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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
No acervo Roberto Burle Marx se esconde um precioso conjunto de cartas que registra uma intensa troca de correspondências entre o paisagista brasileiro e uma lista de intelectuais estrangeiros onde se constata a relevância e desdobramentos de sua obra.


how to quote

DOURADO, Guilherme Mazza. Dois dedos de prosa. A correspondência de Roberto Burle Marx. Arquitextos, São Paulo, ano 18, n. 208.00, Vitruvius, set. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.208/6716>.

De Tóquio, Japão, o paisagista Keiji Uehara arriscava um primeiro contato em 1º de abril de 1953, manifestando sua intensa vontade de conhecer o Brasil e propondo intercambiar experiências profissionais com o colega daqui, cujas atividades recentes acompanhava por meio de uma revista técnica francesa. De Berna, Suíça, em 11 de junho de 1956, o diplomata brasileiro Wladimir Murtinho relatava os preparativos da exposição de paisagismo que teria lugar brevemente em Zurique, acompanhada de catálogo com texto crítico encomendado a Siegfried Giedion. De Roxbury, Estados Unidos, o artista plástico Alexander Calder enviava saudações em 11 de março de 1958 e cobrava informações sobre a venda de seu mobile. Do Rio de Janeiro, o maestro Eugene Ormandy, que excursionava pela América do Sul à frente da Philadelphia Orchestra, deixava um vivo agradecimento pela hospitalidade com que fora recebido, em manuscrito sobre papel timbrado do Hotel Glória, de 19 de maio de 1966. De São Paulo, em 3 de outubro de 1967, a ilustradora botânica Margaret Mee avisava que retornara de mais uma vibrante expedição à Amazônia, atravessando desta vez a região de Tapuraquara e do rio Maruaia, e não via a hora de encontra-lo pessoalmente para narrar suas impressões. De Honolulu, Havaí, o paisagista David Woolsey elencava, em 1º de junho de 1979, as sementes e as plantas raras que poderia obter e enviar ao Brasil. De San Juan, Porto Rico, em 29 de outubro de 1981, o paisagista Gabriel Berriz expressava sua alegria com a proximidade da visita de seu mestre e amigo brasileiro, oferecendo-se a planejar conferências, recomendando que trouxesse desenhos para comercialização e solicitando também plantas para sua coleção.

É impressionante a amplitude geográfica do elenco de remetentes que se dirigia a Roberto Burle Marx e com os quais ele também se correspondia, espalhados pelos quatro cantos do mundo, desde o longínquo Extremo Oriente até países vizinhos da América do Sul, afora localidades brasileiras, num período que cobre o final dos anos 1940 e os primórdios da década de 1990. Constituído tanto por figuras importantes quanto por pessoas comuns, esse rol de correspondentes elegia as principais línguas ocidentais enquanto veículo de comunicação, adotando ou não seus próprios idiomas nativos, como o inglês, o francês, o alemão, o italiano, o espanhol e o português, e mesmo inventando combinações de línguas, em algumas circunstâncias.

Jardins de Odette Monteiro, Correas, Petrópolis, hoje abandonados, paisagismo de Roberto Burle Marx e equipe
Foto de Andrés Otero [Acervo GMD]

De fato, a correspondência passiva de Burle Marx é uma singular babel poliglota que instiga, surpreende e atordoa, ao descortinar inicialmente os esforços de aproximação dos missivistas na escolha da língua a que se dirigir ao paisagista. E isso acarretava as mais díspares e inusitadas situações, que hoje ajudam a restabelecer, ao menos em parte, o colorido do intrincado mosaico de relações e formas de interação com o profissional brasileiro. É o caso do paisagista japonês Keiji Uehara que achou ideal redigir em espanhol; da norte-americana Mildred Constantine, curadora associada do Departamento de Arquitetura e Design do The Museum of Modern Art, de Nova York, que apelou para um português desconcertante, talvez na expectativa de obter uma resposta mais rápida, em carta de 19/4/1963; do paisagista inglês John Stoddart, sócio de Burle Marx e responsável pela sucursal do escritório em Caracas, na Venezuela, que escrevia num portunhol capaz de fazer inveja aos sincretismos linguísticos e escorregadelas gramaticais de um Juó Bananere; de Walter Burle Marx que, radicado nos Estados Unidos, sentia necessidade de manter uma larga e assídua comunicação com o irmão, mas sempre em inglês; do paisagista suíço Conrad Hamerman que, embora vivendo nos Estados Unidos, preferia exprimir-se em bom português, para exercer o idioma que aprendera na infância, quando morou com sua família no Brasil; e assim por diante. Vista de outro ângulo, essa pluralidade idiomática reverbera muito bem o alcance da vida de um profissional e de um homem como Roberto Burle Marx, que se voltou tanto a desbravar suas próprias fronteiras nacionais quanto ir muito além delas.

Com o passar do tempo, a multiplicação dos contatos nacionais e internacionais determinou a criação de um sistema de ordenamento e guarda das missivas. O acervo foi sendo distribuído em mais de meia centena de pastas-fichário identificadas por países e estados brasileiros de origem dos remetentes ou destinatários, reunindo mais de 2.000 papéis dispostos em sequência temporal decrescente, fixada para agilizar o arquivamento das recém-chegadas ou das reproduções das despachadas sempre por cima do que já estava armazenado. Exceções desse critério foram as pastas temáticas para um único destinatário ou remetente, adotadas em razão do volume considerável de documentos – caso dos conjuntos de Walter Burle Marx e Conrad Hamerman. Preservado na empresa do paisagista, na cidade do Rio de Janeiro, esse legado epistolar agrupa conjuntamente as cartas profissionais e as pessoais, as recebidas e as cópias das enviadas, durante quase seis décadas.

As pesquisas que realizei neste arquivo entre 2012 e 2016, apontaram que, além das duas vertentes principias da correspondência, ou seja, a ativa e a passiva, havia outra também importante. São as missivas de terceiros, incorporadas em meio às pastas geralmente na forma de reproduções, mas sempre relacionadas ao cotidiano de trabalho do paisagista-artista ou aos diversos assuntos de seu interesse. Assim há cartas de John Stoddart, de Guilherme Siegfried Marx, de Walter Burle Marx, um grupo significativo delas sobre a queimada florestal na Amazônia promovida pela Volkswagen do Brasil, em 1976, entre vários exemplos.

Nem tudo que compõe o arquivo epistolar foi passível de ser identificado aos pares, ou seja, há cartas recebidas cujas respostas não foram localizadas e vice-versa. Essa questão se explica pelas missivas de Burle Marx que não foram reproduzidas em carbono antes de serem enviadas, pela ruptura intencional do diálogo escrito por uma das partes e, sobretudo, pelo extravio em razão das deficiências dos serviços postais brasileiro e internacional, cujas queixas são frequentes em vários papéis. Mas é bom que se diga que são poucos os carteadores que gostavam de escrever tão longamente quanto o paisagista brasileiro, mesmo quando eram pessoas próximas. E grande parte do que lhe chegava vinha datilografado, pouco importando se fosse correspondência pessoal ou profissional, nacional ou estrangeira, indicando que o hábito de manuscrever a tinta e com caligrafias caprichadas estava em pleno declínio.

Jardins de Odette Monteiro, Correas, Petrópolis, hoje abandonados, paisagismo de Roberto Burle Marx e equipe
Foto de Andrés Otero [Acervo GMD]

Mosaico de remetentes

Roberto Burle Marx era o centro de convergência de um surpreendente fluxo epistolar que abrangia os mais prováveis e improváveis rementes dispersos pelo Brasil e pelo mundo. Mas quem eram essas pessoas interessadas em cartear, por breve ou largo período, com ele? Havia um mosaico de dezenas de emitentes formado por nomes com diversificado perfil humano e profissional: sócios, colaboradores, admiradores, familiares, amigos, clientes, paisagistas, botânicos, agrônomos, horticultores, comerciantes de vegetação, ambientalistas, colecionadores de plantas, professores universitários, estudantes, arquitetos, urbanistas, artistas plásticos, músicos, regentes, joalheiros, galeristas, escritores, críticos, historiadores, jornalistas, editores, intelectuais, diretores de museus e faculdades, administradores de instituições botânicas, políticos, diplomatas, funcionários públicos, empresários e outros mais.

Carta de Ise Frank e Walter Gropius, de 23/4/1954 [Acervo Escritório de Paisagismo Burle Marx]

Entre esses missivistas, destacavam-se figuras de projeção no cenário artístico, arquitetônico e paisagístico internacional do século 20, como Walter Gropius, Marcel Breuer, Richard Neutra, Philip Johnson, Ieoh Ming Pei, Alexander Calder, André Bloc, Giò Ponti, Bruno Zevi, Max Bill, Kevin Lynch, Georgy Kepes, Thomas Church, Garrett Eckbo, Lawrence Halprin, Ian McHarg, Geoffrey e Susan Jellicoe. Também incluíam redes de botânicos, agrônomos, horticultores, intermediários e comerciantes de plantas que tiveram enorme importância no âmbito dos interesses do paisagista, caso de Robert e Catherine Wilson, Karl Wendlinger, Augusto Burle Gomes Ferreira, Margaret Mee, Graziella Barroso, Luiz Emygdio de Mello Filho, Nanuza Luiza de Menezes, Hermes Moreira de Souza, Simon Mayo, David Woolsey, Gabriel Berriz, Conrad Hamerman. E ainda havia mais exemplos de uma considerável lista de interlocutores ocasionais ou frequentes, apenas abreviada aqui para não estender demasiadamente a exposição.

Tão plurais quanto os remetentes eram os assuntos explanados nas cartas, embora geralmente alguns fossem mais constantes do que outros. É o caso dos projetos em andamento, das perspectivas de trabalho presente e futuro, dos convites para realização de obras, da preparação de exposições, do planejamento de conferências, da recepção de estudantes e profissionais, de pedidos de entrevista e emprego, da consolidação e arrefecer de relações profissionais, da conquista ou ruptura com clientes, da solicitação de fotos e desenhos pela imprensa, das matérias veiculadas por jornais, revistas e livros, da aquisição e troca de plantas, da identificação científica de novas espécies, da preparação de viagem de trabalho e expedições botânicas, da crítica ambiental. Isso apenas para dar rápida ideia da multiplicidade de conteúdos presentes nas missivas recebidas, cujo acesso abre significativas possibilidades de conhecimento e revisão da extensa e intensa atividade profissional de Burle Marx.

Lidas não de modo individualizado, mas como peças de um quebra-cabeça que aos poucos vai se mostrando, a correspondência passiva ajuda a elucidar indagações antigas e novas na mente dos estudiosos e apreciadores do legado burlemarxiano. Por meio delas, é possível entender, por exemplo, o curso do reconhecimento nacional e internacional da obra do paisagista. A largada desse processo se confunde com as iniciativas de três estrangeiros atuantes na crítica e no jornalismo especializado que se interessaram pelo trabalho de Burle Marx, promovendo-o de modo sistemático a partir da segunda metade da década de 1940. Dois desses atores são os italianos Pietro Maria Bardi e Lina Bo Bardi, bem conhecidos pelo amplo e fundamental papel que exerceram na discussão e valorização da arte e arquitetura moderna no Brasil da segunda metade do século 20. O terceiro nome é a inglesa Claude Vincent, lembrada vagamente hoje como uma das primeiras colunistas de teatro a romper a hegemonia masculina nesse segmento da imprensa diária brasileira, mas completamente esquecida no que se refere à sua atuação em paisagismo e arquitetura.

Lançamento internacional

Jornalista e crítica que se transferiu para o Rio de Janeiro, em 1946, Claude Vincent era o pseudônimo de Agnes Claudius, que dividia sua rotina de trabalho escrevendo matérias de arquitetura e paisagismo para a Architectural Review, revista inglesa da qual era correspondente no exterior, resenhas de teatro para o jornal carioca Tribuna da Imprensa, colaborações esparsas com outros diários e mensários nacionais e traduções para o inglês, inclusive algumas pioneiras da dramaturgia brasileira. Na década anterior, viveu ou talvez apenas viajou pelos Estados Unidos, onde estreitou relações com alguns paisagistas. Em Berkeley, por exemplo, conheceu Thomas Church e sua esposa, os quais bem se recordavam dela, segundo menção em carta do profissional californiano, de 21/3/1949. Miss Claude, como ficou conhecida entre a classe teatral brasileira, era alguém que amplamente transitava em meio à intelectualidade do Velho e do Novo Mundo, construindo teias de relações que não tardariam a ser acionadas em favor do paisagista brasileiro.

Vincent foi artífice da estreia europeia de Burle Marx, ao publicar o primeiro texto alentado sobre a produção paisagística dele na imprensa da Inglaterra. Foram oito páginas na edição de maio de 1947, da Architectural Review, então um dos principais mensários estrangeiros voltados à difusão das realizações do movimento moderno. É bom que se diga que, até aquela época, a produção de Roberto já tivera algumas breves e esparsas aparições na imprensa internacional e em catálogos de exposições, caso de Brazil Builds: Architecture New and Old, 1642-1942, organizada por Philip Goodwin, para o The Museum of Modern Art, de Nova York, em 1943, mas nada comparado à iniciativa de Claude Vincent.

Nos anos posteriores, a jornalista seguiu empenhada na construção do reconhecimento público dele, escrevendo, discutindo e veiculando mais artigos tanto fora quanto aqui. Em 20/5/1949, uma versão em português da matéria da Architectural Review circulou no Diário Mercantil, de Juiz de Fora. Em setembro do mesmo ano, o texto “O arquiteto paisagista Roberto Burle Marx” foi estampado na revista Rio. “Jardins públicos e particulares” saiu no Correio da Manhã, de 26/6/1951. “O jardim de Botafogo” ganhou as páginas da edição de janeiro/março de 1953, da Revista Municipal de Engenharia. E alguns meses depois, o número de novembro de 1953/ janeiro de 1954, de Brasil Arquitetura Contemporânea, apresentou “Jardins do Parque Ibirapuera: Roberto Burle Marx”, em que miss Claude talvez buscasse influir nas decisões da Comissão do IV Centenário para aquela área, em São Paulo, num momento em que a balança da seleção de projetos possivelmente inclinava-se para o trabalho de Octavio Teixeira Mendes.

Visita de Walter Gropius em companhia de Burle Marx (de costas), Claude Vincent e Wit-Olaf Prachnick aos jardins de Odette Monteiro
Foto José Mendonça Góes [CALS 1995, p. 116]

Certamente em razão de seu manifesto empenho em prol de Burle Marx aliado às suas qualificações técnicas, não é de se estranhar que Claude Vincent fosse escalada para receber e acompanhar estrangeiros interessados em conhecer ao vivo os jardins dele. Em janeiro de 1954, ela integrou o grupo que conduziu Walter Gropius e a esposa Ise Frank a ver três projetos na região de Petrópolis, começando pelo de Odette Monteiro (1). E a pretexto de registrar as impressões do fundador da Bauhaus durante a visita, ela redigiu extensa matéria levada a público, em duas partes, no mesmo Correio da Manhã, de 24/1/1954. Contudo, não eram apenas esses meios que a crítica inglesa lançava mão de forma a propalar a criativa atuação do brasileiro.

Primeira panorâmica

Vincent participou diretamente da organização da primeira mostra panorâmica de Burle Marx em Londres, acompanhando inclusive sua montagem no Institute of Contemporary Arts, antes de ser inaugurada em meados de abril de 1956. E nem bem a exposição estava aberta, já anunciava em carta de 23/4/1956 as tratativas que encaminhava, visando leva-la para outras cidades europeias, logo a seguir:

“Amanhã devo ver um secretário da embaixada, de Vicenzi, muito interessado no seu trabalho, que recebeu de Roma, convite para exposição sua ali. E eu também mandei telegrama para Milão, para Paschoal Carlos Magno, perguntando quando e se Ernesto Rogers estaria interessado numa exposição. Além disso, Murtinho, Tuni e Bopp estão, parece, esperando datas para a exposição, ou exposições, na Suíça. Tudo isso vamos discutir amanhã, Vicenzi e eu” (2).

Na mesma correspondência, incluía algumas apreciações colhidas entre os frequentadores que compareceram à abertura, caso de duas figuras de proa da arquitetura moderna inglesa – Jane Drew e Maxwell Fry. E comunicava os preparativos de um debate com a presença também de representantes do paisagismo local, como Herbert Francis Clark e Geoffrey Jellicoe, este autor do texto de apresentação da mostra, de modo que Burle Marx pudesse acompanhar com riqueza de detalhes e no calor da hora o que se passava ali:

“Jane Drew e Maxwell Fry, que botaram seus trabalhos no livro Tropical Architecture que ainda não vi, mas que procurarei mandar para você, gostaram imensamente de sua obra. Amanhã vou visitar o escritório deles para falar mais a respeito – vai haver no dia 10 de maio uma discussão, debate, sobre o seu trabalho, no recinto da exposição, e eles querem que eu tome parte, com Clark, Jellicoe, Marshall e outro. Na sua introdução à exposição, Jane Drew falou muito bonito sobre a integração da cor e da arquitetura em sua obra, que ela estima como a única contribuição valiosa em paisagismo, na nossa época. Jane Drew é uma figura importante aqui, alguns a chamam de difícil, mas tem se mostrado carinhosa a meu respeito, disse que sem mim a exposição não teria sido feita e isso na frente de todos reunidos. Felizmente eu estava escondida atrás de um homem muito mais alto e gordo, ao lado de Peter...” (3)

Transcorrido o debate, miss Claude escrevia novamente a Burle Marx, em 14/5/1956, trazendo-lhe como que um termômetro das reações mais favoráveis despontadas no círculo paisagístico inglês, sintetizadas pelo historiador Herbert Francis Clark, que

“esteve presente e fez um discurso sobre você no debate. Disse que você era um paisagista ideal: botânico, homem de vasta cultura, uma personalidade com ideias particulares e de arte; e lamentava não se ter aqui as condições para um Burle Marx. Achava [que existe] aqui uma falta de vitalidade atual... e de possibilidades também” (4).

De certo, um dos projetos mais acalentados de Vincent em relação à Burle Marx foi a escrita e a publicação de um livro sobre a obra paisagística dele. Acompanhando a intensa correspondência da jornalista ao longo de 1956, várias passagens dão conta do andamento desse trabalho, que sairia provavelmente numa coedição entre as editoras Percy Lund Humphries e Harvard Press University, com texto de introdução de Harry Cole ou Herbert Francis Clark e fotografias de Marcel Gautherot. Na missiva enviada em 30/6/1956, ela informava que estivera com

“Eric Gregory, amigo de Henry Moore e Jane Drew, o editor chefe de Percy Lund Humphries Ltd, a casa editorial que está com o manuscrito do livro. Ele me disse que escreveu uma carta a Harvard University Press, a Warren Smith, falando entusiasticamente sobre: a) a reação à minha contribuição do dia 10 de maio no Institute of Contemporary Arts, que ele, Jane Drew e Mrs. Morlan acharam de primeira, e b) sobre a reação dele, ao ler a parte do manuscrito que [falava dos] murals e o summing up. As fotos branco e preto ficaram em Harvard. As novas que você me mandou, e as duas que o ICA me emprestou para apresentar, Pignatari e Museu de Arte Moderna, deixei com Gregory, para este ver com Mrs. Morlan se o ICA me dá de presente para o livro.

Gregory foi dos mais gentis comigo, disse que qualquer coisa que precisar, só tenho de telefonar para ele. Evidentemente classificou-me como uma pessoa capaz de transmitir com exatidão e de maneira clara suas ideias. Disse que assim que tiver a reação de Harvard [parte ilegível]. Sugeriu Harry Cole, mas eu disse que apesar de gostar muito de Harry, a reação de H. F. Clark seria provavelmente mais valiosa, já que este é professor de paisagismo em Reading” (5).

Passados quatro meses, em 15/10/1956, a inglesa retomava a questão do livro, avisando que a editora de Harvard solicitara alguns ajustes na escrita de dois capítulos. Mais algumas idas e vindas aconteceram, até que o assunto morreu definitivamente na correspondência. Para dissabor de Claude Vincent e Burle Marx, malogrou aquele que seria um livro pioneiro sobre o paisagista editado pelo mercado estrangeiro e sabe-se lá onde foi parar – talvez ainda esteja esquecido numa gaveta de uma sede editorial ou num armário doméstico em alguma parte da Inglaterra. Contudo, a tragédia maior para a jornalista foi o agravamento de seu quadro de saúde nos tempos seguintes, motivando o encerramento de sua carreira e sua despedida de cena.

No mesmo ano da vinda de Claude Vincent, os italianos Lina Bo e Pietro Maria Bardi também desembarcaram no Rio de Janeiro. Chegaram em outubro de 1946 para acompanhar a montagem de três exposições temporárias na cidade, respectivamente sobre arte italiana antiga e moderna e objetos para interiores domésticos. Contudo, a ratificação de um convite do empresário das comunicações Assis Chateaubriand para que Bardi organizasse e dirigisse um grande museu de arte aqui levou-os a trocar a Itália pelo Brasil, fixando-se na capital paulista, em 1947. Começava a saga da formação do Museu de Arte de São Paulo – Masp, que se tornará um das principais instituições museológicas do país e da América Latina no correr dos anos.

A expressiva bagagem profissional e o trânsito em meio à intelectualidade europeia credenciavam a dupla italiana para tal projeto que não seria simples e nem de curto prazo. Bardi era conhecido marchand e crítico de arte na Itália. Lina trabalhara com Giò Ponti e reunia experiências significativas em museografia, jornalismo especializado, edição de revistas e artes gráficas. Durante a 2ª Guerra Mundial, ela escreveu e fez ilustração para Lo Stile, produziu artigos para Tempo, Grazia e Vetrina, dirigiu a Domus e, ao lado de Bruno Zevi e Carlo Pagani, fundou o semanário experimental A, Cultura della Vita (6).

O papel dos Bardi

À medida que o Masp foi tomando forma e conteúdo como polo de desenvolvimento educacional e social, Lina e Bardi lançaram-se a novas realizações que complementavam e expandiam os efeitos multiplicadores daquele projeto, sendo uma das principais a criação da revista Habitat, direcionada sobretudo à afirmação da arquitetura e da cultura moderna no Brasil. Foi a partir das páginas dessa publicação que ambos puseram em marcha uma ação intensa e extensa de difusão e valorização da obra de Roberto Burle Marx, que principiou com artigo a cerca da produção têxtil do artista logo no segundo número da revista, de janeiro/ março de 1951. Na edição seguinte, a capa idealizada por Lina estampava foto dos jardins de Odette Monteiro, no distrito de Correas, Petrópolis, e Bardi assinava um dos carros-chefes daquele número – a matéria “Os jardins de Burle Marx” –, que se estendia sem interrupções da página 7 à 15, numa das mais longas coberturas da atuação do paisagista feita pela mídia impressa nacional até aquela época.

Capa da revista Habitat 3 desenhada por Lina Bo Bardi, com obra de Roberto Burle Marx [Centro de Documentação do Masp]

O sexto número trazia outra capa de autoria de Lina destacando então um painel de Roberto para a residência Walter Moreira Salles, no Rio de Janeiro, e matéria a respeito dessa moradia. A Habitat 8, de 1952, veiculava a reportagem “Uma exposição de Burle Marx”, de Emílio Villa. Bardi assinava “Arquitetura e arquitetura de jardins” na edição 13, de dezembro de 1953. Em dose tripla, o número 15, de março/abril de 1954, incluía as matérias “O arquiteto de jardins” e “Esculturas para jardins”, ambas do crítico italiano, e sobre o Instituto de Puericultura, no Rio de Janeiro, além de capa de Lina contendo foto de escultura de Roberto. Em seu noticiário, a edição 16 dava a nota “Burle Marx nos Estados Unidos”. No número seguinte, ao publicar o Teatro Popular em Marechal Hermes, no Rio de Janeiro, mostrava-se também o pano de boca desenhado por Burle Marx e impresso em serigrafia por Lili Corrêa de Araújo. A Habitat 17, de julho/ agosto de 1954, discutia “A tarefa nativista de Roberto Burle Marx: a síntese do real”. Escrito por Geoffrey Jellicoe, “Interpretação britânica dos jardins brasileiros de Roberto Burle Marx” estava no número 29, de abril de 1956. Geraldo Ferraz respondia pela matéria “A exposição de Burle Marx, na edição sequente. Seis números à frente, o crítico de arte refinava suas considerações no longo ensaio “Individualidades na história da atual arquitetura no Brasil: Roberto Burle Marx”. Na mesma Habitat de setembro/ outubro de 1956, figurava a notícia “Roberto Burle Max com seus jardins e murais na Europa”. E ainda haverá mais artigos até o encerramento da revista, nove anos depois.

Capa da revista Habitat 6 desenhada por Lina Bo Bardi, com obra de Roberto Burle Marx [Centro de Documentação do Masp]

Em matérias extensas ou breves notas, em capas arrojadas ou reportagens fartamente ilustradas, Burle Marx foi uma das presenças constantes – se não o mais exposto dos arquitetos e paisagistas modernos brasileiros – ao longo dos quinze anos em que circulou Habitat, entre outubro de 1950 e dezembro de 1965, inclusive pelas Américas e Europa. Mas o apoio prolongado do casal Bardi se multiplicava igualmente por outros canais de considerável visibilidade, especialmente na forma de grandes exposições no museu criado e gerido por eles. Nesse segmento, houve duas exibições dedicadas a Burle Marx no Masp – uma em 1952, na sede inicial da instituição à rua 7 de Abril, e outra em 1979, no endereço definitivo da avenida Paulista.

Mostra consagradora

Poucos eventos eram tão importantes e consagradores na carreira de um artista brasileiro quanto apresentar seus trabalhos num centro expositivo de vanguarda como o Museu de Arte de São Paulo. E Burle Marx teve essa oportunidade por duas vezes assegurada pelos Bardi. Contudo, a primeira delas impactou tão marcantemente em sua vida profissional e pessoal que algumas consequências e desdobramentos ainda hoje são possíveis de serem resgatados em diferentes papéis da correspondência passiva.

Pelo menos desde o final de 1948, essa iniciativa vinha sendo amadurecida, segundo testemunha uma missiva de Bardi, de 10/12/1948, preservada nos arquivos do Masp. No ano sequente, o diretor do museu dava mais um passo no encaminhamento da proposta, fazendo um invite ao paisagista, em carta de 26/11/1949, igualmente conservada naquela entidade:

“A sala onde você terá a sua exposição está em vias de acabamento. Espero, portanto, que você não deixará de vir a São Paulo para estudarmos juntos a melhor maneira de instalar esta sua grande exposição.

Seria bom também combinarmos exatamente a época para tomarmos em tempo todas as devidas providências.

Sem mais, aguardando uma sua resposta, ou melhor ainda, uma sua visita, envio-lhe um abraço” (7).

Em 1952, saiu a mostra, com Lina assinando o projeto de museografia, a partir de sofisticadas e parcimoniosas estratégias compositivas, que vinham sendo depuradas a cada nova proposta dela, num consistente e original trabalho que marcou época dentro e fora do Masp. A sala principal de exposições temporárias em planta livre recebeu extensos painéis horizontais, distribuídos em layout ortogonal e suspensos, a partir de um sistema de fixação em esbeltos perfis metálicos sobre o piso e tirantes no teto para finalizar a estabilidade do conjunto. Como resultado geral, os leves planos pareciam se desmaterializar e flutuar no ar, valorizando com sua neutralidade e simplicidade as obras plásticas sobre eles dispostas, deixando a vista percorrer sem impedimentos excessivos os ambientes expositivos e rompendo com o modelo das salas sequenciadas ou câmaras isoladas dos museus antigos.

Primeira retrospectiva de Burle Marx realizada no Museu de Arte de São Paulo, em 1952
Foto de Peter Scheier [Centro de Documentação do Masp / Instituto Moreira Salles]

A solução inovadora de Lina fazia jus à não menos criativa obra de Burle Marx exposta sobre aqueles painéis ligeiros. O paisagista-artista e sua equipe prepararam vários desenhos especialmente para a ocasião – pranchas a guache colorido representando sinteticamente o plano geral de alguns de seus principais jardins, realizadas com pintura bem executada e de forte apelo visual tanto para leigos quanto profissionais. Aliás, esses desenhos coloridos se tornarão frequentes em publicações e exposições, tomados pelos estudiosos e pela crítica como peças gráficas do processo projetual ou recursos de apresentação a clientes especiais, sem de fato sê-los.

Além desses, Burle Marx providenciou várias ampliações fotográficas em grande formato feitas por Marcel Gautherot, apresentando os jardins da Pampulha, de Juscelino Kubitscheck, de Odette Monteiro, de Walter Moreira Salles, de Argemiro Hungria Machado, do Instituto de Resseguros, do painel do Instituto Oswaldo Cruz e outros. Selecionou também painéis cerâmicos, azulejos, projetos de murais e peças de tecido com estampas de sua autoria e confecção em serigrafia por Lili Corrêa de Araújo. Na montagem, os desenhos coloridos foram dispostos cuidadosamente sob os painéis lineares, sempre com boa distância entre eles para favorecer a apreciação. Num dos lados maiores da sala, as fotos compunham um longo e assimétrico mosaico, presas a um bonito painel de finas réguas horizontais, executado à maneira de folhas de veneziana justapostas. E na parede oposta, havia a sequência de tecidos, pendurados de cima até embaixo e lado a lado, também com marcante efeito cenográfico.

Desdobramentos significativos

Em quatro páginas, a Habitat 8 noticiou a exposição do Masp apresentada entre junho e agosto de 1952. E o que foi visto por meio das belas fotos de Peter Scheier que documentaram o evento e compareciam naquele número chamou a atenção da historiadora Annemarie Henle Pope, então diretora do Smithsonian Institute Traveling Exhibition Service, em Washington. Em carta de 26/1/1953, Pope escrevia a Bardi, solicitando sua mediação num contato com Burle Marx, de modo a trazer a mostra aos Estados Unidos. As intenções dela não eram nada modestas:

“Nosso amigo comum José Gómez Sicre sugeriu-me que lhe escrevesse sobre um projeto de exposição que ele e eu acalentamos há algum tempo. Nós dois estamos extremamente interessados no trabalho do grande artista Roberto Burle Marx e tencionamos apresentar uma seleção de sua obra nos principais museus dos Estados Unidos.

Recentemente, eu vi na Habitat n. 8, por meio de ótimas fotografias, a exposição que foi realizada em seu Museu. Se fosse possível trazer esta mostra para nosso país, com desenhos originais, pinturas e obras têxteis, bem como fotografias e maquetes, seria uma excelente oportunidade para apresentar o Sr. Burle Marx ao público em geral daqui. O Sr. Gómez Sicre gostaria de abrir a exposição na Pan American Union e gostaríamos de lhe consultar sobre a possibilidade de fazê-la circular por aproximadamente um ano, sob nosso patrocínio” (8).

Passados alguns dias, Bardi dava a ótima e inesperada notícia ao paisagista, buscando mensurar o alcance do convite em missiva de 3/2/1953:

“Envio-lhe aqui junto uma carta do Smithsonian Institution de Washington para você melhor compreender o conteúdo e a importância da proposta. É uma bela vitória para você e é uma oportunidade como nenhum artista brasileiro teve até agora.

Agora precisamos fazer uma exposição inteligente, correta, com fantasia, uma exposição afinal como os americanos não costumam ver. Mas é preciso fazer, agir. Como, quando?

Espero sua resposta e detalhes de sua ideia a respeito. Escreva logo. Por enquanto, eu respondo ao Smithsonian, agradecendo e prometendo maiores informações para breve” (9).

Assim principiavam as articulações para um evento que lançou Burle Marx na ribalta da cena cultural norte-americana, levando seu trabalho a uma dezena de cidades daquele país, conforme será detalhado mais a frente. Nesses contatos externos, a atividade dos Bardi em prol do artista se fazia também sentir intensamente na mediação com publicações, editoras, museus e profissionais estrangeiros. A recomendação do brasileiro à nata da intelectualidade e da mídia arquitetônica italiana, como Giò Ponti e Bruno Zevi, foi orquestrada por Lina. Na França, era possível constatar o mesmo papel dela, ao se ler uma carta de André Bloc, editor de Aujourd’Hui Art et Architecture, que escrevia apreensivo ao paisagista, em 3/4/1956, porque o material para publicação que seria encaminhado pela arquiteta italiana ainda não havia chegado.

Certamente um dos projetos mais ambiciosos do casal Bardi foi a produção um livro sobre a obra burlemarxiana, visando sobretudo o público estrangeiro. Talvez iniciada em simultâneo ao planejamento da exposição do paisagista no Masp, a publicação já aparecia no elenco de catálogos e livros em preparação pelo museu, segundo consta na orelha do catálogo da mostra de Richard Neutra, levada aos espaços da rua 7 de Abril, em outubro de 1950. Pelo jeito, a gestação foi tão longa quanto a do livro de Claude Vincent, mas felizmente sem um desfecho semelhante. Treze anos depois, Pietro Maria Bardi avisava em correspondência de 26/8/1963 a proximidade do desfecho daquele trabalho que envolvia diferentes casas editoriais e idiomas:

“Como você vê, estou em Amsterdã para costurar as várias edições. Nunca mais farei livros com tantas editoras: cada uma quer uma coisa diferente e para conciliar ‘capra e cavalo’ precisa uma paciência que não é do meu caráter. Mas, para não perder tempo, virei um carneirinho e espero, nos próximos dias, resolver todos os casos editoriais. O livro vai bem. Os editores são de grande responsabilidade e muito cuidado. A luta principal foi que o pessoal queria só plantas de jardim e não a obra completa de B. M. em pintura etc. Naturalmente não fiz a menor concessão. Fique sossegado” (10).

Roberto Burle Marx (em pé), Pietro Maria Bardi e Marcel Gautherot em reunião de trabalho
Foto divulgação [Coleção Aldira Burle Marx / CALS 1995, p. 118]

Sob o título The Tropical Gardens of Burle Marx, nas versões em inglês, o livro de Bardi veio à luz finalmente em 1964. E o feito era espantoso na época, sem equivalentes em termos de monografias de artistas e arquitetos brasileiros – cinco edições simultâneas publicadas, respectivamente, em Nova York, pela First U.S. Edition/ Reinhold; em Londres, pela Architectural Press; em Milão, pela Gorlich; em Stuttgart, pela Verlag Gerd Hatje; em Amsterdã e Rio de Janeiro, pela Colibris. A publicação fazia um apanhado geral da multifacetada produção do artista, embora com ênfase no segmento paisagístico, reunindo belos ensaios fotográficos de Marcel Gautherot que vinham sendo clicados desde meados dos anos 1940.

Mas nem tudo era um mar de rosas, isento de contradições, dificuldades e cobranças de parte a parte, na relação entre o casal e o paisagista. Se existia respaldo desinteressado e altruísta do lado dos Bardi, também havia expectativas e pedidos diretos de contrapartidas ao longo dos anos. É o que se depreende na leitura da carta do diretor do Masp, de 8/3/1967:

“V. deve ter lido o artigo que publicamos na edição n.1 de ‘Mirante das Artes’, a respeito do Conselho de Cultura. Congratulo-me com a sua nomeação e espero que as vultosas verbas sejam distribuídas com critério.

Aqui nesta praça, o Bardi deve:

1. Acabar a sede do Museu no Trianon;

2. Continuar a ação de ‘Mirante das Artes’

Peço ao prezado Amigo o favor de lembrar disso” (11).

Conexões norte-americanas

Acompanhando-se a correspondência passiva, é possível identificar que não foi iniciativa de Burle Marx, mas dos próprios norte-americanos que encetaram algumas tentativas de aproximações momentâneas ou duradouras com o profissional brasileiro. As primeiras foram orquestradas, ao menos, desde o final dos anos 1940, por três representantes do paisagismo moderno e do meio universitário daquele país – Thomas Church, Garrett Eckbo e Bremer Pond. Nome central da produção paisagística californiana, Church foi encarregado de transmitir um convite especial da California Association of Landscape Architects e do The San Francisco Museum of Modern Art. Em missiva de 22/11/1948, ele propunha ao brasileiro tomar parte de uma exibição retrospectiva do paisagismo daquela década, ao lado de um seleto grupo encabeçado por Christopher Tunnard e James Rose.

Sem dispor do endereço correto de Burle Marx, Thomas Church arriscou encaminhar sua carta à sede do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, chegando tardiamente às mãos do paisagista. Diretor do Department of Landscape Architecture, da Harvard University, e ex-colaborador de Frederick Law Olmsted, Bremer Pond igualmente não teve sorte num contato preliminar, talvez em razão do extravio de sua correspondência ou da resposta que aguardava, mas insistiu no invite para que o brasileiro remetesse material para uma exposição em preparo na sua faculdade, em carta de 5/11/1948. Garrett Eckbo era outra figura importante do paisagismo californiano que, naquele final de ano, se dirigia ao projetista brasileiro, embora com motivações distintas de seus antecessores. Em missiva de 22/11/1948, ele buscava colher opiniões, discutir ideias e solicitar fotografias para um livro que escrevia, possivelmente Landscape for Living, que à página 182, da edição de 1950, estampou uma foto do terraço-jardim do Instituto de Resseguros do Brasil, de autoria do brasileiro. Nos anos sequentes, os três prosseguiram carteando com Burle Marx e vice-versa.

A conjuntura mundial da década de 1950, com a Guerra Fria em andamento, fez com que os Estados Unidos retomassem uma atenção para a América Latina, fomentando alianças e redefinindo parcerias regionais que permitissem neutralizar as ameaças do avanço comunista. E os meios para tanto não se resumiam apenas às ações políticas e auxílios econômicos, mas também envolviam iniciativas culturas em sua agenda internacional para o continente.

Ninguém melhor encarnava esse papel de porta-voz do ativismo cultural norte-americano no exterior do que Nelson Rockefeller. O então presidente do The Museum of Modern Art, de Nova York – MoMA, voltava a se engajar no fomento de projetos artísticos nas Américas e na divulgação de novas imagens dos latinos nos Estados Unidos. No Brasil, foi um dos artífices da criação dos Museus de Arte Moderna de São Paulo e do Rio de Janeiro, da Bienal de São Paulo e manteve intensa colaboração com Ciccillo Matarazzo na montagem das primeiras edições da bienal paulista. Em 1954, assegurou uma maciça representação de seu país na Exposição Internacional de Arquitetura da II Bienal, incluindo parcela importante das mesmas obras exibidas em Built in USA. Postwar Architecture, mostra feita pelo MoMA em 1952 e levada a várias cidades norte-americanas (12).

Inaugurada no mesmo ano de 1954, a exposição de Burle Marx nos Estados Unidos foi, em certa medida, uma ação simétrica à presença arquitetônica norte-americana na Bienal de São Paulo. Promovida pelo governo de lá para ser apresentada na sede da Pan American Union, em Washington, e depois circular por diferentes localidades, praticamente de costa a costa do país, a mostra foi implementada pela ação conjunta de Annemarie Henle Pope e José Gómez Sicre. A partir de 1952, a historiadora alemã Pope assumira a direção do Smithsonian Institute Traveling Exhibition Service, órgão recém-criado em meio às atividades do maior complexo estatal de museus e centros de pesquisa dos EUA, visando à realização de mostras itinerantes de arte, que valorizassem temas pouco habituais ao público norte-americano. Um dos principais divulgadores da cultura latina nos Estados Unidos, o crítico de arte e escritor cubano Gómez Sicre comandava a Seção de Artes Visuais da Pan American Union desde 1948, após ter sido assistente de Alfred H. Barr Jr., no MoMA, historiador e instituição com que prosseguia mantendo diversos trabalhos e colaborações.

Abertura da exposição de Burle Marx em Washington, 1954. José Gómez Sicre, Érico Veríssimo (então diretor do Departamento de Assuntos Culturais da Pan American Union), Roberto e Walter Burle Marx, tendo ao fundo painel de azulejos e tecidos desenhados pel
Foto divulgação [Centro de Documentação do Masp]

As cartas de ambos destinadas a Burle Marx ao longo de 1953 e 1954 possibilitam recompor hoje as gestões feitas para materializar a exposição que, após Washington, esteve no The Musem of Cranbrook Academy, em Bloomfield Hills; no The Dallas Museum of Fine Arts; na University of Illinois; no The Smith College Museum of Art, em Northampton; no Georgia Institute of Technology, em Atlanta; na Scholl of Architecture, do Pratt Institute, em Nova York; no The Institute of Contemporary Arts, de Boston; no The J. B. Speed Art Museum, em Louisville; e na Scholl of Fine Arts, da University of Pennsylvania, na Filadélfia. Por exemplo, em missiva de 5/4/1953, Annemarie Pope esmiuçava seus planos e articulações que, afora a colaboração de Pietro Maria Bardi, envolveriam também Walter Moreira Salles, diplomata brasileiro e importante cliente do paisagista:

“Como o Sr. Bardi lhe falou, estamos muito interessados em fazer circular uma mostra de seu trabalho, não muito diferente daquela preparada para o Museu de Arte de São Paulo.

Anexamos uma cópia da carta de 26 de janeiro dirigida ao Sr. Bardi, na qual manifestamos nosso interesse nesta exposição. Seria interessante contar com desenhos originais, pinturas e obras têxteis, bem como fotografias ampliadas e montadas, maquetes, etc. Uma vez que seu trabalho ainda não foi devidamente apresentado ao grande público dos Estados Unidos, a exposição seria uma boa oportunidade para tanto.

Por favor, informe-nos se a exposição de São Paulo ainda está intacta ou se há condições de ser remontada. Seria possível inaugura-la aqui no próximo outono? Quantas caixas são necessárias para transporta-la e qual o peso total delas? Você poderia nos enviar algumas fotografias da montagem em São Paulo?

Recebendo sua confirmação, pretendemos entrar em contato com alguns dos principais museus americanos para verificar se e quando poderão apresentar sua mostra. Além disso, faremos tratativas com o embaixador Walter Moreira Salles, para verificar a possibilidade de algum apoio das autoridades brasileiras. Esperamos que seu Governo possa ajudar no transporte da exposição entre o Rio de Janeiro e Nova York. Como já mencionado, seremos responsáveis por todos os custos de transporte nos Estados Unidos, bem como os seguros e todas as outras despesas. Será que houve a publicação de um catálogo e poderíamos ter uma cópia dele? Se não, você poderia nos fornecer um projeto editorial de seu agrado, de modo que seja impresso aqui? Caso não haja condições, gostaríamos de ter um prefácio, talvez do Sr. Bardi ou de você, se preferir, uma lista de obras e um bom número de ilustrações. Seus dados biográficos também podem ser incluídos” (13).

Simultaneamente à organização da exposição, Gómez Sicre desdobrava as possibilidades de irradiação e valorização do trabalho burlemarxiano, desta vez com dupla iniciativa relacionada ao próprio MoMA. Em carta ao paisagista, de 12/6/1953, fazia saber que:

“Sugeri ao Sr. Alfred H. Barr Mr. Jr., diretor das coleções do Museu de Arte Moderna de Nova York, incluir na seção brasileira um ou dois de seus projetos de jardins. Meu interesse neste caso é duplo: ter seu trabalho representado no Museu, que hoje desfruta de muito prestígio, e incluir seus desenhos no catálogo geral da coleção latino-americana que o Museu me solicitou preparar. De modo algum, não gostaria que você estivesse ausente da parte dedicada ao Brasil” (14).

No ano seguinte, um desenho colorido do Parque Ibirapuera foi incorporado ao acervo do museu nova-iorquino, sendo pago ao brasileiro por meio de um cheque de duzentos dólares, enviado juntamente à missiva do crítico cubano, de 2/6/1954. A mesma comunicação portava também um artigo de sua autoria sobre Burle Marx, recém-publicado na revista Américas e futuramente incorporado em seu livro 4 Artists of the Americas: Roberto Burle Marx, Alexander Calder, Amelia Peláez, Rufino Tamayo, editado em 1957. Mas o interesse de José Gómez Sicre pelas atividades do brasileiro não se deteve aí, como testemunham diversos momentos da correspondência passiva.

Respaldos múltiplos

Em franca ebulição tanto lá quanto aqui, os preparativos da mostra implicaram na participação direta ou indiretamente de vários agentes elencados nas missivas. Por meio delas, hoje é possível compreender as redes de pessoas e organizações que interagiam para apoiar Burle Marx, abrangendo incentivadores antigos ou novos, constantes ou fugazes. Claude Vincent estava a postos, tratando de verter ao inglês a apresentação de Bardi destinada ao pequeno catálogo do Smithsonian. Ela disparou também várias cartas, acionando Thomas Church, Garrett Eckbo e Philip Johnson, a fim de promover encontros entre eles e o brasileiro, que ainda não se conheciam pessoalmente, e costurar possíveis auxílios para divulgação do evento no meio cultural, na mídia especializada e na grande imprensa local.

Carta de Thomas Church, de 2/8/1948 [Acervo Escritório de Paisagismo Burle Marx]

Garrett Eckbo prontamente respondeu à solicitação dela, fazendo circular uma nota informativa entre H. L. Vaughan, W. Wurster, A. Gallion, American Institute of Architects, American Society of Landscape Architects, Los Angeles County Museum, The San Francisco Museum of Art, Southern California Horticultural Institute, as revistas Arts and Architecture e Home Magazine e o diário Los Angeles Times, cuja cópia também remeteu a Burle Marx e Claude Vincent, em 27/4/1954. Após dois dias, foi a vez de Philip Johnson se manifestar. O diretor do Departamento de Arquitetura e Design do MoMA não somente convidava o paisagista brasileiro a visitar o museu novaiorquino, mas aproveitava a comunicação para afagar o ego dele:

“Fui informado por Claude Vincent que você está prestes a vir para os Estados Unidos. Seria ótimo você nos visitar no Museu. Para nós, você é o arquiteto paisagista mais famoso do mundo e, há tempo, muitos daqui, além de mim, gostariam de conhecê-lo.

Espero que o Sra. Pope nos informe quando sua exposição estará chegando à cidade. Se você tiver oportunidade, deixe-me saber antecipadamente quando você virá para cá, de modo que possa lhe receber” (15).

José Luis Sert, que estivera com Burle Marx no Rio de Janeiro, no início de 1954, acelerou as providências junto a Reginald R. Isaacs para marcar uma conferência do paisagista na Harvard University, em Cambridge, assim que soube da iniciativa do Smithsonian. Avisou Henry Kamphoefner, de modo que igualmente houvesse uma aula do brasileiro no North Carolina State College, em Raleigh. Na certa, tencionando retribuir a acolhida em sua estada carioca, Sert participava em 22/5/1954 que ainda queria promover um encontro com admiradores locais fora do ambiente acadêmico:

“Espero que a cópia da carta do Professor Isaacs, endereçada ao North Carolina State College, tenha lhe chegado e também que você possa vir até aqui para dar uma palestra na noite de 25 de maio. Eu gostaria muito de lhe proporcionar uma pequena recepção em minha casa, de modo que você possa conhecer várias pessoas interessadas em seu trabalho. Poderia ser no mesmo dia, às seis horas, em meu endereço (2 Buckingham Street, Cambridge), ou seria melhor para você marcarmos na tarde do dia 26, no dia seguinte à sua conferência? Por favor, deixe-me saber qual seria a data mais conveniente” (16).

Com as notícias correndo às vésperas da abertura em Washington, pipocavam convites para visitas, reuniões, aulas e encontros sociais em paralelo ao circuito oficial da exposição. Coordenador da 4th Design Conference, em Aspen, Will Burtin telefonou para Annemarie Pope e solicitou que intercedesse num primeiro contato com paisagista, realizado por carta dela em 11/5/1954. Logo estava definido que a exposição também iria para lá e haveria uma palestra de Burle Marx no ciclo de debates. Após a intervenção de Garrett Eckbo, a American Society of Landscape Architects convidou o brasileiro a tomar parte do seu congresso anual em Boston, proferindo conferência em 29/6/1954.

Casal Neutra

Bem além dos diálogos ligeiros, das conversas animadas ou das trocas de experiências que despontavam nessas ocasiões, a relação com Richard Neutra foi exemplo significativo dos desdobramentos práticos que podiam surgir no encontro entre profissionais, ou seja, parcerias de trabalho. Duas se concretizaram após a convivência que tiveram durante o evento de Aspen: Neutra convidou Burle Marx a desenhar um painel para o hall de entrada da Amalgamated Clothing Workers of America, em Los Angeles, e jardins para a residência do banqueiro Alfred de Schulthess, nos arredores de Havana, em Cuba. Houve outra possibilidade de colaboração, mas não é certo se foi adiante, em razão da desistência do contratante ou por outro motivo. Tratava-se do paisagismo da residência do escritor Gonzales Gorrondona, em Caracas, discutida em correspondência do arquiteto, de 29/8/1959.

Painel de Burle Marx para o hall da Amalgamated Clothing Workers of America, projetada por Richard Neutra em Los Angeles
Foto divulgação [Acervo Escritório de Paisagismo Burle Marx]

A ligação com os Neutra também ilustrava situações em que o convívio despertava afinidades e simpatias que podiam evoluir para amizades mais ou menos duradouras. Pelo teor das cartas, nota-se que o casal e o paisagista se tornaram amigos. Em 26/2/1970, Richard agradecia vivamente a recepção de uma publicação encaminhada por Roberto, provavelmente a monografia de Pietro Maria Bardi. Por força do destino, foi a última carta remetida pelo profissional austro-americano, que faleceu um mês e meio depois, vitimado por um ataque cardíaco durante uma viagem à Alemanha:

“Querido amigo,

Estamos tão felizes por receber seu belo livro. Temo-lo olhado constantemente, aproveitando página por página e discutindo-o com cada visitante que recebemos.

Seu trabalho é realmente excelente e eu não conheço ninguém que tenta algum sucesso em imitá-lo. Há pouco, citei sua palestra em algumas das minhas conversas. Estou muito grato que você tenha me enviado um exemplar.

Nós lhe queremos bem e esperamos vê-lo novamente” (17).

Mesmo após o desaparecimento do esposo, Dione prosseguiu com a amizade, carteando de tempos em tempos com o paisagista. Porém, nenhuma outra missiva dela foi tão tocante como aquela sobre a perda de seu companheiro de 48 anos e as perspectivas dali em diante sem a presença dele. Endereçada ao círculo de pessoas mais próximo do casal, a correspondência de 26/4/1970 expunha os sentimentos e os desafios da mulher de fibra e recém-viúva de um grande arquiteto, que não se entregava ao pessimismo numa situação-limite em sua vida.

Na capital americana

Com a presença de autoridades locais e brasileiras, de artistas, intelectuais e jornalistas, do próprio paisagista e seus familiares, deu-se em 18 de maio de 1954 a abertura da exposição Landscape Architecture in Brazil: Roberto Burle Marx na sede da Pan American Union, em Washington, patrocinada pelo Smithsonian Institute Traveling Exhibition Service e acompanhada de dois pequenos catálogos editados individualmente pelas respectivas instituições. A mostra oferecia uma impactante visão de conjunto da obra burlemarxiana ao público local, destacando, por meio de uma cuidadosa apresentação na forma de desenhos coloridos e grandes fotos de Marcel Gautherot, os jardins das residências Odette Monteiro, Walter Moreira Salles, Roberto Marinho, Juscelino Kubitschek, Hungria Machado, Tito Lívio Carnasciali, Paulo Antunes Ribeiro e Olavo Fontoura, o parque do Araxá e as praças em Botafogo e Salgado Filho, os jardins do Cassino da Pampulha, do Instituto de Puericultura, do Instituto de Resseguros do Brasil, do Ministério da Educação e Saúde, do edifício Prudência, o projeto do parque Ibirapuera, afora tecidos serigrafados por Lili Corrêa de Araújo, azulejos e painéis cerâmicos realizados pela Ossiarte.

Inauguração da mostra Landscape Architecture in Brazil: Roberto Burle Marx, Washington, 18/5/1954. Fernando Lobo (delegado brasileiro na OEA), Burle Marx e o casal Mildred e Robert Woods Bliss (presidente honorário da American Federation of Arts) observan
Foto divulgação [Centro de Documentação do Masp]

A cobertura da grande imprensa americana foi significativa. The Washington Post, The Times Herald, The Christian Science Monitor e diversos veículos noticiaram o evento. Mas o artigo de maior peso saiu doze dias após a inauguração no The New York Times, escrito por uma das principais críticas de arte e arquitetura desse jornal – Aline Bernstein Saarinen. A admiração do casal Eero e Aline Saarinen pela obra e pela figura de Burle Marx motivou inclusive um convite para que o brasileiro permanecesse alguns dias com eles, em sua casa de Bloomfield Hills, Michigan, nessa mesma viagem de 1954.

Enquanto aguardava o segundo vernissage, programado para Aspen, no final de junho, Burle Marx cumpria uma movimentada agenda de compromissos pelos Estados Unidos afora. Entre eventos profissionais e sociais, visitas a jardins botânicos e viveiros, museus e galerias de arte, circulou em Nova York, Cambridge, São Francisco, Los Angeles, Chicago, Boston, Filadélfia, Miami e outras cidades. Ao longo da viagem que levou quase dois meses, esteve com Thomas Church, Garrett Eckbo, Lawrence Halprin, Philip Johnson, Alexander Calder, José Luis Sert e vários luminares da cultura norte-americana.

Parceiros locais

Além de fervilhante centro da vanguarda artística na época, os Estados Unidos estavam na dianteira em múltiplos aspectos e setores. Um deles tinha especial interesse para Burle Marx – a horticultura comercial de espécies ornamentais. Entre os extremos de seu tour americano, o paisagista visitou por duas vezes The Fantastic Gardens, em Miami, importante viveiro e coleção de vegetação tropical dirigido por Robert e Catherine Wilson. A indicação para conhecer esse centro hortícola deve ter partido do botânico Luiz Emygdio de Mello Filho que, em carta de 26/5/1954, mediou uma aquisição de mudas e sementes para o profissional brasileiro, enquanto ele ainda estava naquele país:

“Nosso amigo, o famoso paisagista e pintor Roberto Burle Marx, atualmente nos Estados Unidos, esteve em seu jardim, como já lhe disse, e gostou muito de algumas plantas de sua coleção. Ele nos escreveu e está interessado em trocar plantas ornamentais consigo.

Desejamos receber material de duas plantas que causaram boa impressão ao nosso amigo durante sua visita:

Plumeria (flores rosas) de 50 a 100 espécimes.

Plumeria (flores amarelas) de 50 a 100 espécimes.

Atualmente, somos capazes de lhe oferecer o seguinte:

1. Sementes de Philodendron de diferentes tipos da região amazônica (Ph. Melinoni, Ph. Myrmecophyllum).

2. Espécimes de vários tipos de Dieffembachia, enviados limpos.

3. Sementes de Anthurium com grandes espatas, também somos capazes de oferecer.

4. Sementes de diferentes Araceae e árvores brasileiras.

Se houver dificuldades na realização da troca proposta, gostaríamos de receber informações sobre os preços ou quaisquer outros meios para obtê-los” (18).

No retorno do profissional brasileiro ao viveiro, a negociação se concretizou na base de permuta e o casal Wilson se tornará dali para frente um dos mais importantes parceiros de Burle Marx na busca de espécies tropicais e no contato com outros produtores, colecionadores e jardins botânicos daquele país e pelo mundo afora. Não há dúvida que essa aproximação foi um divisor de águas na formação do acervo botânico de Burle Marx, instalado no Sítio Santo Antônio da Bica, na Barra de Guaratiba, como também impulsionará colaborações em futuros projetos da envergadura de um Parque del Este, em Caracas. Uma história que aflora na prolongada correspondência de Catherine e Robert Wilson.

Jardins de Odette Monteiro, Correas, Petrópolis, hoje abandonados, paisagismo de Roberto Burle Marx e equipe
Foto de Andrés Otero [Acervo GMD]

As próximas décadas confirmaram que os laços de Burle Marx com os Estados Unidos e dos Estados Unidos com Burle Marx não seriam nem efêmeros e tão pouco superficiais. Havia uma amalgama de motivações que nutriam esse processo, a começar pelas visitas mais ou menos regulares do paisagista ao irmão Walter e sua família, domiciliados na cidade de Filadélfia, Pensilvânia, e para atender diversos compromissos e homenagens profissionais que despontaram no correr do tempo naquela nação. Mas para entender de que modo se firmou uma agenda de trabalho mais ou menos sistemática no país é necessário resgatar o papel exercido sobretudo por Conrad Hamerman, bem ilustrado na correspondência passiva.

Paisagista e professor universitário suíço-americano, Hamerman se tornou o principal agente de Burle Marx nos EUA, a partir do final da década de 1950 e até o desaparecimento do mestre brasileiro em 1994. Ele morava na Filadélfia, era próximo a Walter e com este partilhava uma série de amigos e gostos em comum. Hamerman atuava em diversas frentes no trato dos interesses do profissional brasileiro: marcava conferências em faculdades de paisagismo, jardins botânicos e organizações hortícolas; auxiliava na preparação delas e encarregava-se de vertê-las ao inglês; montava pequenas exposições; prospectava compradores para pinturas, desenhos, tapeçarias, murais, tecidos e gravuras de Burle Marx; adquiria e despachava mudas e sementes encomendadas; intermediava contatos de trabalho; era representante legal em concorrências e contratos; participava da elaboração de projetos de paisagismo de pequena a grande escala. Nesse último segmento, a carta de 6/7/1981 exemplifica sua dedicação para obter obras significativas em Miami:

“Amanhã vou me encontrar com Walmsley para discutir o andamento do projeto Oleta Rive e o nosso contrato. Espero poder lhe mandar um relatório sobre o nosso encontro no dia seguinte. É bom você não assinar os documentos que ele irá mandar antes de conversar comigo.

Para não fazer demasiada confusão, mando hoje alguma explicação dos dois outros projetos que estamos tentando conseguir em Miami. Um, o Bay Front Park, é aquele sobre o qual lhe telefonei no dia 21 de junho, o tal que o Isamu Noguchi já fez um plano piloto. Por enquanto, é um esboço geral. Será necessária uma certa colaboração com ele durante o ‘Design Development Stage’. Pelo resto, a carta inclusa explicará a composição da equipe. São todos gente em que tenho plena confiança. De acordo com Sadao, o parque tem uns 18 acres, situados na cidade de Miami, ao longo do mar. [...] Como nos outros casos, a agência municipal vai fazer uma primeira seleção entre as firmas que mostrarem interesse de fazer o trabalho, para depois entrevistar um número escolhido (que aqui se chama ‘short listed’). A seleção final vai ser feita em fins de julho. Não temos dinheiro para sua passagem. Se for necessário, irei lá como seu representante.

A segunda carta inclusa diz respeito a outro parque. Pelo telefone, a sra. Alhandre me explicou que a área era na entrada do porto e que a agência dela se interessaria por uma obra de arte integrada, isto é, paisagismo, muros ornamentais e fontes. Enfim, como você está acostumado a fazer. Este trabalho me parece o mais importante para pegar e nós seríamos a firma principal. No entanto, o envolvimento com os outros projetos Oleta River e Bay Front Park ajudaria a estabelecer sua presença em Miami, como já a tem em Caracas” (19).

Jardins de Odette Monteiro, Correas, Petrópolis, hoje abandonados, paisagismo de Roberto Burle Marx e equipe
Foto Andres Otero [Acervo GMD]

Talvez Burle Marx adotasse a mesma postura de Machado de Assis que, em seus últimos meses de vida, cedeu à insistência de José Veríssimo, para estudar e dar a conhecer seu acervo postal, dizendo: “Não me parece que de tantas cartas que escrevi a amigos e estranhos se possa apurar nada de interessante, salvo as recordações pessoais que conservarem alguns... O tempo decorrido e a leitura que fizer da correspondência lhe mostrará que é melhor deixa-la esquecida e calada” (20). Mas essas reticências de nosso maior escritor oitocentista não se justificaram e tampouco dissuadiram o reconhecimento do enorme potencial das cartas no entendimento de sua obra e vida. Da mesma forma, os dedos de prosa da correspondência de Roberto Burle Marx começam a vir a luz para nos ajudar a rever a trajetória desse personagem central na história do paisagismo brasileiro e internacional do século 20.

Jardins de Odette Monteiro, Correas, Petrópolis, hoje abandonados, paisagismo de Roberto Burle Marx e equipe
Foto Andres Otero [Acervo GMD]

notas

NA – Nossos especiais agradecimentos a Haruyoshi Ono (em memória), Fátima Gomes e Isabela de Carvalho Ono, que permitiram o estudo do acervo epistolar de Burle Marx, durante a elaboração do projeto de pós-doutorado Folhas em movimento – cartas de Burle Marx, desenvolvido na FAU USP entre 2012 e 2016 e financiado pela Fapesp. E também registramos agradecimentos ao Centro de Documentação do Masp e IMS pelas autorizações para uso de imagens e documentos de seus acervos.

1
DOURADO, Guilherme Mazza. Modernidade verde. Jardins de Burle Marx. São Paulo, Senac São Paulo/ Edusp, 2009, p. 146, 152-153.

2
Carta de Claude Vicente a Roberto Burle Marx, 23/4/1956. Acervo Escritório Burle Marx & Cia.

3
Idem, ibidem.

4
Carta de Claude Vicente a Roberto Burle Marx, 14/5/1956. Acervo Escritório Burle Marx & Cia.

5
Carta de Claude Vicente a Roberto Burle Marx, 30/6/1956. Acervo Escritório Burle Marx & Cia.

6
LATORRACA, Giancarlo (Org.). Maneiras de expor. Arquitetura expositiva de Lina Bo Bardi. São Paulo, Museu da Casa Brasileira, 2014.

7
Carta de Pietro Maria Bardi a Roberto Burle Marx, 26/11/1949. Acervo do Masp.

8
Carta de Annemarie Henle Pope a Pietro Maria Bardi, 26/1/1953. Acervo do Masp.

9
Carta de Pietro Maria Bardi a Roberto Burle Marx, 3/2/1953. Acervo Escritório Burle Marx & Cia.

10
Carta de Pietro Maria Bardi a Roberto Burle Marx, 26/8/1963. Acervo Escritório Burle Marx & Cia.

11
Carta de Pietro Maria Bardi a Roberto Burle Marx, 8/3/1967. Acervo Escritório Burle Marx & Cia.

12
IRIGOYEN DE TOUCEDA, Adriana Mara. Da Califórnia a São Paulo. Referências norte-americanas na casa moderna paulista, 1945-1960. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2005, p. 141-152

13
Carta de Annemarie Pope a Roberto Burle Marx, 5/4/1953. Acervo Escritório Burle Marx & Cia.

14
Carta de Gómez Sicre a Roberto Burle Marx, 12/6/1953. Acervo Escritório Burle Marx & Cia.

15
Carta de Philip Johnson a Roberto Burle Marx, 29/4/1954. Acervo Escritório Burle Marx & Cia.

16
Carta de José Luis Sert a Roberto Burle Marx, 22/5/1954. Acervo Escritório Burle Marx & Cia.

17
Carta de Richard Neutra a Roberto Burle Marx, 26/2/1970. Acervo Escritório Burle Marx & Cia.

18
Carta de Luiz Emygdio de Mello Filho a Robert e Catherine Wilson, 26/5/1954. Acervo Escritório Burle Marx & Cia.

19
Carta de Conrad Hamerman a Roberto Burle Marx, 6/7/1981. Acervo Escritório Burle Marx & Cia. Itálicos do autor; sublinhado no original.

20
Apud ROUANET, Sérgio Paulo. Apresentação. In: ROUANET, Sérgio Paulo (Org.). Correspondência de Machado de Assis. tomo I. Rio de Janeiro, ABL, 2008, p. VII.

sobre o autor

Guilherme Mazza Dourado é arquiteto e historiador de paisagismo, com pós-doutorado na FAU-USP. Entre outros livros, é autor de Modernidade verde. Jardins de Burle Marx (Senac São Paulo /Edusp, 2009).

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