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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
Utilizando-se da Fenomenologia de Gaston Bachelard e do conceito de “dobra”, proposto por Gilles Deleuze, os autores investigam, no âmbito da Arquitetura, a porta, discutindo o seu conceito arquitetônica, simbólica e poeticamente.

english
Using the Phenomenology of Gaston Bachelard and the concept of "fold", proposed by Gilles Deleuze, the authors investigate, in the Architecture context, the door, discussing its architectural concept, symbolically and poetically.

español
En el marco de la arquitectura, la puerta, discutiendo su concepto arquitectónico, simbólico y poéticamente, utilizando la Fenomenología de Gastón Bachelard y el concepto de "doblez", propuesto por Gilles Deleuze.


how to quote

GAUDÊNCIO, Edmundo de Oliveira; GAUDENCIO, Mahayana Nava de Paiva; CARVALHO, Thâmara Talita Costa de. Cartografia afetiva da porta. Arquitextos, São Paulo, ano 19, n. 222.03, Vitruvius, nov. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/19.222/7183>.

Porta
Foto dos autores

Cantou Fernando Pessoa:

“Não basta abrir a janela para ver os campos e o rio. Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. Com filosofia não há árvores: há ideias apenas. Há só cada um de nós, como uma cave. Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora; e um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse. Que nunca é o que se vê quando se abre a janela” (1).

Se Fernando Pessoa entendia de janelas, quem entendia de portas, segundo Gaston Bachelard, era Pierre Albert-Birot:

“Quem virá bater à porta? Numa porta aberta se entra. Numa porta fechada um antro. O mundo bate do outro lado de minha porta” (2).

Cremos que bastariam estes versos para suscitar-nos o desejo de investigar estas coisas banais chamadas portas – que as janelas abriremos à discussão em um outro instante e em outro texto – e, com isso, este ensaio escrito nos moldes de uma bricolage de temas e de discursos e calcado na fenomenologia de Gaston Bachelard e na poética de Gilles Deleuze. Do primeiro extraímos o conceito de “topofilia”, amor aos espaços, sobretudo aqueles que são impregnados de afetos, como a casa de infância, investigada em Poética do espaço; do segundo, o conceito de “dobra”. Bem entendido, ser conduzido por Bachelard significa ler fenomenologicamente as coisas do mundo; ser deleuzeano significa ser antiacadêmico, na tentativa de pensar singularmente (3) – tal como fazemos ao pensar uma porta como dobra. Bem entendido, tomamos a metáfora da dobra como ponto de união entre opostos, constatando que em toda oposição há um ponto em que um oposto se dobra sobre o outro. Por exemplo: Alvorecer é dobra entre noite que termina e dia que começa; crepúsculo é dobra entre a noite que se inicia e o dia que finda. Presente é dobra entre o amanhã e o ontem. O agora é dobra entre o antes e o depois, assim como a penumbra é dobra entre claridade e escuridão e assim por diante.

Exposição

Experimente isto:

Vá à porta e atravesse-a – coisa que, após tal pedido, você já a fez, mentalmente, pelo menos.

Pois bem: O que você viu?

Você viu ou imaginou a travessia da porta; você imaginou ou você viu a paisagem, o cenário do outro lado da porta – mas não percebeu a porta. Ver é diferente de perceber. Ver é enxergar. Perceber é ver e dar um significado àquilo que se viu, dar um sentido (cognitivo) ao que foi sentido (sensorial e emocionalmente).

De fato, e em geral, não percebemos as coisas do mundo; no caso particular, não percebemos a porta – exatamente porque banalizada. Para percebê-las, necessário reencanta-las – e o reencantamento das coisas do mundo necessita da redescoberta, pela via afetiva, das coisas mundanas, como quem dissesse “sinto, logo existo”. Para enxerga-las, necessário restituir-lhe o encantamento como desejava Max Weber: se a ciência desencantou o mundo, a sabedoria pode encanta-lo novamente (4) – ou como queria Deleuze, relendo o conceito de “pequenas percepções”, proposto por Gottfried Wilhelm Leibniz.

Diz Deleuze, em uma longa, porém indispensável citação (5):

“Tomemos a percepção de um quadro. Distinguiremos nela três fases, que correspondem a três regimes do olhar: a) Uma percepção trivial (ou meramente cognitiva) das formas (uma paisagem, linhas, figuras geométricas). Fase de recognição, ou de apercepção, de uma estranheza que, no entanto, comporta sempre elementos familiares. b) A percepção de um outro espaço ou ‘lugar’, no qual o olhar descobre outros movimentos e outras relações entre as formas, entre as cores, outros espaços e luzes. Trata-se então da percepção não trivial de um nexo diferente que atravessa os elementos pictóricos. O olhar percebe, nesse momento, uma outra combinação ou composição do espaço, das cores e do tempo. Em um certo sentido, precisaríamos ir mais longe, pois o ‘espectador’ entra no quadro, ‘torna-se parte dele’. [...] c) Por fim, em uma terceira fase, o que muda é a percepção do conjunto das formas. [...] Nessa fase essas mesmas formas que parecem triviais ‘se animam’ com uma vida própria. O objeto deixa de ser ‘objetivamente’ percebido, através de suas silhuetas ou Abschattungen, porque cada percepção singular se oferece por inteiro ao olhar, sem aspectos obscuros ou dissimulados. (Trata-se) de um deslocamento do nível trivial para o nível perceptivo não trivial. Este terceiro nível de percepção, que poderíamos chamar de ‘estético’ ou ‘artístico’, comporta três características essenciais. Em primeiro lugar, trivial e não trivial coincidem nesse nível, mas deixam aberta essa diferença. [...] Em segundo lugar, a percepção trivial, ainda que esteja presente, deixa de ser pregnante. Ela passa para o último plano, enquanto as relações, que antes eram não visíveis, chegam ao primeiro plano. E, por fim, a percepção não se dá mais como simplesmente cognitiva ou unicamente sensorial. Trata-se agora de uma percepção de forças” (6).

Afirma Keller:

“O cotidiano é esta parte do nosso meio físico e social que nos é mais próxima. Logo, a menos visível, em princípio. Por si, ela não atrai a atenção, não se oferece ao olhar”. Por isso, necessário submeter o cotidiano a uma visão estética, graças à qual “o insignificante tornar-se-á gracioso aos olhos do artista, que revela seu lado poético oculto” (7).

É possível aplicar essas propostas à porta, a fim de despertar nossa estesia adormecida – e para isso, sendo necessário falar resumidamente em uma história, uma simbólica, uma poética, para além dos elementos arquitetônicos cabíveis numa porta.

Assim, partamos de uma pergunta trivial – que convoca atentarmos para a ideia de que nada é simples, tudo é complexo: O que é uma porta?

Antonio Houaiss e Mauro de Salles Villar conceituam:

“Porta: Abertura geralmente retangular, com o lado vertical mais comprido e a base ao nível do chão ou de um pavimento, que serve de entrada para um recinto; entrada, acesso para algum lugar; peça plana, de madeira, ou metal, vidro etc., com que se fecha essa abertura, e que geralmente fica presa por um dos lados à moldura que a rodeia, por dobradiças ou gonzos. [...] Etimologia: Do Latim, porta, portae (porta de cidade)” (8).

Sylvia Cavalcante, em texto cujo elogio faremos adiante, afirma o que é necessário não esquecermos: “É importante ressaltar que a porta não é somente um elemento material, uma estrutura espacial, mas também um conceito, uma noção que se aplica a múltiplas situações da vida cotidiana” (9). Considerando-se esses pressupostos, ao entrarmos em uma discussão sobre portas, que aspectos interessa investigar?

Primeiro, arquitetura da porta

Alizares, batentes, folha; verga e soleira. Na soleira, o umbral (10). Senhoras e senhores, apresentamos-lhe a porta.

Porta
Foto dos autores

Feita essa apresentação e seguindo o propósito do experimento supracitado, qual seja, atravessar uma porta, podemos fazer uso do pensamento de Maurício Puls, citando Bachelard:

“A porta (da casa) tem uma maçaneta: nós entramos nela, moramos nela. Não é simplesmente uma casa-construção, é uma casa-habitação. [...] Ela expressa uma função de abertura. Só um espírito lógico pode objetar que ela serve tanto para fechar quanto para abrir. No reino dos valores, a chave fecha mais que abre. A maçaneta abre mais do que fecha” (11).

Aline Fernandes afirma ainda:

“Elemento crítico na defesa de uma fortificação, demandava cuidados especiais dos seus arquitetos em todas as épocas. De maneira genérica, um castelo, forte ou fortaleza compreendia duas portas, rasgadas nos seus muros: o portão principal ou Porta de Armas, de maiores dimensões, e a chamada Porta da Traição, menor e, na medida do possível, dissimulada, em posição oposta e afastada, para qualquer eventualidade da guerra” (12).

Continua:

“As portas podem ser construídas de materiais diversos, embora a madeira (especialmente a compensada) seja o material mais popular. Outros materiais incluem o alumínio, o aço, o ferro, o plástico PVC e o vidro. A porta (na sua visão mais tradicional) é formada pelos seguintes elementos: Folha – normalmente uma chapa lisa (de madeira ou metal) responsável pela vedação da parede, ou não, quando a porta está ‘fechada’. Costuma ser confundida com a porta propriamente dita. Batente, Marco de Porta ou Alizar – são os perfis retangulares (de madeira, metal, ou outro material) que estão presos junto à abertura na parede e permitem a fixação da folha. Guarnição – um elemento responsável por esconder o rejunte entre a parede de alvenaria e a madeira do batente (em geral considerado grosseiro). Maçaneta – uma das peças responsáveis, junto com as dobradiças ou gonzos e o trinco (com ou sem fechadura), pelo movimento da porta e seu trancamento. Boneca – elemento construtivo vertical de dimensões reduzidas, para criar complemento arquitetônico ou afastar, por exemplo, uma porta ou janela de um canto. É também a saliência de alvenaria onde é fixado o marco ou grade das portas e de janelas. O mesmo que espaleta. Caixilho – Qualquer armação, geralmente de metal, como alumínio, madeira ou PVC, com um rebaixamento a todo o comprimento do seu perímetro, no qual se encaixam placas, geralmente de vidro ou outros tipos de materiais translúcidos, como no caso de janelas, vitrais, em algumas portas, etc. Para esse efeito utilizam-se massas apropriadas para segurar as placas ao conjunto de caixilhos ou caixilharia. Marco Americano – estrutura de madeira, metálica ou PVC, fixada nas paredes externas para receber as dobradiças e parte da fechadura, estando posicionada apenas no alinhamento voltado para o interior do vão da janela ou porta. Marco Aduela – parte fixa das portas ou janelas que guarnece o vão e recebe as dobradiças, é considerado de dimensões mais esbeltas como para divisórias, composto por duas ombreiras e uma padieira. Nos marcos se articulam as folhas das esquadrias” (13).

No Brasil, há regionalismos empregados na construção civil evidenciando que cada região do Brasil tem nomes específicos para nomear as portas e seus componentes.

Segundo, a porta na arquitetura

Não existe “a” porta. Existem portas.

De acordo com seu desenho, as portas podem ser classificadas como as seguintes: Porta de três folhas; Porta de correr; Porta-balcão; Porta-deslizante; Porta de croqui; Porta pivotante; Porta sanfonada; Porta camarão; Porta veneziana; Porta giratória; Porta pendular. De acordo com sua forma construtiva as portas podem ser: Porta Sarrafeada; Porta Maciça; Porta Semi-Sólida; Porta Colméia; Porta Sólida.

De acordo com os padrões de acabamento, as portas podem ter suas superfícies: Revestidas com lâminas de madeira; Com impressão (como nos móveis) um bom exemplo são as portas famossul; Com acabamento nas cores, branco, mogno, tauari, curupixá ou imbuia; Com pintura fosca, laqueada, patinada (14).

Porta
Foto dos autores

Terceiro, a simbólica da porta

Para Roberto DaMatta, enquanto esferas de ações sociais, a casa se opõe à rua – entre as duas, sublinhamos, a ocorrência da porta, a qual dá continuidade a ambos os espaços, o dentro e o fora (15).

Para Chevalier e Gheerbrant, a porta simboliza

“o local de passagem entre dois estados, entre dois mundos, entre o conhecido e o desconhecido, a luz e as trevas, o tesouro e a pobreza extrema. A porta se abre sobre um mistério. Mas ela tem um valor dinâmico, psicológico, pois não somente indica uma passagem, mas convida a atravessá-la. É o convite à viagem rumo a um além [...] Os romanos possuíam um deus próprio de travessia e de passagem: Juno. [...] A porta fechada indica frequentemente segredo oculto, mas também proibição ou inutilidade; a porta aberta representa um convite para sua travessia ou significa um segredo revelado” (16).

Sobre a simbólica da porta, diz Juan Eduardo Cirlot: “Umbral, trânsito”. Na antiga Escandinávia, ele conta, os exilados levavam as portas de sua casa; elas eram lançadas ao rio; onde abordassem, no lugar em que encalhassem, ali fundavam sua nova casa. “Assim foi fundada Reykjavic em 874” (17).

Porta
Foto dos autores

Quarto, a fenomenologia da porta

Dissemos, linhas atrás, que entre o espaço do fora e o espaço do dentro localiza-se a porta. É ela, a porta da rua, que delimita, em grande medida, o público e o privado; é ela, a porta da alcova e/ou do banheiro, que recorta, no espaço privado, o espaço íntimo.

Colocada entre o estar-fora e o estar-dentro, toda porta nos diz de sua dupla serventia: permitir entrar e deixar sair. Apenas por convenção é que existem portas obrigatórias de entrada e obrigatórias portas de saída, fechadas ou abertas – que o problema não é a existência ou não de portas: é estarem elas abertas ou fechadas, aferrolhadas ou escancaradas. Em todo caso, diz o ditado, quando Deus nos fecha uma porta, Ele nos abre uma janela. Janelas e portas que nada mais são que fendas em paredes pondo em contato o dentro com o fora, o fora com o de dentro, dobra entre o lado de cá, o lado de lá e o que funciona como ponte, entre um e outro – isso o que é uma porta.

O mais importante texto fenomenológico que conhecemos sobre portas é “A porta e suas múltiplas significações”, de Sylvia Cavalcante, cuja beleza funciona como portas de entrada para o necessário reencantamento das portas. No trabalho citado, a autora se propõe um exercício de fenomenologia, objetivando

“expor que a ideia de porta é, em si mesma, plena de significação; demonstrar que é possível conhecer aspectos de nossa vida social e psíquica através do estudo da relação que se estabelece com um elemento espacial; e enfim, contribuir para uma teoria dos micro espaços”, propondo a ideia de que “não existe meio físico que não seja também um meio social” (18).

Partindo da leitura do texto de Cavalcante (19), podemos inferir que uma porta, enquanto elemento material é rotineiramente banalizada, devido à frequência com a qual é utilizada, no entanto, uma porta, qualquer porta, ganha novos contornos quando pensada fenomenologicamente.

Pensar uma porta fenomenologicamente é transportar a ideia que se tem sobre isso, para além da materialidade, muitas vezes colocada por engenheiros e arquitetos. Desde sua primeira concepção, ainda no tempo das cavernas, mesmo sem deter a forma e a plástica atuais, a porta cumpriu seu papel essencial: limite entre o dentro e o fora, teceu a ideia entre o aberto e o fechado.

Entendendo que uma porta representa um limite ou uma barreira seja “mecânica, térmica, visual ou acústica” (20), necessário ampliar a compreensão acerca de uma porta e aceitar que esta “assume também funções topológicas de junção ou disjunção entre os espaços que se quer diferenciar ou fundir” (21). Ou seja, mais uma vez, necessitamos enxergar a porta enquanto matéria fenomenológica, e só assim seremos capazes de desvendar as questões subjetivas que uma porta enseja, o papel social, psicológico e político que surgem a partir do contato com uma porta.

“A abertura ou fechamento (de portas) propicia características específicas ao ambiente” (22). Uma porta aberta é um convite, a mesma porta fechada é uma restrição.

“A atmosfera criada por uma porta fechada é, em certa medida, antinômica àquela assegurada por uma porta aberta. Um mesmo cômodo mostra-se isolado, calmo, íntimo, tendo sua porta fechada e pode tornar-se dinâmico, estimulante e barulhento, quando sua porta está aberta. [...] A porta, portanto, oferece ao homem a possibilidade de não admitir passivamente a influência do ambiente: através dela, ele pode intervir em seu espaço criando uma variedade de climas e, ainda assim, conservar suas características fundamentais. Abrindo-se a porta, pode-se estabelecer conexões entre os espaços, criar perspectivas de interesses diversos, descortinar espaços vizinhos. Através da abertura, o olhar pode buscar outros mundos. Contrariamente, fechando-se a porta, a privacidade é favorecida: o homem pode voltar-se para si mesmo e desenvolver atividades privilegiadas” (23).

Sendo a porta um limiar entre ambientes, a mesma porta pode ser interpretada como limite entre relações sociais, já que não existe meio físico, sem que nele haja também meios sociais, ou seja, existem as minhas portas e as portas dos outros – “com os seus pensamentos, suas ações e suas possessões – espaços e objetos” (24). Logo e por isso, a porta assume uma conotação social, diversa da conotação puramente material. Atravessar uma porta é ainda uma demonstração clara do poder social de um individuo, já que atravessamos apenas as portas que nossas relações sociais ou hierárquicas permitem.

Uma porta pode ainda ser entendida como um abrigo, para isso, precisamos apenas aceitar que uma porta fechada se comporta como uma espécie de baú, já que, por trás dela, haverá sempre algo não revelado, dentro do espaço fechado – do abrigo que a porta guarda, aceitando-se que “uma porta esconde sempre alguma coisa atrás de si. [...]. Em Japonês, a palavra porta, guen-kan, significa controle do invisível, do desconhecido” (25). O desconhecido atrás da porta, sobretudo numa sociedade contemporânea, revela muitas vezes o individualismo, a solidão e o medo latente que uma sociedade industrializada proporciona (26).

São inúmeras as possibilidades de se pensar a porta fenomenologicamente, porém, em virtude dos limites do artigo, corroboramos, para findar a fenomenologia da porta, com o que Sylvia Cavalcante por fim coloca:

“A porta constitui a síntese harmoniosa de duas estruturas topológicas opostas: a abertura e o fechamento. [...] Suas funções se agrupam em duas séries distintas, cada uma favorecendo, grosso modo, um valor específico. As funções preenchidas pela porta fechada dão prioridade ao valor proteção; aquelas desempenhadas pela porta aberta privilegiam a comunicação. [...] Por sua própria natureza e para que possa cumprir seu destino, a porta deve estar aberta ou fechada. Certamente, estes dois estados acontecem em tempos e durações diferentes, mas um não deve jamais anular o outro. Estrutura compacta, ocupando um mínimo de espaço, a porta satisfaz comodamente três grandes necessidades da vida humana no espaço social: proteção, comunicação e passagem. Existe um outro meio que faça tanto com tão pouco? [...] De fato, toda a vida social se exprime através de portas. Os indivíduos e os grupos, tão bem quanto os objetos, estão distribuídos no espaço estruturado por portas que regulam as relações de maneira a manter a ordem social dentro de um certo equilíbrio. O tipo de porta, o local onde ela se encontra, a razão pela qual ela existe variam segundo as situações e a sociedade em análise, e a resposta a estas questões permitirá aprofundar seu estudo. Conhecendo as portas, conhecemos a sociedade” (27).

Quinto, a poética da porta: a porta como dobra

A porta não é apenas dobra entre o dentro e o fora – delimitados em seu umbral, este espaço ao pé da porta que ninguém sabe se já é dentro ou se ainda é lado de fora. Margem. Fronteira. Borda – e por isso, dobra. Uma porta é dobra entre partida e chegada, dobra entre caminho e caminhada – de ida ou de retorno. Nenhuma porta é toda porta. De porta em porta, cada porta é uma porta. Esta, talvez, a dialética das portas: a porta de entrada até parece a porta de saída, esquecidos que quem entra, em qualquer que seja o lugar por qualquer porta, nunca sai o mesmo pela mesma porta. Aliás, a porta de dentro às vezes sabemos onde fica – só não sabemos do silêncio de dentro da matéria das portas.

Porta
Foto dos autores

Comentários finais

A grande pergunta que toda porta nos propõe é esta: Atravessar o umbral da porta ou não atravessá-lo? Não atentamos para esta escolha, tantas e tantas vezes entramos e saímos por portas que sequer vemos. Toda porta nos convida a matutar pensando em Kant, tal como citado por Mário Sérgio Cortella: “Quero? Posso? Devo? Porque nem tudo que quero, posso; nem tudo que posso, devo; nem tudo que devo, quero” (28). À porta que me liga ao mundo enquanto dele me separa ou vice-versa, em estado de permanência, condição de chegada, contingência de partida ou situação de mudança, cabe perguntarmo-nos: Querer? Poder? Dever? Partir? Ficar? Voltar? Querer Partir. Querer Ficar. Querer Voltar. Poder Ficar. Poder Partir. Poder Voltar. Dever Ficar. Dever Partir. Dever voltar. Querer poder, querer dever, querendo querer – cruzar a porta ou não cruzá-la, eis a questão!

Posto isso, isto posto: Nossa crença é que doravante, sabendo tudo isso sobre portas, você jamais verá a porta como uma simples porta – e não é possível que você não escute isto (a não ser que você seja surdo como uma porta...!).

notas 1
PESSOA, Fernando. “Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor. Lisboa, Ática, 1946.

2
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Coleção Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1978.

3
DESCAMPS, Christian. As ideias filosóficas contemporâneas na França. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1991.

4
PREZOTTI, Nathalia Thami Chalub. “O conceito de desencantamento do mundo, em Max Weber, e a visão de reencantamento dom mundo em dois de seus maiores intérpretes: Antonio Flávio Pierucci e Wolfgang Schluchter.” Niterói, PPGSD UFF, 2015 <https://pt.scribd.com/doc/257982140/O-Reencantamento-Do-Mundo-Na-Visao-de-Max-Weber>.

5
A longa extensão das citações se justifica pelo desejo de trazer a este texto não frases, apenas, mas as unidades argumentativas mediante as quais um autor expressa seu pensamento.

6
DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas, Papirus, 1991. Em itálico, no original.

7
KELLER, J.P. “A percepção estética do cotidiano”. In Diógenes. No. 8 jan.-jun. 1985. Brasília, Ed. Universidade de Brasília. (pp. 33-34)

8
HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva, 2001, p. 2265.

9
CAVALCANTE, Sylvia. A porta e suas múltiplas significações. In Estud. psicol., nº 2, vol. 8, Natal, mai./ago. 2003 <http://dx.doi.org/10.1590/S1413-294X2003000200010>.

10
FERNANDES, Aline. Desenho de Arquitetura – Planta baixa <http://www.ceap.br/material/MAT14032013210601.pdf>.

11
PULS, Maurício. Arquitetura e Filosofia. São Paulo, Annablume, 2006, p. 558.

12
FERNANDES, Aline. Op. cit.

13
Portal 44 arquitetura. Você sabe quais são os termos arquitetônicos mais utilizados? Matão, 29 abr. 2015 <http://44arquitetura.com.br/2015/04/os-termos-arquitetonicos-mais-utilizados/>.

14
Idem, ibidem.

15
DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e a morte no Brasil. 5ªedição. Rio de Janeiro, Rocco, 1997.

16
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 12ª edição. Rio de Janeiro, José Olympio, 1998.

17
CIRLOT, Juan Eduardo. Diccionario de símbolos. Barcelona, Editorial Labor, 1985, p. 376.

18
Todas as citações referentes à obra de Sylvia Cavalcante foram extraídas de CAVALCANTE, Sylvia. A porta e suas múltiplas significações. In Estud. psicol., nº 2, vol. 8, Natal, mai./ago. 2003 <http://dx.doi.org/10.1590/S1413-294X2003000200010>.

19
Idem, ibidem.

20
Idem, ibidem, p. 282.

21
Idem, ibidem, p. 282.

22
Idem, ibidem, p. 282.

23
Idem, ibidem, p. 282.

24
Idem, ibidem, p. 283.

25
Idem, ibidem, p. 285.

26
Idem, ibidem.

27
Idem, ibidem, p. 287.

28
CORTELLA, Mário Sérgio. Qual é a tua obra? – Inquietações propositivas sobre gestão, liderança e ética. Petrópolis, Vozes, 2007.

sobre os autores

Edmundo de Oliveira Gaudêncio é médico psiquiatra pela UFPB (1979). Mestre (1988) e doutor (2008) em Sociologia pela UFPB. Professor associado da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG – PB). Publicou diversos artigos na área de Sociologia e Psicologia.

Mahayana Nava Paiva Gaudêncio é arquiteta pela Facisa (2010). Mestranda em Arquitetura e Urbanismo pelo Mackenzie. Principal obra publicada: GAUDÊNCIO, Mahayana; GAUDÊNCIO, Edmundo. “Casa, uma casa, minha casa: cartografia afetiva do morar”. In SILVEIRA, Maria de Fátima de Araújo; SANTOS JÚNIOR, Hudson Pires de O. Residências terapêuticas: pesquisa e prática nos processos de desinstitucionalização. Campina Grande, EDUEPB, 2011.

Thâmara Talita Costa de Carvalho é arquiteta pelo Instituto Camilo Filho – ICF (2012). Pós-graduada pela Fundação Armado Álvares Penteado (2016). Mestranda em Arquitetura e Urbanismo pelo Mackenzie. Principal obra publicada: SILVEIRA, Ana Lucia R. C.; MELO, Jaisse Craveiro, CARVALHO, Thâmara Talita C. Análise da Adequação Bioclimática de Edifícios Modernos em Teresina-PI.  In 8º Seminário Docomomo Brasil: cidade moderna e contemporânea: Síntese e paradoxo das artes. São Paulo, Nelac IAU USP, 2009.

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