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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
O presente artigo aborda questões referentes ao futuro do Elevado Costa e Silva, com as implicações existentes em sua remoção ou manutenção para a cidade de São Paulo.

english
This article discusses issues concerning the future of the Elevado Costa e Silva, with existing implications for their demolition or maintenance for the city of São Paulo.

español
En este artículo se analiza cuestiones relativas al futuro del Elevado Costa e Silva, con las implicaciones existentes en su demolición o mantenimiento para la ciudad de Sao Paulo.


how to quote

MARAFON FRAU, Fernanda; SILVA NETO, Manoel Lemes da. O destino do Elevado Costa e Silva, o Minhocão. Uma decisão à luz do urbanismo. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 200.03, Vitruvius, jan. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.200/6394>.

Elevado Costa e Silva, Minhocão, São Paulo
Foto Fernanda Marafon

Transcorreram-se mais de quatro décadas desde a construção e inauguração do Elevado Costa e Silva na região central da cidade de São Paulo e, durante todo esse período, a intervenção urbana não cessou de gerar polêmica entre arquitetos e urbanistas e, principalmente, junto aos moradores de São Paulo.

O Elevado Costa e Silva, popularmente conhecido como Minhocão, foi construído na década de 1970 e constituiu um exemplo de intervenção urbana que priorizou investimentos na ampliação do sistema viário da cidade, com a implantação de vias expressas elevadas e desconexas com relação ao tecido urbano, promovendo grande deterioração ambiental e estética na área de seu entorno.

A possível demolição deste imenso viaduto discute, de modo exemplar, os diferentes entendimentos que os habitantes, o poder público, as categorias profissionais e os setores de investimento imobiliário, voltadas ao espaço urbano têm sobre o futuro das cidades no Brasil.

O caso do Minhocão ilustra emblematicamente o atual momento, quando uma revisão das ações e instrumentos existentes para lidar com as questões urbanas parece necessária para pensar um projeto de cidade de “valorização do sujeito coletivo” (1). Considerando amplamente o futuro de São Paulo, o principal fator a ser apontado sobre a polêmica em relação ao Minhocão ultrapassa a decisão sobre sua manutenção ou demolição e consiste na forma como essa decisão será implementada na cidade.

História do Minhocão

Na região do centro novo de São Paulo, integrado à ligação leste-oeste da cidade, o Elevado Presidente Arthur da Costa e Silva, atual Elevado João Goulart, corresponde a uma estrutura viária com aproximadamente 3,5 quilômetros de extensão que se eleva da cota do solo urbano e comporta uma calha para quatro vias expressas.

Construído durante a administração do prefeito Paulo Salim Maluf e inaugurado em 25 de janeiro de 1971, no aniversário da cidade de São Paulo, o Elevado representa, desde sua origem, uma das intervenções urbanas mais polêmicas executadas na cidade, frequentemente associada à visão desenvolvimentista do regime militar e ao planejamento urbano rodoviarista do período (2).

Parece certo que sua construção esteja associada à opção pelo transporte individual na cidade, fato que a condena inicialmente, mas é necessário destacar que seu projeto correspondeu à conclusão de uma visão sobre São Paulo que pretendia criar um conjunto de vias de circulação integrando as diversas regiões da cidade (3). Tal perspectiva, presente em distintas propostas desenvolvidas para São Paulo, aparece inicialmente, na década de 1930, com o Plano de Avenidas de Prestes Maia, que foi concebido além da mera estruturação do sistema viário e constituía, em seus fundamentos, também paisagem urbana.

Por ocasião da elaboração do Plano de Avenidas, diferentes visões para ordenar a urbanização da cidade se contrapuseram, entre elas as concepções de Anhaia Mello, de controle do crescimento da cidade, e a proposta desenvolvida por Saturnino de Brito, que apontava para a intervenção nas margens do Tietê com a adoção simultânea de um grande parque ao longo do rio (4). Prevaleceu a opção pela ampliação da malha viária, com a construção de parte do Plano de Avenidas, correspondente ao perímetro de radiação, com o que se perdeu substancialmente a qualidade do Plano.

Posteriormente, na década de 1950, a aceleração do crescimento demográfico de São Paulo, o aumento espraiado de sua área urbanizada e a necessidade de implementar infraestrutura para o parque industrial que se instalava trouxeram novas intervenções no sistema viário. Também nesta década, o urbanista Robert Moses, responsável pelo planejamento da cidade de Nova Iorque, é contratado para realizar um plano para São Paulo. Seus estudos preveem a construção de vias expressas conectando as rodovias Anchieta, Anhanguera e Dutra ao centro da cidade, além de vias às margens dos Rios Pinheiros e Tietê e outras sobre o canal do rio Tamanduateí (5).

Quando do desenvolvimento do projeto do Elevado Costa e Silva, em meados de 1960, justificava-se estabelecer uma conexão entre a região central e a área oeste da cidade. Sua concepção priorizou a rapidez de execução da estrutura, bem como a capacidade das vias e velocidade do tráfego, potencialmente superiores em vias construídas em calha elevada e isolada da malha urbana (6).

Elevado Costa e Silva, Minhocão, São Paulo
Foto Fernanda Marafon

A construção do Minhocão ocorre num momento tardio, onde já se faziam evidentes os problemas urbanos decorrentes deste caráter de intervenção. Diversas cidades americanas, como Boston e Nova Iorque, experimentavam os resultados da implementação de estruturas viárias desconexas do tecido urbano existente e a posterior deterioração de suas áreas envoltórias.

No caso do Elevado Costa e Silva, a total falta de preocupação com a área de impacto condicionou um desenho que potencializou a desqualificação do tecido urbano envoltório. Erigido com altura média de 5,5 metros da cota do solo urbano e tendo em alguns trechos a distância inferior a cinco metros das edificações lindeiras, a construção gerou imenso impacto visual e sonoro em toda área contígua a sua extensão. Sob o seu nível de utilização viária, a cidade anterior foi ocultada e degradada, privada de iluminação e sufocada pela poluição.

Como consequência de sua construção, presenciou-se grande desvalorização imobiliária dessa porção da área central da cidade decorrente da desqualificação urbanística e ambiental. Considerável parcela dos moradores abandonou os imóveis, pela venda ou aluguel a valores inferiores aos praticados em outras regiões semelhantes, e uma nova população em certa medida, passou a ocupar esses locais. As áreas de comércio se popularizaram e os baixos do viaduto passaram a ser ocupados por moradores de rua.

Elevado Costa e Silva, Minhocão, São Paulo
Foto Fernanda Marafon

Após alguns anos de funcionamento, em 1976, a utilização do Elevado foi restringida, com a interdição de seu funcionamento no período noturno, visando melhorar as condições de habitabilidade para os moradores da região. Anos mais tarde, a restrição se amplia, contemplando também os domingos e feriados.

Atualmente, com a interdição dessa extensa infraestrutura viária por longos períodos de tempo – à noite, domingos e feriados –, intensifica-se paulatinamente o uso do Elevado para atividades de lazer, esportivas e culturais. Isto evidencia a tentativa de transformação potencial da estrutura para adequar-se ao papel que desempenha, de modo adaptado, em contraposição à falta de espaços públicos na cidade com reconhecimento notório do Minhocão como lugar de encontro.

Parece haver consenso sobre o equívoco em sua construção. Nota jornalística de 1971 (7) indicava a ineficiência da intervenção ao comentar que em seu primeiro dia de funcionamento o Elevado tornava-se um dos principais problemas de trânsito da cidade. No entanto, entre os diferentes interesses dos atores sociais, não há o mesmo consenso sobre seu destino, o que amplia a necessidade de discutir o futuro propósito a ser dado àquela estrutura.

Elevado Costa e Silva, Minhocão, São Paulo
Foto Fernanda Marafon

O Minhocão hoje

O futuro do Elevado Costa e Silva polariza opiniões sobre a possibilidade de desmonte ou manutenção de sua estrutura para novos usos, trazendo diferentes interpretações e questões sobre a melhor solução para a região por ele atingida. A decisão de desativar o Elevado Costa e Silva para uso viário, constante do Plano Diretor de 2014, aponta, como decorrência, que a Prefeitura Municipal de São Paulo e a Câmara dos Vereadores, deverão conduzir o debate no sentido da remoção ou transformação da estrutura em parque público suspenso. Cabe então, ao conjunto da sociedade, uma decisão sobre o futuro desta área da cidade.

A permanência ou desmonte do Minhocão passa pela discussão de questões técnicas e financeiras. Estuda-se a possibilidade de extinguir o Elevado considerando o sistema construtivo, uma estrutura isostática, com vigas pré-moldadas, que possibilita sua remoção em partes com a posterior utilização destes elementos em outras obras públicas, minimizando o desperdício material e o impacto de uma demolição total. A operação de desmonte pode gerar lucro, pelo reaproveitamento de peças estruturais e moagem de material reaproveitável, conforme já orçado tecnicamente, cujo valor chega à casa dos 45 milhões de reais (8). Outro fator que justifica a remoção refere-se à progressiva valorização imobiliária da área, com consequente aumento da arrecadação municipal via recolhimento de impostos, suficiente para compensar as despesas com as obras necessárias.

Elevado Costa e Silva, Minhocão, São Paulo
Foto Fernanda Marafon

Uma discussão posterior aborda os possíveis resultados das transformações urbanas decorrentes da demolição do Elevado, considerando a valorização imobiliária da região com a retirada do viaduto e o recrudescimento do processo de segregação socioespacial que viria atrelado a esta valorização. Argumenta-se que parcela da população de renda média e baixa com acesso à área central da cidade e à infraestrutura ali existente abandonaria progressivamente a área, expulsa pelo aumento de alugueis e impostos decorrentes da valorização imobiliária, implicando numa elitização da região, com o abandono do uso do viaduto como espaço público.

Por outro lado, a permanência do Elevado justifica-se por meio de soluções técnicas de adequação de uso, a exemplo de outras intervenções internacionais: a Promenade Plantée de Paris e o High Line de Nova York. Nas décadas de 1990 e 2000, ambas transformaram estruturas elevadas, que abrigavam antigas linhas férreas, em parques públicos urbanos. A questionável divulgação dessas intervenções como boas soluções de projeto, assim como o uso dessas áreas para lazer da população justificam adotar tais soluções também no caso do Elevado Costa e Silva. No entanto, há diferenças significativas entre estes exemplos e o Elevado, tais como a largura da calha viária, que naqueles casos é bem maior e a distinta implantação urbana.

Elevado Costa e Silva, Minhocão, São Paulo
Foto Fernanda Marafon

No caso do Elevado Costa e Silva é fundamental destacar que a ausência de projeto urbano dificulta adequá-lo a um uso diferenciado especialmente devido à interferência direta nos edifícios próximos, tanto nas moradias, como nos pavimentos da cota das ruas. Não há consenso entre os diferentes grupos que vivem em seu entorno e utilizam suas áreas. Boa parte dos moradores incomoda-se com o uso do espaço como parque pela interferência direta no interior das moradias (9). Além disso, a manutenção da estrutura condena também as áreas inferiores dos imóveis e os passeios públicos às difíceis condições atuais. Exemplo mais próximo seria a intervenção às margens do Rio Cheonggyecheon em Seul (10), embora haja considerável distância entre a calha do viaduto original e o tecido urbano lindeiro, tanto pela condição formal imposta pela via expressa, como pela característica de área central. Neste caso a opção escolhida foi a retirada das vias elevadas e a reurbanização da área com recuperação do rio.

A permanência do viaduto, garantindo seu uso como espaço público, leva à discussão de outros pontos importantes, como a gestão dessa área, uma vez que a administração pública tem dificuldade de para administrar e manter os espaços já existentes na cidade.

Avenida São João, 1956
Foto divulgação [Acervo biblioteca IBGE]

A questão da memória dos espaços da cidade, constantemente evocada quando da realização de intervenções urbanas, é um assunto bastante polêmico (11). Justifica-se a permanência do viaduto, ao menos de maneira simbólica pela manutenção de parte da estrutura acreditando-se que sua remoção total também apague um importante momento da história de São Paulo. A abordagem deste ponto não pode esquecer a intangível memória essencial da cidade, seu centro histórico obstruído e segmentado pelo viaduto que destitui da cidade um espaço público que lhe pertencia.

Avenida São João, 1958
Foto divulgação [Acervo biblioteca IBGE]

Diante das várias situações que o tema apresenta, o destino do Elevado tem mobilizado parte significativa das categorias profissionais e dos habitantes de São Paulo. É uma relevante possibilidade de debate para um projeto de cidade, e é essencial definir, democraticamente, usos e projetos para sua estrutura ou para a área afetada por sua demolição.

Para além do trivial

Parece importante esclarecer alguns fatos significativos que permearam as condições para a atual dicotomia de posições sobre o destino do Minhocão: desmonte ou transformação em parque linear, defendidas por entidades civis, governamentais, arquitetos, grupos populares e mesmo investidores imobiliários.

Elevado Costa e Silva, atual João Goulart
Foto Fernanda Marafon

Em 2006 a prefeitura de São Paulo lançou edital para a realização de um concurso de ideias para o Minhocão. Foi a primeira oportunidade em que o poder público trouxe para o debate das categorias profissionais a situação urbana da  área. Nesta ocasião, provavelmente como resultado do conteúdo do edital que solicitava uma solução criativa e com viabilidade financeira, a grande maioria dos projetos divulgados propôs a permanência do Elevado.

Pode-se supor que a administração pública, ao lançar o edital, pretendesse, como resposta, uma intervenção passível de ser efetuada dentro do seu período de vigência política, o que é um problema constante das administrações públicas no Brasil. Pode-se também imaginar que o edital pretendesse não induzir a aparentemente óbvia conclusão pela remoção do Elevado. Contudo, tendo a maioria dos trabalhos divulgados optado por sua permanência, adotando soluções para minimizar os problemas estéticos e ambientais, o resultado do concurso indicou uma opção de caráter paliativo e pontual para essa questão urbana (12). O desfecho foi, no mínimo, paradoxal se for pensada a importância que esse evento obteve pela repercussão das premiações e publicações dos projetos apresentados pela categoria profissional para a sociedade. Ao fortalecer uma preocupação com a viabilidade financeira das propostas para a cidade, principalmente no campo das ideais, indica-se a naturalização de uma cidade mal estruturada e mal construída.

Elevado Costa e Silva , atual João Goulart
Foto Fernanda Marafon

Um fato importante relacionado ao mesmo concurso de 2006 foi a discordância por parte do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB/SP) em relação à premiação proposta pela prefeitura, que estabelecia a obtenção dos direitos autorais dos projetos premiados por remuneração inferior à estipulada pela entidade, o que teria ocasionado a retirada do apoio do IAB ao concurso. Dentro deste quadro, o projeto desenvolvido pelo EEP – Escritório Experimental de Projetos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie e colaboradores não foi apresentado à comissão julgadora do concurso.

Este projeto tinha o grande mérito de ultrapassar uma discussão pontual sobre o Minhocão e aprofundar as verdadeiras questões que sua construção e remoção implicariam no planejamento e projeto da cidade de modo mais abrangente. Na ocasião o projeto estabelecia duas paisagens para a cidade: seu centro histórico e uma nova ligação inter-regional com um desenho integrado à geografia da cidade.

A remoção do Minhocão, contida na proposta, tinha como objetivo devolver à cidade seu centro histórico, retomando um espaço público perdido desde a construção do Elevado. Nesta área previa espaços para a circulação de ônibus, automóveis e um generoso passeio para pedestres.

Perspectiva do projeto desenvolvido pelo Escritório Experimental de Projetos da FAU Mackenzie e colaboradores
Imagem divulgação

A proposta incluía complementarmente o território ferroviário entre Belém e Lapa, extensível como sistema a norte e oeste. Considerando a retirada do Elevado na região central, o projeto previa a criação de uma nova ligação Leste-Oeste na cidade ao longo do leito da área ferroviária subutilizada que, em grande parte, é de propriedade pública. A conformação da calha das originais ferrovias da Central do Brasil, Sorocabana e Santos-Jundiaí, atuais CPTM, conferiu à área dimensão necessária para a construção de vias de transporte automotivo, de ônibus, linhas ferroviárias ou metroviárias e cicloviárias que também comportaria amplo sistema paisagístico e um canal para captação e drenagem de águas do espigão central ligado a uma rede de lagos para contenção e desague no Tietê, o que reduziria de modo expressivo os frequentes problemas de enchentes na região. A calha ferroviária, que apresenta trechos de até 100 metros de largura, permitiria a passagem de quatro linhas ferroviárias na porção central: as linhas ferroviárias já existentes e as novas linhas para trens metropolitanos. Ao lado das linhas férreas estariam situadas vias expressas para transporte público e circulação de veículos e, nas bordas da calha, seriam construídas vias locais, ciclovias, extensas calçadas para pedestres, parques e jardins e o canal de drenagem de águas, constituindo, em seu conjunto, um sistema de paisagem urbana e ambiental. As áreas adjacentes a essas vias deveriam necessariamente ser objeto de ampla discussão visando a constituição de legislação específica com a necessária participação popular e contando com a regulação do Estado na definição de usos e coeficientes construtivos apropriados de modo a evitar a gentrificação do território (13).

Perspectiva do projeto desenvolvido pelo Escritório Experimental de Projetos da FAU Mackenzie e colaboradores
Imagem divulgação

A complexidade desta intervenção encontrou respaldo num esforço coletivo entre universidade e consultores especializados, e contou com a participação de professores, alunos da universidade e colaboradores (14), denotando a importância de uma interpretação ampla das questões urbanas da cidade que estão ligadas pontualmente ao Elevado Costa e Silva.

O concurso de 2006 deixou algumas indicações que merecem ser apontadas: a maneira como o poder público lidou com as categorias profissionais através do concurso, pela visão pontual do problema e pela baixa remuneração dos projetos; a importante polêmica gerada entre os habitantes da cidade ao se estabelecer e divulgar as propostas de intervenção no Elevado; e a fundamental colaboração que as universidades podem apresentar nestas discussões, ultrapassando o constante relato da condição urbana do país para conduzir reflexões e ações práticas sobre a realidade.

Elevado Costa e Silva, Minhocão, São Paulo
Foto Fernanda Marafon

A repetição do modelo

O caso do Elevado Costa e Silva é emblemático em vários aspectos, pois revela o processo de construção do espaço urbano nas cidades brasileiras sem projeto urbanístico e sem conhecimento e aprovação da sociedade. O debate que ele suscita deveria migrar para outros setores das cidades com processos de renovação urbana em curso.

Na cidade de São Paulo, novas intervenções têm sido realizadas através das Operações Urbanas Consorciadas (OUP). Estas operações, previstas em legislação, no Plano Diretor da cidade, preconizam a venda de potencial construtivo como forma de arrecadar capital a ser utilizado para urbanizar e qualificar áreas da cidade. Dentre elas, um exemplo importante é a discutível implementação da Operação Urbana Consorciada Água Espraiada, regulamentada por lei de 2001 (15). Esta operação pressupunha diversas transformações urbanas, contando com a implantação de um parque, a construção de um sistema de transporte público e a construção de moradias para a população residente em condições de habitação precárias na região. Contudo, no decorrer das ações previstas pela operação urbana, duas situações denotaram a divergência entre as propostas iniciais e os projetos a serem implantados.

A primeira é o desvio relacionado à provisão de moradia para a população residente na área, em grande parte uma extensa região constituída por ocupação de habitações precárias e de fragilidade social. Neste aspecto, a proposta sofreu alterações, conforme interesses e posições políticas dos diferentes prefeitos que ocuparam a administração da cidade, quando, em diversos períodos, parte dos moradores da área perdeu a garantia de permanência, com a implantação de empreendimentos destinados ao setor terciário, em grande medida de serviços corporativos internacionais, na mesma região (16).

A segunda se refere à alteração do sistema viário inicial previsto na operação. O projeto para a construção de um túnel, com 450 metros de extensão na área do parque, que já contava com o maior montante do capital arrecadado com a Operação Urbana, teve sua extensão alterada por nova lei aprovada em 2011, com uma ampliação de aproximadamente dois quilômetros em sua extensão, numa clara distorção do plano inicial em prol da valorização do transporte individual na cidade (17).

Elevado Costa e Silva, Minhocão, São Paulo
Foto Fernanda Marafon

Outro aspecto importante da operação, com implicações financeiras e urbanísticas, foi a escolha do sistema de monotrilho em detrimento do metrô. Dessa opção reporta-se, por analogia, à discussão sobre o futuro do Minhocão, pois prevê uma nova e impactante infraestrutura de transportes elevada, executada em outra área da cidade, embora de caráter e contexto notadamente diverso.

A preocupação com mobilidade e suprimento de infraestrutura para extensas áreas urbanas têm incentivado o aumento de densidade em regiões bem servidas de equipamentos e transporte público, tópico substantivo do Plano Diretor do município de São Paulo aprovado recentemente. Esta pareceria ser uma melhor alternativa para uma cidade mais compacta e menos segregada. No entanto, a ausência de preocupação com o resultado urbanístico do adensamento, das novas construções e da instalação de novas infraestruturas têm repetido situações urbanas bastante semelhantes à existente na região do Minhocão. Estaríamos assistindo ao processo inverso de construção de áreas já comprovadamente problemáticas, onde são os edifícios que se implantam próximos a grandes estruturas viárias. A construção de habitação próxima a infraestruturas é um importante princípio de organização do espaço, mas em que modelo deverá ser estabelecida? Qual o projeto? A questão é vital para a cidade e os cidadãos.

No Rio de Janeiro, a demolição da perimetral é outro exemplo de grandes reformas urbanas atualmente praticadas em relação a estruturas viárias. A remoção do elevado à beira mar revela ausência de um plano mais abrangente por parte do poder público para a nova ocupação da área de influência. A proposta está atrelada à venda de potencial construtivo e também à execução de melhorias cujo custo deverá ser arcado pela iniciativa privada. A parceria público-privada, se mal administrada pelo Estado e sem participação direta da sociedade, pode gerar uma situação onde pairaram dúvidas sobre a qualidade das melhorias sob responsabilidade da iniciativa privada perante o atendimento ao interesse público.

Vista sobre o elevado com edifício Itália ao fundo
Foto Fernanda Marafon

Estes exemplos apontam que o atual sistema de gestão das cidades, fortemente atrelado ao caráter regulatório e normativo do Estado e à capitalização financeira do espaço urbano, não têm garantido resultados satisfatórios e suficientes. Tal sistema parece necessitar de uma intensa participação da sociedade civil em contraposição aos interesses financeiros, evidenciando, ainda, e principalmente, enorme dificuldade de garantir um desenho melhor e mais democrático para o conjunto das cidades.

Urbanismo para São Paulo

O entendimento de que o planejamento urbano tenha substituído o urbanismo é peculiar e aceito em nosso país e parece resultado da constatação da impossibilidade de ação sobre a totalidade da cidade. Ao abordar as preocupações para uma ação sobre a cidade contemporânea, citamos Bernardo Secchi que trata o urbanismo como um caminho para pensar um projeto de cidade (18). Em sua perspectiva, a cidade atual deve ser entendida como um campo de experimentações para novas formas de organização e conexão dos espaços, principalmente a partir de um desenho de suas áreas. O autor aponta, ainda, alguns fatores que comprometem o enfrentamento das questões relativas às cidades. Estes fatores se apresentam como obstáculos também para a construção do espaço nas cidades brasileiras.

Uma dificuldade mundial que o urbanismo enfrenta é a adesão à responsabilidade de garantir acesso igualitário ao território urbano, com a transferência de decisões políticas para o campo do urbanismo.

Este fenômeno, no Brasil, é evidente. A discussão sobre questões urbanas no país tem sido permeada pelas lutas políticas por igualdade de acesso às cidades. Nesse sentido, grandes avanços foram conquistados por mecanismos legislativos e de participação popular que se consolidaram nos últimos anos através dos planos diretores municipais e outras determinações legais decorrentes do Estatuto da Cidade. Porém, preocupa que este tipo de iniciativa seja entendido como uma maneira de suprir a deficiência de atuação do Estado na garantia de condições igualitárias à sociedade, confunda-se com questões de investimento financeiro e, também, com soluções urbanísticas.

Outro fenômeno problemático apontado por Bernardo Secchi (19) no campo do urbanismo é a revisão crítica que se iniciou a partir da década de 1960, com uma ânsia pela produção literária descritiva, substituída posteriormente pelas narrativas das minorias e do próprio indivíduo para a construção do espaço coletivo. Se, num primeiro momento, essa atividade crítica se limitou à descrição sem um caráter que a ultrapassasse, no momento posterior denotou uma dificuldade para a generalização exigida para o desenvolvimento de propostas concretas.

Uma atualização crítica poderia constatar que narrativas individuais e de minorias não têm sentido diante da problemática urbana. Vivemos um momento que deveria colocar o conjunto da sociedade frente às dificuldades concretas, políticas e urbanísticas que, em nosso país, não estão ligadas às minorias, mas à grande maioria da população urbana.

Se grande parte das cidades têm apresentado, na contemporaneidade, processos semelhantes de construção de seu espaço, não há experiência a ser desprezada no campo de investigação e das possibilidades, sejam elas importadas ou não, pois sempre deverão atender às particularidades culturais de cada lugar.

Um olhar sobre o Minhocão, à luz do urbanismo, seria imaginar novas perspectivas para São Paulo, considerando de modo abrangente as condições e limites que estão presentes em seu território, como atitude atenta à importância que os espaços públicos podem assumir como articuladores das áreas das cidades. Seria, ainda, considerar a importância do desenho, como instrumento de ordenação do espaço e capaz de apresentar possibilidades a serem discutidas coletivamente.

Um projeto de cidade  faz-se necessário, pois não podemos abandonar a ideia de democracia em cidades bem estruturadas, com qualidade ambiental, funcional, morfológica e estética (20). Sua ausência nos coloca em dois polos extremos. De um lado, a renúncia a uma cidade melhor, abdicando de boas soluções urbanas, com o intuito de garantir a permanência de população residente e usos existentes. No outro extremo, a aceitação de um sistema de reconstrução de áreas urbanas que atenda somente ao setor imobiliário e produzirá um espaço segregado, portanto sem valor urbano.

Elevado Costa e Silva, Minhocão, São Paulo
Foto Fernanda Marafon

notas

1
TORRES, Ana Clara. Teorias da ação. Rio de Janeiro, Letra Capital, 2014, p.62

2
ANELLI, Renato. Luiz Sobral; SEIXAS, Alexandre Rodrigues. O peso das decisões: o impacto das redes de infraestrutura no tecido urbano. In: ARTIGAS, Rosa; CASTRO, Ana Claudia;  MELLO, Joana (Org.). Caminhos do elevado: memória e projetos. São Paulo: 2008, p. 59-73.

3
FELDMAN, Sarah. Aprendendo com o Elevado Presidente Costa e Silva, o Minhocão. Resenhas Online, São Paulo, ano 08, n. 091.04, Vitruvius, jul. 2009 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/08.091/3029>

4
ANDRADE, Carlos. Saturnino de Brito – Um projetista de cidades. Revista Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, n. 72, jun./jul. 1997; LEME, Maria Cristina da Silva (Org.). Urbanismo no Brasil: 1895-1965. São Paulo, Studio Nobel/FAU USP/Fupam, 1999.

5
MEYER, Maria Regina Prosperi. Metrópole e urbanismo. São Paulo anos 50. Orientador Celso Monteiro Lamparelli. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 1991.

6
ANELLI, Renato Luiz Sobral; SEIXAS, Alexandre Rodrigues. Op. cit.

7
O jornal O Estado de S. Paulo de 26 de janeiro de 1971, trouxe a notícia da inauguração do elevado, evidenciando o problema de trânsito ocasionado pela quebra de um automóvel que trafegava no viaduto. Disponível em:  <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19710126-29388-nac-0016-999-16-not>. Acesso outubro de 2016

8
Orçamento realizado pela empresa Desmontec, apresentado ao Movimento Desmonte do Minhocão.

9
Dados apresentados por Yara Goes, representante do conselho participativo da Subprefeitura da Sé e presidente da Ação Local Amaral Gurgel, em audiência pública realizada na Câmara Municipal de São Paulo no dia 9 de setembro de 2014, para discutir o projeto de lei que cria o Parque Municipal do Minhocão. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/2014/09/1514719-audiencia-publica-discute-projeto-de-lei-sobre-o-futuro-do-minhocao.shtml>. Acesso outubro de 2016

10
ROWE, Peter G. Os resultados e a história do projeto de restauração do Cheonggyecheon, em Seul, que derrubou uma via expressa elevada e propôs um espaço de lazer em torno ao córrego. Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, n. 243, set. 2003.

11
Questões relativas à memória e aos usos do Elevado Costa e Silva são abordadas em BARBOSA, Eliana Rosa de Queiroz. Minhocão e suas múltiplas interpretações. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 147.03, Vitruvius, ago. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.147/4455>.

12
FELDMAN, Sarah. Aprendendo com o Elevado Presidente Costa e Silva, o Minhocão. Resenhas Online, São Paulo, ano 08, n. 091.04, Vitruvius, jul. 2009 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/08.091/3029>

13
Informações colhidas em entrevista concedida pela arquiteta e professora Vera Santana Luz, também presentes em: SUMNER, Anne Marie. Ideia de constituição de um escritório experimental de projetos. Pós, v. 18, n. 29, São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU USP, jun. 2011, p. 226-288.

14
A equipe foi constituída pelos professores arquitetos Anne Marie Sumner (FAU Mackenzie), Hector Viglieca (FAU Mackenzie), Tito Lívio Frascino (FAU Mackenzie), Flávio Marcondes (FAU Mackenzie), Vera Santana Luz (FAU PUC-Campinas) e os consultores eng. Renato Zuccolo, eng. Cláudio Macedo/Sistran, agrimensor Irineu Idoeta e diversos estudantes colaboradores voluntários.

15
Sobre a regulamentação da Operação Urbana Agua Espraiada ver Lei nº 13.260 de 28 de dezembro de 2001. Disponível em site da prefeitura de São Paulo. Disponível em: <www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/desenvolvimento_urbano/sp_urbanismo/operacoes_urbanas/agua_espraiada/index.php?p=19602>.  Acesso: Março 2015.

16
FIX, Mariana. Parceiros da exclusão. São Paulo, Boitempo, 2001. São abordadas as transformações ocorridas nas áreas integrantes da Operação Urbana Água Espraiada, associada a um breve histórico sobre a constituição e consolidação das Operações Urbanas Consorciadas como instrumento de transformação urbanística, elucidando as ações do poder público para garantir a instalação de um setor terciário na região.

17
A  Lei 15.416/2011, de 22 de julho de 2011 altera parte das definições da lei anterior que regulamenta a operação urbana, prevendo o aumento do túnel em aproximadamente dois quilômetros, segundo redação: Art. 4º. § 1º IV – execução de via expressa subterrânea em túnel, promovendo a ligação da atual Av. Jornalista Roberto Marinho à Rodovia dos Imigrantes, a partir das proximidades da Av. Pedro Bueno. Disponível em: <www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/desenvolvimento_urbano/sp_urbanismo/operacoes_urbanas/agua_espraiada/index.php?p=30994>. Acesso: Março 2015.

18
SECCHI, Bernardo. Primeira lição de urbanismo. São Paulo, Perspectiva, 2006.

19
Idem, ibidem.

20
O termo estética refere–se às relações espaciais apreciáveis na constituição da paisagem, seja a relação entre edificações, entre estas e espaços públicos, bem como às estabelecidas na implantação das cidades na geografia do território, sentido distinto da utilização restrita a projetos e planos de embelezamento urbano.

sobre os autores

Fernanda Marafon Frau é arquiteta e Mestre pela PUC-Campinas.

Manoel Lemes da Silva Neto é Professor Doutor pela FAU USP.

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200.00 urbanismo

O não legado e os Jogos que não foram

A primeira candidatura olímpica do Rio de Janeiro e o imaginário de legado urbano para a cidade

Gabriel Silvestre

200.01 projeto

Edifícios educacionais de Élio de Almeida Vianna

Elemento de controle da iluminação natural na arquitetura moderna em Vitória ES: identificação e avaliação

Mariani Dan Taufner, Renata Hermanny de Almeida and Andréa Coelho Laranja

200.02 direito urbanístico

Sobre a criação de varas especializadas e câmaras reservadas

Os conflitos fundiários urbanos e agrários no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: um parecer

Wilson Levy

200.04 literatura

Do rastro hippie ao simulacro

A cidade imaginária como palco do espetáculo da indústria cultural

Linda Kogure and Milton Esteves Junior

200.05 patrimônio

Ordenamentos urbanos nas Missões Jesuíticas dos Guarani – parte 1

Luiz Antônio Bolcato Custódio

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