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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Este artigo tem o objetivo de apontar a presença de uma nova variedade de ecletismo na arquitetura contemporânea e discutir os fundamentos econômicos desse fenômeno.

english
This article aims to point out the presence of a new variety of eclecticism in contemporaryarchitecture and discuss the economic basis of this phenomenon.

español
Este artículo apunta a la presencia de una nueva variedad de eclecticismo en la arquitectura contemporánea y analiza los fundamentos económicos de este fenómeno.


how to quote

PULS, Mauricio. A vigência atual do ecletismo. Fundamentos econômicos da arquitetura contemporânea. Arquitextos, São Paulo, ano 16, n. 183.00, Vitruvius, ago. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.183/5641>.

Não, não existia arquitetura no Paraíso: sabemos que Deus era paisagista (1). A primeira casa foi erguida por Adão para se proteger da chuva que caía quando foi expulso do Jardim do Éden, e a primeira cidade só foi fundada por Caim depois de ter sido amaldiçoado pelo Senhor (2). Deus não se opôs à criação da casa e da cidade, mas a invenção da arquitetura o deixou muito contrariado: “O Senhor os dispersou daquele lugar pela face de toda a Terra, e cessaram a construção da cidade. Por isso deram-lhe o nome de Babel, porque ali o Senhor confundiu a linguagem de todos os habitantes da Terra” (3).

Por que Deus rejeitou a arquitetura? Porque a casa e a cidade provêm da necessidade (4), mas a arte constitui apenas uma expressão da vaidade humana (5), como ensina Nietzsche. “Foi por vaidade que os homens construíram a Torre de Babel”, já dizia Voltaire (6). Segundo Rousseau, tudo começou com a propriedade privada: à medida que os homens se tornaram desiguais, passaram a se apresentar como sendo aquilo que não eram: “ser e parecer tornaram-se duas coisas totalmente diferentes” (7). Cada sujeito passou a representar um papel social, a ostentar uma fachada que não correspondia à sua natureza. A arquitetura é a explicitação objetiva dessa máscara subjetiva.

Torre de Babel, pintura de Lucas van Valckenborch, 1594, Museu do Louvre
Imagem divulgação [Wikimedia Commons]

Rousseau argumenta que a arquitetura não é a expressão da virtude, mas do vício: a beleza da arte se alimenta da feiura da sociedade. Os edifícios se tornam mais bonitos à medida que os costumes se tornam mais feios: “Quando os homens inocentes e virtuosos amavam ter os deuses como testemunhas de suas ações, moravam juntos na mesma cabana, mas, assim que se tornaram maus, cansaram-se desses espectadores incômodos e os isolaram em templos magníficos... E os vícios nunca foram levados mais longe do que quando foram vistos, por assim dizer, apoiados, na entrada do palácio dos grandes, sobre colunas de mármore e gravados sobre capitéis coríntios” (8).

Moinho Arundel e Castelo, pintura de John Constable, 1837, Museu de Arte de Toledo
Imagem divulgação [Wikimedia Commons]

Para que servem as obras de arte? Aparentemente não servem para nada, diz John Carey: as evidências empíricas indicam que elas nunca tornaram melhores seus apreciadores (9). Cícero já tinha notado isso na Antiguidade: “Que foi de Atenas quando, depois daquela grande Guerra do Peloponeso, se lhe impuseram tantos chefes pela força? A vetusta glória da cidade, o pomposo aspecto dos seus edifícios, o seu teatro, os seus ginásios, os seus pórticos, os mosaicos célebres dos seus pavimentos, a sua cidadela, as obras de Fídias, o magnífico porto do Pireu, bastavam para fazer de Atenas uma República? Não, certamente, porque nada ali era do povo” (10).

Mas, se a arquitetura não “melhora” o povo, qual é a sua utilidade? Para que gastar tanto com as edificações? “A arquitetura tem uma função política”, esclarece o arquiteto Christopher Wren: “Ela sustenta a nação” (13). Os edifícios não são apenas os alicerces materiais de uma sociedade: eles configuram também seus fundamentos ideológicos. “Nenhum tipo de arquitetura é arbitrário ou inocente, mas, ao contrário, configura-se como um meio para ajudar a legitimar, estabelecer e reproduzir determinado ponto de vista, uma certa ideologia que sustenta qualquer estrutura social” (14). A função da arquitetura sempre foi dar visibilidade ao poder, para inspirar o medo ou a admiração da população: “Só o ser ideal da sociedade, aquele que ordena e proíbe com autoridade, se expressa nas composições arquitetônicas propriamente ditas. Assim, os grandes monumentos se erguem como diques, opondo a lógica da majestade e da autoridade a todos os elementos perturbadores: é sob a forma das catedrais e dos palácios que a Igreja e o Estado falam e impõem silêncio às multidões. É evidente, na realidade, que os monumentos inspiram comportamentos socialmente aceitáveis e frequentemente um autêntico medo”, explica Bataille (15). O objetivo da arquitetura é legitimar o domínio de uma classe sobre toda a sociedade. No melhor dos casos, diz Taylor, a arte é só um objeto consolatório, uma dádiva simbólica para que as massas aceitem as coisas tais como são (16).

Catedral de Reims, pintura de Domenico Quaglio, c.1830, Museum der Bildenden Kunste
Imagem divulgação [Wikimedia Commons]

Deus tinha razão: construir é preciso, embelezar não é preciso. E tanto é assim que ainda hoje os arquitetos projetam somente uma parcela ínfima dos edifícios (17): a arquitetura não é um bem indispensável, mas um produto supérfluo do ponto de vista da grande maioria dos homens. Como explica Vázquez, a beleza surge quando o produtor acrescenta na obra “um excedente em relação ao estritamente utilitário” durante a sua construção, introduzindo formas e materiais não exigidos para seu uso ou seu bom funcionamento e que, ao extrapolar ou exceder a sua função, se tornam decorativos: a arte constitui uma “forma excedente”, que condensa um “trabalho excedente” (18).

As obras de arte são caras, e as arquitetônicas, mais caras ainda: por isso esses cristais de trabalho excedente só aparecem com a sociedade de classes (19). A distribuição dos edifícios não é democrática, mas acompanha a distribuição da riqueza: as classes que detêm o controle do Estado são as grandes proprietárias de bens artísticos, pois dispõem não só dos recursos para adquiri-los e do ócio para usufruí-los esteticamente, mas também porque precisam deles para persuadir as outras classes a apoiar seus projetos políticos. Se dividirmos a esfera econômica em três departamentos produtores de bens (meios de produção, meios de consumo das classes dominadas, meios de consumo das classes dominantes), é fácil perceber que o campo artístico se concentra na última esfera, pois é o produto excedente que financia as residências da classe dominante, os templos religiosos e os monumentos públicos (20). As demais obras integram o campo das construções funcionais.

Mas, apesar de sua nobre destinação, as obras arquitetônicas nunca estão desvinculadas da funcionalidade. Em primeiro lugar porque são elas próprias funcionais: precisam atender a exigências econômicas, políticas e ideológicas. Em segundo lugar porque a linguagem da arquitetura se baseia precisamente nessa realidade prática que está situada não só dentro dela, mas fora dela. Os signos arquitetônicos sempre surgem de variações introduzidas nas construções funcionais: estas constituem o código universal de elementos construtivos, a partir do qual os arquitetos criam um código particular de elementos expressivos, que se destinam à contemplação, e não à utilização. Como observa Lévi-Strauss, toda arte pressupõe uma não-arte, pois ela consiste numa figura significativa que se destaca de um fundo não-significativo (20).

Museu Guggenheim, Bilbao, 1991-1997. Arquiteto Frank Ghery
Foto Nelson Kon

O contraste entre os edifícios eruditos e as construções populares não deriva unicamente das diferenças de riqueza entre as classes – os primeiros são regidos pelo princípio do desperdício, enquanto as últimas obedecem ao princípio da economia (21) –, mas também de seus diferentes objetivos. A arquitetura erudita é extrovertida, pois se dirige explicitamente às classes dominadas como suas interlocutoras: é a arte de uma classe que deseja persuadir as outras. Já a arquitetura popular é introvertida, pois se destina às próprias classes dominadas: ela é a arte de uma classe que ainda não tem a esperança de ser hegemônica. A primeira aspira à universalidade, e por isso expande o espaço; a segunda busca a singularidade, e por isso comprime o espaço (22). Tudo isso muda quando uma classe dominada começa a aspirar à conquista do Estado: suas obras tornam-se maiores, para impressionar os demais grupos sociais, e mais complexas, para seduzi-los. Os palácios renascentistas, verdadeiras fortalezas urbanas, nunca ocultaram os seus objetivos políticos.

As construções funcionais constituem não só o núcleo material das obras arquitetônicas, mas também a sua âncora significativa: toda arquitetura consiste em uma representação da funcionalidade. Alain já tinha notado essa correlação: “Nossos arquitetos se limitaram sempre a copiar as casas... No norte da Itália, fica bastante claro que os palácios imitam as choças em seus terraços, suas colunatas e sua busca de sombra. É razoável deduzir que em todo país a arquitetura sempre copiou o que durava mais e do que se gostava mais, e pretendia somente criar uma obra maior e mais sólida” (23). O arquiteto não “inventa” novas formas, e sim aperfeiçoa as que já existem na esfera cotidiana. E procede assim não só para satisfazer as necessidades materiais de seus proprietários, mas igualmente para realizar seus objetivos ideológicos. Nenhuma obra arquitetônica alcançará o efeito desejado se não incorporar, em seu significado manifesto, algo da visão de mundo das demais classes.

Conjunto Residencial Pedregulho, Rio de Janeiro, 1947-1958. Affonso Eduardo Reidy
Foto Andrés Otero

É por isso que a arquitetura não é apenas um discurso ideológico, mas também uma expressão da consciência coletiva de cada sociedade (24). Sem isso, não haveria motivo para que continuássemos a contemplar pirâmides, templos e catedrais, cujas motivações há muito deixaram de existir. Outras artes podem ser apreciadas por plateias restritas. No caso da arquitetura, isso não é possível: desde o início ela está situada no espaço público. É criada sob a supervisão do Estado e está sujeita à crítica de todos. Por isso as ideias arquitetônicas não podem ser as ideias de alguns: elas precisam ser as ideias de todos. Os edifícios condensam o que é comum aos homens. Se estes não tiverem nada em comum, a arquitetura não conseguirá sobreviver, como aprenderam os construtores da Torre de Babel. Ora, comum a todos é a necessidade. A diferença arquitetônica expressa essa identidade social.

Nos modos de produção pré-capitalistas, o excedente constituía uma riqueza de fruição, da qual boa parte se petrificava sob a forma de arquitetura (26). Com o advento do capitalismo, observa Marx, a parcela do produto excedente reinvestido na produção cresce em detrimento da parcela destinada ao consumo do proprietário, o que limita inicialmente a criação estética: enquanto a mentalidade aristocrática se baseia no “consumo do existente”, a mentalidade capitalista se funda no “investimento do excedente”. Contudo, à medida que a acumulação de capital avança, esse ascetismo rigoroso cede lugar a uma certa ostentação: “Em certo nível de desenvolvimento, um grau convencional de esbanjamento, que é ao mesmo tempo ostentação de riqueza e, portanto, meio de obter crédito, torna-se até uma necessidade do negócio para o ‘infeliz’ capitalista. O luxo entra nos custos de representação do capital” (25). O desejo de ostentar a riqueza passa então a se contrapor à obrigação de investir o lucro. Esse dualismo é o fundamento de duas tendências estéticas do capital: o funcionalismo, que pretende reduzir os gastos supérfluos para aumentar a acumulação de capital próprio; de outro, o ecletismo, que busca exibir os recursos da empresa para obter capital alheio. O funcionalismo extrai sua beleza do núcleo estrutural do edifício, e o ecletismo, de sua casca externa.

A predominância de uma dessas tendências está determinada pelo ciclo econômico: como demonstra Arrighi, a acumulação do capital (o ciclo D-M-D’) se divide em duas etapas (D-M e M-D’), que não valem apenas para cada capitalista singular, mas também para cada sociedade em seu conjunto. Quando predomina a fase D-M (investimento de dinheiro em meios de produção), o dinheiro se imobiliza em uma dada combinação insumo-produto, o que reduz a liquidez e, com isso, as opções de dispêndio do capitalista; quando predomina a fase M-D’, a mercadoria se reconverte em dinheiro, o que amplia a liquidez e, com isso, as opções de dispêndio do capitalista. A primeira etapa (M-D) corresponde a um ciclo de expansão material do capitalismo; a segunda (M-D’), a um ciclo de expansão financeira (26). Na primeira fase, predomina a austeridade; na segunda, a ostentação. É fácil notar a correlação entre os ciclos econômicos e os estilos arquitetônicos. O austero neoclassicismo emerge na etapa de expansão material do ciclo de acumulação liderado pelo capitalismo britânico, ao passo que o ecletismo surge na sua etapa de expansão financeira. O funcionalismo emerge na etapa de expansão material do ciclo de acumulação liderado pelo capitalismo norte-americano, enquanto o pós-modernismo surge na sua etapa de expansão financeira (27).

MAXXI – Museu de Arte do Século XXI, Roma, Itália, 1998-2009. Arquiteta Zaha Hadid
Foto Silvana Romano

Seria correto caracterizar o pós-modernismo como um ecletismo? Em contraste com o modernismo, “o primeiro e único estilo, desde os dias do classicismo, capaz de se impor deveras e até de impregnar o cotidiano” (28), o único atributo comum às muitas vertentes pós-modernas (historicismo, high-tech, desconstrutivismo, populismo etc.) é a rejeição de algum aspecto do funcionalismo. Mas a simples negação de um paradigma estético não cria outro paradigma, apenas um conjunto de possibilidades indefinidas. A negação desse estilo não constitui um outro estilo, mas uma multidão de “estilos”, dos quais nenhum conseguiu se impor no cenário arquitetônico – e nisso já se vão mais de mais de 40 anos. Recentemente, Charles Jencks identificou sete (!) correntes pós-modernas, sendo que alguns arquitetos adotavam mais de um “estilo”. No que estes se distinguem do eclético Heitor de Mello (1875-1920), que usava o estilo Francisco I em quartéis e postos policiais, o Luís XV nas residências particulares, o Luís XIV e o Luís XVI nos demais edifícios públicos? (29). É evidente que o pós-modernismo não constitui um verdadeiro estilo. Suas vertentes representam apenas maneiras diversas de ornamentar um edifício.

De onde vem esse impulso decorativo? Em parte do momento atual do ciclo econômico, marcado pelo predomínio do capital financeiro, que disponibiliza enormes massas de capital aos empreendedores. Mas uma tendência estrutural do capitalismo também contribui para a voga eclética: a mudança na divisão social do trabalho (30). Em razão da concorrência, o capital tende a reduzir continuamente o volume da força de trabalho empregada nas atividades produtivas no setor primário (agropecuária, mineração) e secundário (indústria, construção civil). O aumento geral da produtividade é acompanhado por uma retração dos salários pagos a esses trabalhadores, o que acarreta uma dificuldade estrutural para a comercialização dessa produção ampliada. Essa dificuldade obriga o capital a aumentar a força de trabalho empregada no setor terciário (comércio, comunicações, serviços, transportes, bancos). A terceirização da sociedade provoca mudanças tanto na demanda como na oferta de bens: de um lado, ela amplia a participação das chamadas classes médias no consumo; do outro, aumenta o espaço social destinado ao comércio e aos serviços. Os dois fenômenos convergem nos shopping centers.

Como diz Ghirardo, “o shopping pode ter se tornado o tipo paradigmático de construção do final do século 20, no qual a distinção entre instituições culturais e econômicas diluiu-se a ponto de não ser mais reconhecível. Tudo, de museus a universidades, ruas urbanas e mesmo parques de diversões, reproduz a organização dos shopping centers” (31). Nesses panópticos da classe média, “a vida pública é concebida como movimento passivo ao longo de espaços controlados, onde as únicas arenas de escolha ativa são a seleção de alimentos e as compras” (32). Comer, comprar, divertir-se: o shopping é a versão contemporânea do Jardim do Éden.

Shopping Daslu, Marginal do Rio Pinheiros, São Paulo
Foto Nelson Kon

Marx já tinha percebido o aspecto paradisíaco da esfera da circulação, “um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem”, em comparação com o inferno da esfera da produção (33). Na empresa, o assalariado não é um sujeito, mas sim um objeto, um instrumento do capital. Ao contrário, como consumidor esse indivíduo tem a ilusão de que é livre e igual a qualquer um, pois pode realizar todos os seus sonhos, de acordo com seus rendimentos: servil na fábrica, reina nas lojas. Os homens se convertem em mercadorias que desejam outras mercadorias: o mundo se transforma numa “sociedade do espetáculo, na qual a mercadoria contempla a si mesma” (34).

Daí o sucesso das exposições universais de mercadorias, esses objetos do desejo (35). Desde o início do capitalismo, a felicidade sempre morou do outro lado da vitrine. O que vem mudando é a quantidade e a dimensão das vitrines: mercados, supermercados e hipermercados, de um lado; galerias, lojas de departamento e shopping centers, de outro. As dificuldades de realização do capital provocaram um deslocamento da necessidade de produzir para a necessidade de vender. A arquitetura funcionalista realçava a utilidade dos edifícios, pois estava centrada no valor-de-uso dos prédios. Criado na era da publicidade, o pós-modernismo não vende produtos, e sim embalagens: “À medida que o capital privado se subordina a um determinado valor-de-uso, a estética da mercadoria ganha não só um significado qualitativamente novo para codificar informações recentes, mas também se desliga do corpo da mercadoria, cuja apresentação é reforçada pela embalagem e divulgada em várias regiões através da propaganda” (36). As marcas não revelam a utilidade do produto, mas o “estilo de vida” ligado ao mesmo. Com frequência são lançados produtos piores que os antigos, mas a diminuição qualitativa e quantitativa da utilidade “é compensada pelo embelezamento” (37).

IBA Social Housing, Berlim, 1981-1985. Arquiteto Peter Eisenman
Foto Divulgação [Eisenman Architects]

Uma “sociedade de consumo” precisa mesmo de uma arquitetura mais colorida e esfuziante, de uma embalagem mais chamativa: o que apenas é, mas não parece ser, não é vendável. Só o que parece ser é vendável: “O que realmente promove as vendas é a embalagem” (38). A concorrência deslocou-se para o plano da imagem, e os arquitetos sabem disso. O espaço interno em geral sofre um pouco com isso. Ao comentar o prédio de Peter Eisenman na IBA, Ghirardo assinala que “o esquema deixou atrás de si alguns cômodos de forma esquisita, sem dúvida inconvenientes para tudo, exceto como assunto de conversa. Sem a enérgica eficiência dos projetos de Lutzowufer ou a criatividade dos apartamentos de Rossi em Tiergarten, a planta das unidades individuais é surpreendentemente convencional” (39). No edifício de Zaha Hadid em Kreuzberg, os apartamentos exibem por vezes uma parede inclinada, mas nos demais aspectos “são rotineiros” (40). Mas talvez Ghirardo seja uma historiadora muito cética. Vejamos um crítico mais comedido. Ao descrever o quartel de bombeiros de Zaha Hadid em Weil am Rhein, Tietz afirma: “A funcionalidade parece ser secundária. E, de fato, o quartel de bombeiros perdeu hoje em dia a sua função original, tendo se tornado uma peça de museu” (41). Que beleza!

IBA Housing, Berlin-Kreuzberg, 1986-1993, arquiteta Zaha Hadid
Foto Christian Richters [Zaha Hadid Architects]

O fundamento do ecletismo pós-moderno reside nesse descolamento em relação à funcionalidade: se não há referência à realidade prática, qualquer embalagem é possível. A utilidade pode ser a mesma (ou um pouco pior), mas o embrulho pode ter qualquer forma. Essa disjunção entre o ser e o parecer constitui um limite estético: conforme explica Gadamer, um edifício somente se transforma numa verdadeira obra arquitetônica quando apresenta a sua relação com o homem e com o mundo (42). A diversidade infinita de estilos não é uma virtude, como não o era no século 19, pois, como ensinava Aristóteles, “é possível errar de muitos modos, mas só há um modo de acertar” (43).

notas

NA – O artigo abaixo foi produzido para a disciplina “Tempo e Espaço na Arquitetura Moderna”, ministrada pelos professores Carlos Augusto Mattei Faggin e Jorge Bassani na FAU-USP, em 2011, e apresentado a alunos de arquitetura e filosofia da UFMG, em 2014.

1
NUNES, Benedito. Ensaios filosóficos. São Paulo, Martins Fontes, 2010, p. 43; BACON, Francis. Ensaios. Lisboa, Guimarães, 1992, p. 161.

2
RYKWERT, Joseph. La casa de Adán en el paraíso. Barcelona, Gustavo Gili, 1999, p. 144-146; Bíblia Sagrada. São Paulo, Editora Ave Maria, 2000, Gênesis, 4-17.

3
Bíblia Sagrada. São Paulo, Editora Ave Maria, 2000, Gênesis, 11-8.

4
PLATÃO. A República. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, 369b.

5
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000, p. 9-19.

6
VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. In Voltaire. São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 106.

7
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. In Rousseau. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 273.

8
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Discurso sobre as Ciências e as Artes. In Rousseau. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 354.

9
CAREY, John. Para qué sirven las artes? Buenos Aires, Sudamericana, 2007, caps. 4 e 5.

10
CÍCERO, Marco Túlio. Da República. In Epicuro/Lucrécio/Cícero/Sêneca. São Paulo, Nova Cultural, 1988, p. 171.

11
KRUFT, Hanno-Walter. Historia de la teoría de la arquitectura. Madrid, Alianza, 1990, vol. I, p. 312.

12
CORTÉS, José Miguel Garcia. Políticas do espaço. São Paulo, Senac, 2008, p. 61.

13
BATAILLE, Georges. Architecture. In LEACH, Neil (org.). Rethinking Architecture. London and New York, Routledge, 2001, p. 21.

14
TAYLOR, Roger. Arte, inimiga do povo. São Paulo, Conrad, 2005, cap. 3.

15
GHIRARDO, Diane. Arquitetura Contemporânea – uma história concisa. São Paulo, Martins Fontes, 2009, p. 39.

16
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. As Ideias Estéticas de Marx. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978, p. 98.

17
MILL, John Stuart. Princípios de economia política. São Paulo, Abril Cultural, 1983, p. 33-35.

18
STEVENS, Garry. O círculo privilegiado: fundamentos sociais da distinção arquitetônica. Brasília, Universidade de Brasília, 2003, p. 100-105.

19
LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 28.

20
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, 1974, p. 113.

21
KAVOLIS, Vytautas. La expresión artística: um estúdio sociológico. Buenos Aires, Amorrortu, 1970, p. 74-106.

22
ALAIN. Sistema de las Belas Artes. Buenos Aires, Siglo Veinte, 1967, p. 148.

23
LUKÁCS, Georg. Estética. Barcelona, Grijalbo, 1982, vol. IV, p. 122.

24
MARX, Karl. Teorias da Mais-Valia. São Paulo, Difel, 1985, vol. 2, p. 963.

25
MARX, Karl. O capital, crítica da economia política. São Paulo, Abril Cultural, 1983, vol. I, cap. XXII.

26
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX. Rio de Janeiro/São Paulo, Contraponto e Unesp, 1996, p. 5-8.

27
Idem, ibidem, p. 219.

28
HABERMAS, Jürgen. Arquitetura moderna e pós-moderna. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 18, 1987, p. 118.

29
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1999, p. 35.

30
MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo, Abril Cultural, 1982, cap. 12.

31
GHIRARDO, Diane. Op. cit., p. 99-101.

32
Idem, ibidem, p. 55.

33
MARX, Karl. O capital, crítica da economia política. São Paulo, Abril Cultural, 1983, vol. I, cap. IV.

34
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, p. 53.

35
BENJAMIN, Walter. Paris, capital do século XIX. In Walter Benjamin. São Paulo, Ática, 1991, seção III.

36
HAUG, Wolfgang Fritz. Crítica da estética da mercadoria. São Paulo, Unesp, 1996, p. 37.

37
Idem, ibidem, p. 53.

38
Idem, ibidem, p. 42.

39
GHIRARDO, Diane. Op. cit., p. 141.

40
Idem, ibidem, p. 141.

41
TIETZ, Jürgen. História da arquitectura contemporânea. China, H.F. Ullmann, 2008, p. 104.

42
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis, Vozes, 2002, p. 161.

43
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. In Aristóteles. São Paulo, Abril Cultural, 1979, 1106b.

sobre o autor

Mauricio Puls é sociólogo formado pela USP e é autor dos livros Arquitetura e filosofia (Annablume, 2006) e O significado da pintura abstrata (Perspectiva, 1998).

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