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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O artigo revisita a noção moderna de cidade como coleção de objetos operáveis, através de uma aproximação ao edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (1954-1956), Cidade Universitária de Caracas, obra de Carlos Raúl Villanueva.

english
The article revisits the modern notion of the city as a collection of workable objects, through the inspection of the Faculty of Architecture and Urbanism’s building (1954-1956), University City of Caracas, by Carlos Raúl Villanueva.

español
El artículo revisita la noción moderna de ciudad como colección de objetos operables, mediante una aproximación al edificio de la Facultad de Arquitectura y Urbanismo (1954-1956), Ciudad Universitaria de Caracas, obra de Carlos Raúl Villanueva.


how to quote

CABRAL, Cláudia Piantá Costa. Villanueva e a cidade dos objetos. Arquitextos, São Paulo, ano 16, n. 190.04, Vitruvius, mar. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.190/5992>.

Introdução

Colin Rowe descreveu a cidade da arquitetura moderna como o inverso do formato da cidade tradicional, de tal maneira que ambas poderiam apresentar-se como leituras alternativas de um diagrama Gestalt que ilustrasse as duas caras do fenômeno figura-fundo. Nestes diagramas, se a cidade da arquitetura moderna é quase branca, a cidade tradicional é quase negra; se a cidade da arquitetura moderna é a acumulação de sólidos em um vazio quase sem manipular, simetricamente, a cidade tradicional é a acumulação de vazios em um sólido pouco manipulado (1).

Philippe Panerai e Jean Castex apontaram a mesma inversão de perspectiva da cidade da arquitetura moderna com relação à cidade tradicional. Ao descreverem as transformações das formas urbanas, do quarteirão Haussmanniano a Cité Radieuse de Le Corbusier, eles demonstraram um processo de progressiva emancipação das tipologias arquitetônicas para com o marco regulador do parcelamento, através do qual o tecido urbano historicamente constituído podia ser substituído por uma “coleção de objetos manipuláveis” (2).

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (1954-1956), Cidade Universitária de Caracas. Carlos Raúl Villanueva
Foto Cláudia Cabral

Estes autores não deixam de advertir que a Cité Radieuse de Le Corbusier é de certa forma uma ideia nunca realizada. Mas é ao mesmo tempo impossível não reconhecer a enorme influência teórica dessa proposição sobre o pensamento urbanístico do século 20. Até que ponto existe realmente a cidade da arquitetura moderna, mais além de Brasília, Chandigarh, ou de um conjunto esparso de fragmentos correspondentes a áreas urbanas que foram renovadas ex-novo segundo esses princípios, é um tema ainda por debater. No acervo arquitetônico moderno, as cidades universitárias certamente constituíram alguns destes trechos de "cidade da arquitetura moderna” - ou trechos da cidade que a arquitetura moderna queria construir , recorrendo ao sentido proposto por Rowe –, e que hoje tantas vezes aparecem como manchas inscritas num tecido de cidade tradicional. Este é precisamente o caso da zona ocupada pela Cidade Universitária de Caracas, Venezuela, projeto no qual trabalhou Carlos Raúl Villanueva desde 1943 até a sua morte em 1970. Ainda que os planos iniciais de Villanueva para a Cidade Universitária revelem uma abordagem acadêmica, de acordo com sua formação Beaux Arts, o seu desenvolvimento confirmou uma escolha em favor da cidade da arquitetura moderna, e portanto, da cidade que corresponde a um diagrama onde os objetos são figura, e o espaço aberto é fundo.

Setor Diretivo e Cultural, Praça da Reitoria, Cidade Universitária de Caracas(1943-1970). Carlos Raúl Villanueva
Foto Cláudia Cabral

A Cidade Universitária de Caracas tem sido estudada pelo seu enorme significado para a arquitetura moderna, tanto no âmbito latino-americano quanto internacional, e sobretudo desde o ponto de vista de sua relação com o tema da síntese das artes. Como se sabe, Villanueva introduziu nos espaços exteriores e nos edifícios da Cidade Universitária um acervo artístico espetacular. Com relação a este tema, o setor de maior importância da Cidade Universitária é o Centro Diretivo e Cultural, realizado entre 1952-1954, onde as nuvens de Calder se incorporam ao tratamento acústico do forro da Aula Magna, e os murais de Léger ou Vasarely modulam os espaços da Praça Coberta (3).

Esse trabalho tomará outra direção. Aceitando no primeiro momento a premissa de que Villanueva trabalhou desde o princípio no marco de uma composição elementar, e projetou o que se pode chamar de uma cidade de objetos, o artigo tratará de realizar uma aproximação particularizada a um destes objetos: o edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, projetado e construído por Villanueva entre 1954-1956. Esse movimento tem por objetivo atualizar a crítica do objeto empreendida nos anos oitenta - como parte de uma tomada de consciência das possibilidades e limitações da cidade da arquitetura moderna -, desde a perspectiva do objeto e suas relações, se existem. Isso implicará adotar certos pontos de vista, a seguir esboçados, que visam situar o objeto segundo um conjunto de dimensões heterogêneas - físicas, temporais, artísticas - porém complementares para a descrição de uma complexidade talvez mais problemática do que geralmente admitido.

O velho guitarrista. Pablo Picasso, 1903 [Wikimedia Commons]

O velho guitarrista, detalhe. Pablo Picasso, 1903 [Wikimedia Commons]

A memória dos objetos

A palavra pentimento, que vem do italiano arrepender-se, mudar de ideia, é usada na pintura num sentido bem específico. O pentimento significa o “arrependimento” do artista. Refere-se a um estado anterior, modificado durante o processo de pintar, e que ficou apagado, até que o tempo afinou as camadas de tinta, tornando-as transparentes, e mostrando aquilo que havia ficado por baixo, que prevaleceu em determinado momento, mas que depois deixou de valer. Há exemplos famosos de pentimento, como o rosto feminino que aparece por trás do Velho Guitarrista de Picasso, óleo de 1903.

Provavelmente teríamos imagens dessa natureza, se pudéssemos sobrepor todos os planos que Villanueva desenhou para a Cidade Universitária. E se estes desenhos estivessem uns sobre os outros como as sucessivas camadas de tinta na tela, nós não veríamos a cidade universitária constituir-se apenas através do preenchimento consecutivo das suas zonas, ou do avanço do preto sobre o branco, para usar os termos de Rowe; nós veríamos uma série de transformações sucessivas. Essas transformações revelariam um desenvolvimento que não obedece necessariamente a um avanço linear, no qual o movimento seguinte está prefigurado pelo movimento anterior, como a entrega de capítulos previsíveis. Elas revelariam, ao contrário, um desenvolvimento que nunca exclui as alterações fundamentais de rumo.

A primeira tarefa é situar a Faculdade de Arquitetura com relação à ampla operação projetual que foi o trabalho de Villanueva na Cidade Universitaria, entre os anos de 1943 e 1970. Operação transformadora da paisagem, da conjuntura urbana, do destino de um lugar, como corresponde a qualquer iniciativa dessas dimensões, mas sobretudo, no caso da Cidade Universitária, como operação permanentemente transformadora, mesmo com relação as suas próprias estratégias. O projeto da Cidade Universitária é uma espécie de evento em desenvolvimento, cujo tempo verbal é sempre no gerúndio. O jogo completo dos sucessivos planos elaborados por Villanueva para a Cidade Universitária datados entre 1943 e 1962 (4), dá conta do que se propõe chamar de uma certa profundidade do plano existente na Cidade Universitária. Diversos planos subjazem por baixo do plano afinal realizado; há diversas composições que poderiam ter sido, mas que Villanueva desejou modificar (5).

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Cidade Universitária de Caracas, destaque da autora [Folder da Exposição Carlos Raúl Villanueva y la Ciudad Universitária de Caracas, Barcelona]

Além disso, a Cidade Universitária é um projeto que tem um autor, Villanueva, a despeito de que seja também o trabalho de uma equipe (6). Essas transformações não podem ser atribuídas, como em muitos casos, a intervenções de outros, como alterações que um projeto muitas vezes sofre ao longo do tempo porque distintos sujeitos interferiram sobre ele. Se essas alterações podem ser circunstanciais – no sentido de que respondem a circunstâncias do presente que o plano original não podia prever - , elas nada tem de acidentais. Não se devem a uma visão totalmente empírica, nem ao que se poderia considerar como uma crítica do plano, ou das limitações do plano, e a uma aproximação às noções de “obra aberta”. Ao contrário, sempre existe “um plano”. Apenas as peças que formam a figura que corresponde ao plano podem mover-se, podem desaparecer, podem incorporar outras peças e produzir, enfim, uma outra figura, diferente, sobre a anterior.

Nesse sentido, o lugar onde vai localizar-se a Faculdade de Arquitetura em 1954 nunca foi um lugar vazio. Com relação a esses planos que se sucederam no tempo, o lugar da Faculdade teve distintas formas. Como se pretende demonstrar, as questões de implantação e as alternativas tipológicas da Faculdade de Arquitetura respondem a essa transformação do plano, e aos rumos posteriores a 1950. Na cidade tradicional, como sabemos, existe sempre a ordem invisível do parcelamento; ao subdividir-se ou remembrar-se lotes, determinadas modos de ocupá-los tornam-se mais ou menos viáveis, algumas tipologias são favorecidas, enquanto outras são para sempre excluídas. É possível perguntar: no projeto da cidade moderna, o plano de figura e fundo pode exercer um papel de certo modo análogo?

Plano para a Cidade Universitária de Caracas de 1944. Carlos Raúl Villanueva [CERISOLA, Javier (coord.) Carlos Raúl Villanueva y la Ciudad Universitária de Caracas]

Os primeiros planos de Villanueva para a Cidade Universitária (1943-1944) correspondem a uma composição acadêmica, dominada por um eixo de simetria Leste-Oeste, com o Hospital Clínico na cabeceira oeste e a zona esportiva na ponta leste. Na zona central, reforçando o esquema axial, estava a grande esplanada definida por edifícios posicionados à esquerda e à direita. Entretanto, entre 1949 e 1950, já com a zona médica instalada e os estádios em construção, Villanueva abandona a estratégia acadêmica como o princípio estruturador do plano, para aproximar-se dos critérios da composição moderna na concepção urbanística. Os estudiosos de Villanueva coincidem em considerar o conjunto do Centro Diretivo-Cultural, concluído em 1953, como a peça chave nessa mudança de rumo, e também como momento culminante da arquitetura de Villanueva. O conjunto ocupa uma franja paralela ao eixo de simetria original do plano, limitando com a zona médica através de um tramo do sistema de corredores cobertos, que praticamente estabelece uma linha divisória entre os dois momentos. Com essa franja Villanueva corrompe a estrutura simétrica do plano original, posicionando os distintos edifícios administrativos e culturais que compõe o complexo - Reitoria, Aula Magna, Paraninfo, Sala de Concertos, Biblioteca – segundo uma nova ordem dinâmica, que responde essencialmente à produção de uma sequência de espaços intermediários, abertos e cobertos, que os integra. É nesse espaço propositalmente ambíguo da praça coberta e adjacências que Villanueva concentra a maior densidade de obras de arte da Cidade Universitária: Leger, Vasarely, Arp, Manaure, entre outros.

Vista aérea da Cidade Universitária de Caracas (1943-1970). A Faculdade de Arquitetura (1954-1956) é o edifício alto mais próximo ao Estádio Olímpico [skycrapercity.com]

As questões de implantação e as alternativas tipológicas da Faculdade de Arquitetura respondem a essa transformação do plano, e aos rumos posteriores a 1950, segundo três operações mais ou menos interligadas

  • a passagem do esquema axial, presidido pelo Hospital Clínico a oeste e arrematado pelo estádio a leste, a uma organização por franjas;
  • a progressiva ocupação do que antes era uma esplanada central retangular;
  • a constituição arquitetônica de um sistema pedestre através das calçadas cobertas (7).

Os programas especiais, concentrados no complexo cultural, foram dispostos como elementos transversais ao eixo que antes estruturava a composição. As escolas, ou os programas repetitivos, que seriam o tecido conjuntivo da Cidade Universitária, irão colocar-se ao longo desse antigo eixo, fazendo-o desaparecer na franja central. A ideia da esplanada retangular, configurada por planos regulares e relativamente contínuos de edificação, que é comum no campus universitário em geral, e também no campus moderno, como por exemplo na Cidade Universitária do México (Mario Pani, Enrique del Moral, 1947-1954), se dissolve. A grande praça aberta do campus adquire afinal uma configuração bem mais relaxada. O limite permeável do passeio coberto define o seu desenho a leste, permitindo a expansão da área aberta na direção nordeste. Pelo seu lado oeste, a praça é como a margem contra a qual se destacam os volumes do centro cultural. A construção da Faculdade de Engenharia (1953) demonstra como o preenchimento do lugar onde antes se previa a grande esplanada liberada se faz com uma série de pavilhões horizontais, de planta retangular, cuja dimensão maior está sobre a direção Leste-Oeste, direção ordenadora do esquema axial inicial. A vizinha Faculdade de Humanidades (1954) também se compõe de corpos baixos.

Setor Diretivo e Cultural (1952-1953), Cidade Universitária de Caracas. Carlos Raúl Villanueva
Foto Cláudia Cabral

Praça Coberta (1952-1953), Cidade Universitária de Caracas. Carlos Raúl Villanueva
Foto Cláudia Cabral

Desse modo, o plano geral de 1962, já com a Faculdade de Arquitetura, mostra como ela se inscreve num terreno adjacente a essa franja ocupada principalmente por construções horizontais. O terreno da Faculdade de Arquitetura ocupa parte da última franja edificada, antes da zona esportiva, dominada pelo volume do estádio. A Faculdade de Arquitetura é geralmente identificada com uma mudança de postura de Villanueva com relação à interpretação do programa das escolas, definindo um momento de transposição da solução horizontal para a torre (8). Entretanto, esse deslocamento não se dá sem que estejam previstos, pelo partido, certos elementos de composição destinados a recompor os nexos entre os dois sistemas.

A estrutura dos objetos

A segunda tarefa nesta aproximação é a descrição circunstanciada do objeto. A solução em altura que Villanueva adota na Faculdade de Arquitetura (1954-1956) se diferencia do padrão do pavilhão horizontal que estava sendo adotado para as escolas, como em Humanidades e Engenharia. Villanueva usa uma alternativa tipológica que em parte se opõe a esse tipo de ocupação extensiva com o uso mais ou menos generalizado do pavilhão horizontal, decisão que lhe permite potencializar a densidade construtiva do campus. Ele adota a placa desenvolvida em altura, de planta retangular, com o lado maior sobre a direção Leste-Oeste, associada a uma ideia de base conformada por volumes baixos e variados.

O Plano de Conjunto de 1954, desenhado por Posani, firmado por Villanueva, mostra os rasgos gerais do partido adotado na Faculdade de Arquitetura (9). A alternativa deriva da conhecida estratégia moderna da decomposição do programa em partes e atribuição de volumes específicos a essas partes. Um programa basicamente homogêneo como o das salas de aula pode se resolver com a repetição de um pavimento tipo, gerando a placa de 10 pavimentos. Três grandes ateliês ao modo Bauhaus – Ateliê de Composição, Ateliê de Texturas, Ateliê de Ensaios Visuais - correspondem a uma plataforma horizontal de coberturas variadas. Auditório e sala de exposições produzem outros dois volumes que podem ser claramente individuados.

Faculdade de Arquitetura (1954-1956). Carlos Raúl Villanueva [CERISOLA, Javier (coord.) Carlos Raúl Villanueva y la Ciudad Universitária de Caracas]

O desenho de 1954 mostra ainda como a organização no terreno se dá a partir de um gesto inicial de prolongamento dos passeios cobertos, que dividem o lote em três partes. O posicionamento relativo dessas partes está regulado pela geometria do lote, pelas necessidades internas do programa, pelas conveniências de habitabilidade, mas também pela sua posição no conjunto. A placa alta está disposta exatamente sobre o sistema de referência dos passeios pedestres. A franja norte é ocupada por um volume horizontal, de coberturas variadas, que de certo modo prolonga o tecido de pavilhões nessa direção. Os volumes do auditório e da sala de exposição, articulados à base por uma discreta rotação, ao mesmo tempo em que afirmam a autonomia da base com relação à placa, reconhecem a excepcionalidade da esquina e o desenho da via.

Antecedentes tipológicos para a organização em altura existem. O primeiro deles é o próprio Hospital Clínico. Mas muito mais próximo em termos de escala é o edifício da Biblioteca Central. Este edifício é um dos elementos que compõem o centro cultural (1952-1953), ao lado Aula Magna e da Praça coberta, às quais se liga através da continuidade de um pavimento térreo sempre permeável, que escorrega por entre esses equipamentos. À época da construção, se pode apreciar como a Faculdade de Arquitetura e a torre da biblioteca irão criar uma certa ressonância, pelo lado esquerdo, do volume do Hospital na cabeceira, e de certa maneira, provocar a sensação de um movimento ascendente em altura do centro para a periferia, assim como ocorre com as arquibancadas do estádio (na ponta leste), e mesmo com a presença das montanhas. Com o tempo, a construção da Faculdade de Economia (1959-1964), do outro lado da Faculdade de Humanidades, espelha esse efeito.

Biblioteca e Sala de Concertos, Setor Diretivo e Cultural (1952-1953), Cidade Universitária de Caracas. Carlos Raúl Villanueva
Foto Cláudia Cabral

As relações entre volumetria e planimetria são bastante diretas. A volumetria da Faculdade de Arquitetura coincide com os grandes grupos do programa. O Ateliê de Composição está ao fundo, na fachada norte; o Ateliê de Texturas e o Ateliê de Ensaios Visuais estão separados por um amplo corredor de circulação que se prolonga, ligando esse corpo horizontal à placa que se desenvolve em altura, abrigando as salas de aula; contra a placa, destacam-se os volumes do auditório e da sala de exposições (fig. 9; fig. 11).

Por outro lado, o que não se vê na volumetria, e sim na planimetria, é como o sistema de movimentos exerce um papel de estruturação das plantas, e como esse papel está ligado a existência do sistema de passeios cobertos. As possibilidades de ingresso estão sempre associadas aos corredores cobertos, que não apenas indicam acessos, mas são importantes elementos direcionais dentro do edifício. A posição da torre é determinada pelo sistema de corredores, arrancando do ponto onde se cruzam, e estendendo-se sobre a direção Leste-Oeste. Ao mesmo tempo, o passeio coberto ao sul cria, com a planta baixa da torre, um certo quadro de referencia contra o qual se dispõem os volumes articulados do auditório e da sala de exposições, tendo o foyer como zona de descompressão entre as duas geometrias. Os corredores virtualmente persistem no interior do edifício conectando e acomodando diferentes estruturas. Esse é o caso da planta baixa da torre, que se converte numa espécie de alargamento do corredor, como elemento do espaço aberto, situação favorecida pela abertura total desse pavimento ao pátio adjacente na face norte.

Maquete da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na Exposição Carlos Raúl Villanueva y la Ciudad Universitária de Caracas, Barcelona, FAD, 2009
Foto Cláudia Cabral

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (1954-1956). Carlos Raúl Villanueva
Foto de Paolo Gasparini [Folder da Exposição Carlos Raúl Villanueva y la Ciudad Universitária de Caracas, Barcelona]

Já o corte oferece outras chaves, evidenciando a interpretação que dá Villanueva ao problema da base, usando uma mesma técnica, um mesmo sistema construtivo, o concreto armado, porém modulando esse sistema para criar uma solução específica, ad hoc, para cada situação. No auditório e na sala de exposições Villanueva recorre ao pórtico exterior, como havia feito na Aula Magna e na Sala de Concertos (fig. 10), que lhe permite o forro liso desde o espaço interior, em soluções aparentadas, mas não idênticas (10). Nos espaços de atelier usa as lajes de concreto dobradas, de modo a obter com isso possibilidades interessantes de iluminação desses espaços mais profundos, assim como no corredor central essa laje é em geral mais baixa, permitindo a entrada de luz. O resultado dessa combinação, do ponto de vista da definição do corpo horizontal do edifício, não é a noção de superfície horizontal e contínua, que pertence à tradição da base definida por uma laje plana, como uma solução típica no movimento moderno, mas ao contrário, de superfície acidentada, com diversos episódios que se sucedem, como num relevo inventado, constituído por placas que se levantam, se dobram, se abrem, num efeito origami que se introduz também no tratamento dos elementos verticais de vedação.

O edifício é uma variação, levada quase ao limite, do tema torre + base horizontal. Digo variação, porque nesse caso uma base muito heterogênea, em razão do desejo de reciprocidade para com o programa, discute o sentido de correspondência binária que é próprio da alternativa base + torre. Seja pelas coberturas com formas e alturas descontínuas que permitem entradas de luz e a visualização do exterior, seja pelos volumes do auditório e da sala de exposições que se individualizam, seja pelos recursos de descolamento entre os componentes da base e torre em ambos lados, a ideia da base como a plataforma da torre é ao mesmo tempo afirmada e contestada. A torre não está sobre a sua base; e a base é ela mesma um conjunto de elementos aparentados, mas diferentes entre si.

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (1954-1956). Carlos Raúl Villanueva
Foto Cláudia Cabral

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (1954-1956). Carlos Raúl Villanueva
Foto Cláudia Cabral

No caso da torre, as fachadas são diferentes entre si, mas há certas recorrências: a presença reguladora da estrutura portante; o emprego de elementos de proteção solar; o uso de superfícies perfuradas; o mural integrado às superfícies cegas. A estrutura porticada completa vai permanecer sempre visível nas fachadas. Os elementos de proteção solar, que são placas de concreto penduradas na estrutura, arrancam da última linha da estrutura, portanto liberando o balanço nas faces menores, mas tem desenhos diferentes entre as fachadas opostas. A fachada norte da placa é mais ou menos uniforme, com os elementos de proteção solar estendidos sobre o plano da fachada, regrados pela estrutura. Já a posição assimétrica da caixa de escadas e a inclusão de uma sala maior na cabeceira provoca uma variação na fachada sul. Interrompida pelo bloco de circulação vertical, a fachada sul responde a duas situações, sala de aula e corredor. A linha de pilares coincide com o plano das fachadas mais extensas da placa, norte e sul, e a laje avança em balanço nas duas fachadas menores, leste e oeste.

Villanueva explora texturas particulares, obtidas pelas relações de composição entre essa estrutura que se evidencia – sistema de pórticos, coberturas, etc. – e o concreto usado no papel da vedação, isto é, ao invés da superfície envidraçada, a superfície perfurada, engendrando as combinações de luz e sombra que se projetam sobre as demais superfícies planas. O uso do concreto é generalizado, mas o que se observa é a presença dominante da estrutura, nunca do muro de concreto. A exceção do volume do auditório, os planos de vedação que se estendem entre a estrutura portante, ou recebem murais, ou correspondem a superfícies preenchidas com elementos vazados de concreto. É exemplar neste caso a integração dos murais de Alejandro Otero às fachadas leste e oeste da torre. Os murais se estendem de laje a laje, de modo que a estrutura funciona como a pauta reguladora para as composições pictóricas de Otero. Ao mesmo tempo em que visivelmente procedentes de pesquisas anteriores de Otero, os murais seguem, e servem, à visão basicamente arquitetônica de Villanueva para a organização das fachadas, a qual atribui aos componentes tectônicos – lajes, pórticos – o papel de elementos ordenadores e reguladores da composição.

Estudio 4. Alejandro Otero, 1952 [JIMÉNEZ, Ariel et al. Desenhar no espaço: artistas abstratos do Brasil e da Venezuela. Por]

O objeto mediador

Os edifícios podem aceder à categoria que se propõe considerar como “objeto mediador”, na medida em que, sem deixar de constituir objetos fisicamente isolados, participantes de um sistema figura-fundo que corresponde a ideia de cidade da arquitetura moderna, tal como definida por Rowe e Panerai, são capazes de estabelecer, por suas características internas e por seu valor de posição, uma série de nexos nem sempre evidentes, que de certa maneira problematizam o status do objeto. Em caminho talvez paralelo a determinadas posturas artísticas da segunda metade do século 20, oportunizam uma atualização crítica da noção moderna de cidade de objetos.

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (1954-1956). Carlos Raúl Villanueva
Foto Cláudia Cabral

Em suas dimensões urbanas, o edifício da Faculdade de Arquitetura é uma peça da cidade da arquitetura moderna. Ele corresponde ao objeto negro sobre o branco de Rowe, sólido sobre vazio. Muitos identificaram esta cidade da arquitetura moderna com o jogo mais ou menos arbitrário de dispor objetos novos sobre o vazio sem história, a tabula rasa. Não é difícil encontrar exemplos que manifestem a condição muitas vezes problemática do vazio moderno, em sua suposta incapacidade para reproduzir os espaços públicos vivos e ativos das cidades tradicionais. Villanueva aceitou as dificuldades deste jogo: atribuir sentido ao vazio. Sem adotar as formas da cidade tradicional, tais como a manutenção das distinções convencionais entre frente e fundo, a continuidade com os alinhamentos, as hierarquias entre os acessos, etc., o edifício da Faculdade de Arquitetura funciona como objeto configurador e ativador do espaço público, favorecendo continuidades estratégicas através de uma série de relações tornadas possíveis por meio de sua constituição arquitetônica.

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (1954-1956), fachada norte. Carlos Raúl Villanueva; Construção em metal, Jesús Soto, 1956
DAMAZ, Paul. Art in Latin American Architecture. New York, Reinhold, 1963

Em suas dimensões artísticas, por casualidade ou não, os elementos de arquitetura concebidos por Villanueva, especialmente as placas dobradas que formam as coberturas, as paredes plissadas, os planos perfurados, os quebra-sóis, são elementos que produzem alguns efeitos análogos aos efeitos buscados por determinadas formas de arte que estão se desenvolvendo, tanto no Brasil quanto na Venezuela, durante os anos 1950 (11). A percepção das coberturas dos corpos horizontais como superfícies quebradas e dinâmicas, o ritmo dos quebra-sóis sobre a fachada norte, não parecem alheios à arte cinética de Victor Vasarely ou Jesús Soto, que Villanueva escolheu para a Cidade Universitária (fig. 16; fig. 17). Como no mural Positivo-Negativo de Vasarely, todo plano cheio é virtual; se forma, ou se desfaz, para um observador em movimento (fig. 18). E como no mural de Vasarely, há um debate permanente entre superfície cheia e vazio. A distância entre as réguas de alumínio de Vasarely, ou a luz que se abre entre as placas de concreto de Villanueva, são vazios tão ativos na configuração do espaço quanto é a componente material.

Em exposição recente, Ariel Jiménez associou as experimentações artísticas conduzidas por Jesús Soto, Carlos Cruz-Diez, Otero ou Gego, na Venezuela, e por Ligia Clark e Hélio Oiticica, no Brasil, a “desenhos no espaço”, usando uma expressão de Soto para explicar os próprios esforços para escapar dos limites do plano pictórico. E como explica Jiménez, foi essa suposta negação da unidade do plano pictórico que sugeriu a Ferreira Gullar a figura do “não-objeto”, para assinalar uma abertura do corpo da obra ao espaço (12). Soto podia definir volumes luminosos no espaço com fios de plástico, e Gego podia construir “corpos transparentes a partir de matéria opaca” (13). “Imobilidade aberta a uma mobilidade aberta”, disse Gullar do não-objeto em 1959 (14).

Positivo-Negativo, 1954. Victor Vasarely, no Setor Diretivo e Cultural, Cidade Universitária de Caracas
Foto Cláudia Cabral

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (1954-1956). Carlos Raúl Villanueva
Foto Cláudia Cabral

De certo modo, os murais de Otero no edifício de Villanueva engendram semelhantes ambiguidades, tanto no corpo alto quanto nos volumes baixos, já que se aplicam sobre paredes sólidas, cujo efeito dissimulam. E ao mesmo tempo em que os planos quebrados multiplicam a superfície total das coberturas, e eventualmente, também das paredes, abrindo intervalos de luz que produzem uma certa vibração de todo o conjunto, como recurso plástico, eles sempre tendem a retirar o efeito de unidade, seja do muro, como elemento sólido, ou da laje, como plano contínuo. Isso vale também para o edifício. Há uma autonomia relativa entre as partes, não apenas na divisão do programa em grupos funcionais traduzidos em volumes distintos, solução comum na tradição moderna, mas uma autonomia que se observa também entre os planos que se utilizam para construir tais volumes. Cada superfície é, deliberadamente, distinta de outra. O papel que essas superfícies, sempre diferentes, tem na composição, parece corromper, intencionalmente, o ideal do edifício como massa íntegra, como unidade explícita, e preferir uma certa tensão entre seus componentes. Assim como os nexos urbanos que o edifício estabelece discutem limites, seus componentes disputam frontalidades e, em última análise, a estabilidade da percepção do objeto.

notas

NA – Este texto tem como antecedentes os trabalhos apresentados pela autora em dois eventos: II Seminário Brasil-Venezuela na Arquitetura Moderna, Villanueva-Niemeyer 1948-1958, Porto Alegre, março de 2012; II ENANPARQ – Encontro Nacional da Associação de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura), na sessão temática “Objetos 2”, Natal, setembro de 2012. Agradeço a colaboração de venezuelanos e brasileiros no marco destes eventos, especialmente a Carola Barrios, José Rosas, Nancy Dembo, Enrique Larrañaga, Alberto Sato, Carlos Eduardo Comas e Laís Bronstein.

1
ROWE, Colin. KOETTER, F. Ciudad Collage. Barcelona, Gustavo Gili, 1981, p. 63.

2
CASTEX, Jean; DEPAULE, Jean-Charles; PANERAI, Philippe, Formes urbaines: de l’ilot à la barre. Paris: Bordas, 1980, p. 142.

3
A iconografia completa da Cidade Universitária de Caracas pode ser consultada em: HERNÁNDEZ DE LASALA, Silvia. En busca de lo sublime. Villanueva y la Ciudad Universitaria de Caracas. Caracas, Rectorado de la Universidad Central de Venezuela, Consejo de Preservación y Desarrollo, 2006); MARIN, Ana María (ed.) Ciudad Universitaria de Caracas. Patrimonio. Caracas, Fundación Centro de Arquitectura, 2007; CERISOLA, Javier (coord.) Carlos Raúl Villanueva y la Ciudad Universitária de Caracas, Catálogo de Exposição. Caracas, Fundación Museos Nacionales, Museo Nacional de Arquitectura, 2009. Ver também: JAUA, María Fernanda. Cidade Universitária de Caracas: a construção de uma utopia moderna. Arquitextos, São Paulo, ano 4, n. 043.04, Vitruvius, dez. 2003 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.043/627/>; SÁNCHEZ SILVA, Isabel. Villanueva. Modernidade e trópico. Arquitextos, São Paulo, ano 4, n. 043.01, dezembro de 2003 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.043/624/>.

4
Para consultar o conjunto dos planos completos, desenhados a mesma escala, ver: HERNANDEZ DE LASALA, op. cit, pp. 74-75. Pode-se consultar também o site da Fundación Villanueva <http://www.fundacionvillanueva.org>.

5
Para observar a evolução dos planos em fotografias aéreas ver: HERNÁNDEZ, Juan Pérez. Reconocimiento y tutela de un Patrimonio del Movimiento Moderno del Siglo XX – Ciudad Universitaria de Caracas – Patrimonio Mundial, E-rph, Revista Electrónica de Patrimonio Histórico, n. 3, dezembro 2008 (http://www.revistadepatrimonio.es).

6
Villanueva teve importantes colaboradores, entre os quais destaca-se Juan Pedro Posani.

7
Sobre o sistema de calçadas cobertas, e para uma visão profunda e abrangente da concepção urbanística e arquitetônica de Villanueva na Cidade Universitária ver: PÉREZ DE ARCE, Rodrigo, Villanueva, os passeios cobertos e a ideia de cidade. Arqtexto, Porto Alegre, n. 12, PROPAR-UFRGS, 2008, pp. 132-157.

8
HERNANDEZ DE LASALA, op. cit., p. 436.

9
POSANI, Juan Pedro et al. Carlos Raúl Villanueva y la Ciudad Universitaria de Caracas. Caracas, Barcelona, Fundación Museos Nacionales, Museo de Arquitectura, Fomento de las Artes y del Diseño (FAD, Barcelona), 2007, p. 2007, p. 88.

10
Para uma análise completa das soluções estruturais de Villanueva na Cidade Universitária ver: DEMBO, Nancy. La tectónica en la obra de Carlos Raúl Villanueva: aproximación en tres tempos. Caracas, Universidad Central de Venezuela, Consejo de Desarrollo Científico y Humanístico, 2006.

11
JIMÉNEZ, Ariel et al. Desenhar no espaço: artistas abstratos do Brasil e da Venezuela. Porto Alegre, Fundação Iberê Camargo, 2010.

12
JIMÉNEZ, op. cit., p. 14.

13
JIMÉNEZ, op. cit., p. 35.

14
SOLEDAR, Jorge. Apontamentos da Teoria do Não-Objeto como problemática na construção da historiografia da Arte Neoconcreta. Revista-Valise, Porto Alegre, ano 1, n. 1, julho 2011, p. 121.

sobre a autora

Cláudia Costa Cabral é arquiteta (UFRGS), doutora em arquitetura (ETSAB, UPC), professora associada na faculdade de arquitetura, programa de pós-graduação em arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, (PROPAR-UFRGS).

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