervenções feitas em nome da regeneração ou da simples adição de objetos arquitetônicos independentes, conduzindo o olhar naquilo que Vittorio Gregotti (8) denomina de spazio tra le cose.

O percurso que a autora nos propõe é aquele do fotógrafo, que em certa medida, foi escolhido como primeira aproximação de seu objeto e que a conduziu para um recorte físico, a partir do qual começou a expor fraturas, descontinuidades na fruição do esquema espacial do tecido da área central da metrópole de São Paulo.

Intervenção Urbana no Centro de São Paulo, de Sofia Natsue Nishimura. TFG 2013 – Unesp/Bauru
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A abordagem adotada é de uma trama ideal, que ao se sobrepor na cidade real, isola alguns elementos urbanos e ao mesmo tempo, promove uma reinserção urbana do Largo do Arouche, do Calçadão, do Terminal da Bandeira e do Parque do Anhangabaú. Ao superar o conceito “insular” dos lugares, revela uma rede orgânica e sinérgica, recuperando a relação entre conservação e inovação no âmbito do projeto.

Nos exemplos escolhidos, perpassa diagonalmente as noções de acessibilidade e de reconexão urbana que orbitam entre duas polaridades e que revelam o percurso projetual da autora: a descontinuidade e recomposição. Este procedimento que põe como objetivo a recolocação conceitual e operativa do tecido urbano, permite avançar em hipóteses que pressupõem a qualificação do espaço para estimular a renovação da escala arquitetônica e a recuperação do centro como lugar possível de ser habitado, em grau de conferir à cidade existente, uma regeneração de natureza social. Assinala-se dessa forma, uma dimensão estratégica para a própria trama urbana, onde é possível realizar projetos em diversas escalas que acionariam diferentes formas de regulação, exprimindo particularidades e iluminando peculiaridades, tanto no entorno imediato como no tecido mais dilatado.

Logo, a chave reflexiva durante o levantamento é na sua natureza projetual imediata, que se baseia em uma eficaz estrutura cognitiva e interpretativa, pois durante o próprio percurso emerge o ato da delineada experimentação, a partir da indagação de novas formas que poderiam gerar originais pressupostos e parâmetros de intervenção na cidade existente. A taxonomia da trama, a fim de operar uma recolocação na paisagem, aparece na forma de “rua sem saída”, “eixo com problema de circulação”, “espaços subutilizados”, “com pouco uso”, na “rua degradada” e na “rua interrompida”.

Através dessa catalogação, torna-se visível uma série de operações projetuais em diversas escalas e com diferentes normativas, das quais a aluna desenvolve três. Enfim, nessa travessia são investigadas as estratégias regenerativas pelas quais se analisa as transformações do existente, que poderiam se concretizar em ações de reuso, renovação e reciclagem, da menor escala àquela mais ampla e, além disso, poderia refundar a relação entre demolição e conservação relativas às preexistências históricas e contemporâneas, que poderiam influir positivamente no assentamento morfológico. E assim, na tentativa de articular os elementos de descontinuidades, poderia recompor a trama a partir da recomposição de memórias.

Intervenção Urbana no Centro de São Paulo, de Sofia Natsue Nishimura. TFG 2013 – Unesp/Bauru
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São justamente os valores duráveis dos espaços, particularmente iluminados na ação projetual individualizada pelos três projetos escolhidos, que se poderia produzir valorização capaz de enraizá-los no tempo histórico da própria cidade e na ideia benjaminiana de metrópole, entendida como arquétipo do presente.

notas

1
Professores orientadores no tema Habitação Social no Trabalho de Graduação Interdisciplinar da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas, ano de 1991: Abilio Guerra, Ricardo Marques e Spencer Pupo Nogueira.

2
SIMMEL, George. A metrópole e a vida mental. In VELHO, O. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro, Zahar, 1976, p.11-25.

3
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Tradução José Martins Barbosa e Hermerson Alves Batista. Obras escolhidas, volume 3. São Paulo, Brasiliense, 1989.

4
KRACAUER, Siegfried, The mass ornament: Weimar essays. Cambridge, Harvard University Press, 1955.

5
BAUDRILLARD, Jean. Simulacres et simulations. Paris, Galilée, 1981.

6
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2009.

7
VIRILIO, Paul. O espaço crítico. São Paulo, Editora 34, 1993.

8
GREGOTTI, Vittorio. Architettura e postmetropoli. Milão, Einaudi, 2011.

sobre o autor

Adalberto da Silva Retto Júnior é professor de Urbanismo na Unesp – Bauru, responsável pelo Consórcio da Universitè Paris I Panthéon-Sorbonne do Doutorado HERITECHS. Com Pós-Doutorado e Doutorado Sanduíche no Departamento de História da Arquitetura do IUAV di Venezia, e Doutor pela FAU USP.

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