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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Neste artigo, José Roberto Fernandes Castilho chama a atenção para a nova realidade do regime das vias públicas e privadas, discutindo legislação urbanística e o direito à cidade.

english
In this article, José Roberto Fernandes Castilho draws attention to the new reality of the regime of public and private roads, discussing urban legislation and the right to the city.

español
En este artículo, José Roberto Fernandes Castilho llama la atención sobre la nueva realidad del régimen de carreteras públicas y privadas, discutiendo la legislación urbana y el derecho a la ciudad.


how to quote

CASTILHO, José Roberto Fernandes. Vias públicas e vias privadas. As vias e os novos arranjos territoriais urbanos. Arquitextos, São Paulo, ano 20, n. 235.06, Vitruvius, dez. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/20.235/7593>.

“Perdoa-me, avenida da elegância e do espírito fluminense, não passas de viela atarracada e sórdida”.
Coelho Neto, A Capital Federal (1893), sobre a rua do Ouvidor 

A institucionalização das novas figuras urbanísticas do condomínio de lotes e do loteamento de acesso controlado, entre nós, pela Lei nº 13.465/17, colocou na ordem do dia do urbanismo (e do Direito Urbanístico, sua face jurídica) o tema das vias privadas ou privatizadas. Isto porque, antes de 2017, o conceito de lote apresentava sempre a necessidade de uma divisa com a via pública chamada de testada. Desde a introdução daquela nova forma de condomínio no Código Civil, em 2017, não é mais assim: se o lote deve ter, necessariamente, acesso à via, esta poderá ser pública, no modelo do loteamento, ou privada, no modelo do condomínio – que retoma a ideia básica da vila ou das antigas vilas operárias, muito utilizadas como habitação social no começo do século 20. De outro lado, o loteamento de acesso controlado mudou a natureza das vias dos antigos loteamentos fechados: de vias públicas de uso privado, elas se tornaram vias públicas agora de uso público, porém controlado por ente privado.

Portanto, é necessário estudar-se o tema, que é antigo na doutrina e na legislação urbanística e que, passadas algumas décadas, ressurge agora no Brasil. Se a summa divisio das vias urbanas classifica-as em públicas e privadas (conforme a propriedade do solo onde se encontram), devemos, além disso, verificar que, de acordo com a utilização restrita ou geral, há vias públicas de uso público (o caso mais comum), vias públicas de uso privado e, de outro lado, vias privadas de uso público e vias privadas de uso privado. A classificação apontada leva em conta, como dito, o domínio do solo; outras consideram critérios distintos como o desenho urbano (vias retas e curvas), o trânsito – aspecto dinâmico do transporte – e daí vias de trânsito rápido e vias locais, destinadas apenas ao acesso local ou a áreas restritas etc.

Analisaremos cada uma daquelas espécies não sem antes registrar, com base em Pedro Escribano Collado – em célebre monografia – que “existe uma opinião muito generalizada a respeito do necessário caráter público da rede viária existente no interior das cidades” (1). Ou seja, a opinião generalizada diz que seria impossível a existência de vias privadas por serem, todas elas, uma “máquina de circular” (2) que enseja um direito geral, direito de todos, indistintamente (3).

O direito geral à via seria uma expressão da liberdade pública fundamental da pessoa física de circular, de deslocar-se na cidade, sem qualquer restrição ou necessidade de identificação. Neste sentido, autores brasileiros ora negavam a existência de “arruamento privado”, como Hely Lopes Meirelles (4), ou o viam como “problema”, como José Afonso da Silva (5). Porém, apesar disso, não se pode fugir da constatação atual da existência, no sistema viário, de vias privadas ou de uso privatizado com autorização legal, como veremos em seguida: será, sem dúvida, a realidade decorrente do fechamento das vias, o que tem sido admitido pelo poder local, como ocorre em São Paulo (6).

Na perspectiva histórica, as vias privadas eram aceitas tranquilamente no passado pré-moderno quando a questão da segurança e da sensação de segurança não era premente e circulação talvez não fosse ainda uma chave do urbanismo.

Assim, o Ato nº 671/1914, do Município de São Paulo, estabelecia em dispositivo único: “São consideradas públicas para todos os efeitos municipais, além das que já o foram por lei da Câmara ou por ato da Prefeitura, todas as ruas, avenidas e praças constantes da planta da cidade de S. Paulo, levantada pelos engenheiros F. Costa e A. Cococi, em 1913, exceto: 1º) as ruas que dão acesso às habitações coletivas; 2º) as que, apenas projetadas, estão nessa planta ponteadas”. A norma articula, pois, comando normativo e representação cartográfica e faz uma classificação importante.

O mapa referido é a “Planta Guia da cidade de São Paulo”, organizada pelo engenheiro civil Alezandre Cococi e Luiz Fructuoso Costa numa edição de propriedade da Companhia Lith. Hartmann-Reichenbach. “Ponteado” é o mesmo que “pontilhado”, como se verifica, na planta, com as vias transversais que cruzam a avenida Paulista – inaugurada em 1891 e calçada em 1909 –, ainda inseridas no domínio privado. Portanto, não eram consideradas públicas, mesmo que, eventualmente, já utilizadas pelo tráfego em 1913. As habitações coletivas indicadas na norma serão, por certo, as chamadas vilas ou vilas operárias (ligadas a empresas, construídas por elas) ou vilas particulares (conjunto de casas geminadas de aluguel, de propriedade da elite paulistana, que podiam ocupar extensa área) (7), todas ditas vilas residenciais.

Para dar um exemplo concreto de rua privada, em habitações coletivas, pode-se lembrar da famosa Vila Economizadora, construída entre 1908 e 1910, em São Paulo, no bairro da Luz. Neste caso, como escreve Nabil Bonduki, o projeto da vila privada incluía 147 casas de vários tipos e 20 armazéns. “Para o máximo aproveitamento do terreno, foram implantadas ruas no interior de uma pequena gleba circundada por obstáculos urbanos, como a Estrada de Ferro Central do Brasil e o rio Tamanduateí” (8). Estas ruas, claro, eram privadas e o trânsito ficava restrito aos locatários moradores.

Parte da “Planta guia da Cidade de São Paulo”, de 1913
Imagem divulgação

As “ruas ponteadas” na região da avenida Paulista com o Belvedere em construção
Imagem divulgação

Vias públicas de uso público

Estas serão certamente as mais comuns, aquilo que, de modo geral, se chama e se entende por rua. Assim o faz, por exemplo, o próprio Código Civil de 2002, repetindo exatamente o que dizia o Código revogado, de 1916. No art. 99/I, o atual Código exemplifica os bens públicos de uso comum do povo tais como “rios, mares, estradas, ruas e praças”. Mesmo a via urbana sendo pedagiada – tal como existe em diversas cidades do mundo e é previsto pela lei de mobilidade (Lei nº 12.587/12, art. 23/I e III), isto não retira seu caráter de bem de uso comum do povo porquanto o art. 103 do mesmo Código Civil diz que “o uso comum dos bens públicos pode ser gratuito ou retribuído”. Portanto, não se pode dizer que o uso dos bens públicos de uso comum do povo seja sempre gratuito.

A rua é o espaço público por excelência exatamente porque sua utilização não depende de permissão de quem quer que seja. Rua é, pois, o nome genérico (do latim “ruga”) do espaço coletivo de circulação dentro da cidade de propriedade municipal. Vai de alinhamento a alinhamento, ou seja, envolve pista de rolamento de veículos e passeios laterais – ou calçadas – para pedestres, além do eventual canteiro central. O termo rua determinou, por derivação, o surgimento de outros vários como o verbo “arruar”, que indica arruamento, forma de parcelamento do solo que constitui quadras, e “arruaça” barulho e desordem que vem da rua.

Porém, na forma do Código de Trânsito Brasileiro de 1997 (CTB – Lei nº 9.503/97), o nome genérico correto do espaço destinado à circulação é via, que pode ser urbana ou rural, na classificação do art. 60. No glossário anexo à lei consta a seguinte definição de via: “superfície por onde transitam veículos, pessoas e animais, compreendendo a pista, a calçada, o acostamento, ilha e canteiro central”; e também a de via urbana: “ruas, avenidas, vielas, ou caminhos e similares abertos à circulação pública, situados na área urbana, caracterizados principalmente por possuírem imóveis edificados ao longo de sua extensão”.

Se a rua será, por vezes, identificada com a via local e a avenida (do francês “avenue”, termo que ganhou projeção a partir do sistema de avenidas de Haussmann) com a via preferencial (no Código de Trânsito revogado, de 1966) ou arterial (no Código vigente), isto é um equívoco completo porque o que determina a classificação da via é sua função no sistema e não seu nome ou designação – ou mesmo sua estrutura, ou seja, se larga ou estreita. Como escreve Françoise Choay, no dicionário que organizou, “no continente americano, as avenidas, por oposição às ruas, são simplesmente as vias maiores de uma forma de loteamento regular e ortogonal” (9). Mesmo sendo vias maiores, isto não faz delas, necessariamente, vias arteriais. Como se sabe, há diversas vias de estrutura local (a espécie mais estreita) que desempenham a função de via arterial no sistema viário municipal, o que é causa diversas distorções.

Vias públicas de uso privado

Existem várias hipóteses de vias públicas com uso privado. No mais das vezes elas representam modalidade do gênero “privatização do espaço público”, processo que foge da legalidade e que ocorre com freqüência sobretudo em relação às calçadas ou passeios marginais às pistas de rolamento: proprietários lindeiros instalam nelas rampas íngremes para permitir o acesso do veículo ao lote e, também para isso, rebaixam a guia além do percentual permitido, os bares colocam mesas e cadeiras, etc. Se tal “privatização” pode ser considerada ilegal ou irregular, o fato é que há hipóteses dela ocorrer com apoio em certa interpretação da legalidade urbanística (que pode ser contestada).

Atualmente, o melhor exemplo de vias públicas de uso privado serão as vias dos ditos “loteamentos fechados” (10). Chocando-se frontalmente com aquilo que determina o art. 4º/I e 22 da Lei nº 6766/79, elas eram objeto de intensa polêmica porque a associação dos condôminos recebia autorização ou permissão (figuras muito próximas) de uso privado de bem público – concedida pela Prefeitura – o que não se encaixa em nenhuma hipótese desse uso especial porque a via pública é, por definição, bem de uso comum do povo. Portanto, insuscetível de uso privado ou, melhor, privativo, embora o modelo seja largamente disseminado pelo Brasil basicamente em nome da segurança.

Assim, deve-se lembrar que a mesma lei de 2017 instituiu os loteamentos de acesso controlado, modificando a lei de parcelamento. Assim, de 2017 em diante, mesmo os loteamentos considerados “fechados” devem permitir o acesso de qualquer pessoa pelas vias internas, que são públicas, e portanto o ingresso nos loteamentos tornou-se permitido (o art. 2º/§8º da Lei nº 6766/79 diz que é “vedado o impedimento de acesso”). Houve uma clara evolução nisso porque as vias desses empreendimentos, de públicas de uso privado, passaram a ser públicas de uso público devendo, pois, estar articulada dentro do sistema.

Como é certo, haverá, igualmente, intensa polêmica em relação aos “loteamentos fechados” aprovados antes de 2017 e que já têm a autorização ou permissão de uso como ato jurídico perfeito e acabado. Nesses casos, pensam alguns que as vias serão bens públicos de uso privado o que deriva o modelo urbanístico implantado e até então aceito. Porém, parece claro e fora de dúvida que, a partir de 2017, as vias dos loteamentos de acesso controlado serão vias públicas de uso público porque todos, indistintamente, terão acesso a elas, apenas mediante controle e fiscalização do ingresso de pedestres ou motoristas de veículos, não residentes, a cargo da associação de moradores. Mas esta atividade de identificação deve ser efetivada com base em regulamentação do ente local e não significa, em absoluto, pedido de permissão (o que não se coloca em face de bem de uso comum): a própria lei já garantiu o acesso de todos a elas.

De outro lado (mas no mesmo registro), é evidente que se tornam, semanalmente, vias públicas de uso restrito aquelas destinadas às feiras livres comuns: o fluxo na via fica limitado (pedestres) ou impedido (todos os veículos) porque ela se transforma em espaço de permanência. Em São Paulo, o Decreto nº 48.172/07 dispõe que as feiras devem “ser localizadas em vias públicas que não ocasionem prejuízo ao tráfego de veículos da região, evitando-se ruas arborizadas, com grande número de postes e edifícios e com declives acentuados”. Porém, os proprietários lindeiros a terão de suportar defronte seus lotes, devendo-se respeitar a distância mínima de 60cm “entre bancas e residências” (art. 8º/V).

Não é por outra razão que o Tribunal de Justiça de São Paulo tem reconhecido a constitucionalidade de leis municipais que estabelecem desconto no valor do IPTU para lotes lindeiros ao trecho específico da via em que elas se realizam. No caso de São José do Rio Preto, disse o Tribunal: “não se constata violação ao princípio da impessoalidade, da proporcionalidade e razoabilidade por se conceder desconto de IPTU aos imóveis localizados em ruas onde ocorrem as feiras-livres, que ficam prejudicados nestes dias. Dessa forma, a lei tratou de conciliar interesses privados afetados pelas feiras-livres com o interesse público no tocante à sua realização” (ADI 2224194-27.2015.8.26.0000, j. em 2016. Há diversos casos idênticos como o referente a lei de Presidente Prudente ADI 2273848-80.2015.8.26.0000).

Por causa da feira – cujas origens multisseculares vinculam-se ao próprio estabelecimento da cidade, como mostra Max Weber –, a via deixa de ter função principal de circulação e passa a ter, ainda que por breve período, função comercial, o que, inegavelmente, impacta sua natureza de bem coletivo destinado ao trânsito de veículos (classificados no art. 96 do CTB) e pedestres.

Vias privadas de uso público

Esta espécie abrange as situações em que imóveis privados servem ao uso público ou comum. Para além das vias públicas, há os espaços viários privados, existentes em glebas do domínio particular, o que, segundo Pedro Escribano Collado, poderia gerar pelo uso prolongado a “usucapião pelo uso público de via urbana” (11). A coletividade seria o sujeito ativo da prescrição aquisitiva quando o uso público da via, de qualquer tipo, exercitar-se “uti cives pelos conjunto dos cidadãos”. Em outras palavras, o uso público prolongado de espaço viário privado garante a consolidação da propriedade pública ainda que não seja o Poder Público, por seus agentes, a exercer a posse sobre o bem privado.

No passado, tal situação não se mostrava incomum tal como se mostra hoje: eram as vias não oficiais que, depois de abertas e recebendo o tráfego, eram recebidas pela Municipalidade e tornavam-se oficiais e declaradas abertas ao trânsito público (12). Por exemplo, o Código de Obras paulistano de 1929 (Lei nº 3427, dito Código Arthur Saboya), estabelecia em capítulo próprio o regime das vias privadas em dispositivo que dizia: “Os proprietários das vias privadas de comunicação abertas sem licença da Prefeitura, ficam sujeitos às seguintes medidas” que eram limpeza, sarjeteamento, construção de passeios “necessários ao resguardo dos pedestres contra as carruagens” etc. (art. 552). Lembre-se que foi este mesmo Código que determinou, no art. 506, a proibição da abertura de novas vias de comunicação sem prévia licença da Prefeitura, o que era frequente em razão da “febre de loteamentos”. Visitando São Paulo em 1905, o escritor brasileiro radicado em Portugal Manoel de Souza Pinto diz que era parecia “feita há pouco, arruada de fresco” (13).

Entretanto, podemos classificar as vias privadas em dois grupos, tal como feito em relação às vias públicas: as vias de domínio privado e de uso público e as vias de domínio privado e de uso privado. Quanto às primeiras, elas existem sobretudo em razão das servidões de passagem, que dão acesso ao empreendimento. E aqui temos que tratar do recente condomínio de lotes que expressamente as previu.

Esta nova forma de arranjo urbanístico, em condomínio deitado, foi disciplinada pelo Código Civil, com a modificação sofrida por ele em 2017 (art. 1.358/A). A mesma lei mudou também a lei de parcelamento, cujo art. art. 4º/§ 4º da Lei 6766/79 passou a dispor: “No caso de lotes integrantes de condomínio de lotes, poderão ser instituídas limitações administrativas e direitos reais sobre coisa alheia em benefício do poder público, da população em geral e da proteção da paisagem urbana, tais como servidões de passagem, usufrutos e restrições à construção de muros”.

A servidão de passagem, ou melhor, esta servidão indicada de modo exemplificativo no dispositivo transcrito (14) – que nem precisa ser reproduzida na lei local regulamentadora do condomínio de lotes por já estar na lei nacional –, é uma espécie de servidão urbanística porque instituída em benefício da ordenação urbana. José Afonso da Silva entende que a servidão urbanística “consiste na limitação à exclusividade do domínio sobre um imóvel em benefício de um bem do domínio público, no interesse da ordenação dos espaços habitáveis” (15). E Hely Lopes Meirelles explica que ela “conserva a propriedade do particular, mas lhe impõe o ônus de suportar um uso público” (16). Um caso típico de servidão urbanística informal ligada ao sistema viário são as placas de identificação dos nomes das ruas que o Poder Público afixa em paredes e muros particulares e cujos proprietários não podem a isso se opor.

No caso do condomínio de lotes como no condomínio de casas, mediante acordo (ou, na falta dele, por lei específica), a via de acesso ao condomínio (como ocorre, com alguma frequência, no desmembramento), a vias do contorno, as vias que cruzam o empreendimento, impedindo o bloqueio do tecido urbano, ou mesmo as passagens de pedestres – aquilo que o Plano Diretor paulistano de 2014 chama de “destinação de áreas de fruição pública a atividades não residenciais de âmbito local, com acesso para a via pública” – não precisarão expropriadas pelo Município e nem doadas, como exige o modelo do loteamento, até porque o acesso não faz parte do loteamento (17). Basta que, mediante acordo (precedido das formalidades legais), se faça a instituição da servidão, sendo que o imóvel serviente será a gleba do condomínio e o bem dominante será a ordenação do sistema viário urbano. Constitui-se, pois, uma servidão de uso público em favor da Municipalidade, podendo não ter esta que pagar indenização, e que será registrada no Serviço Registral Imobiliário.

Cumpre ressaltar que se a servidão estabelecer-se por acordo entre as partes vislumbra-se uma perspectiva do urbanismo concertado que é fruto de ajustes e entendimentos do que seja a melhor solução para a inserção harmônica do empreendimento na cidade. O condomínio de lotes não poderá bloquear a cidade, seccioná-la, causar desarmonia. Neste caso, as vias referidas serão privadas porém de uso público e sua manutenção pode ficar a cargo do próprio condomínio, retirando-se o encargo do ente público (o que acontece com frequência nas galerias ou passagens de pedestres, de larga tradição a partir, sobretudo, da Paris de Haussmann: são as “passages couverts”, que chegam a 370m de comprimento, caso da Passage du Caire, a mais longa da cidade). Não é o caso, porém, das vias internas do condomínio que serão do domínio privado e de uso privado.

Vias privadas de uso privado

Por fim, há as vias privadas de uso privado que são, de fato, a morte da rua como espaço público de uso geral, onde se garante a todos o direito de ir e vir. Elas foram instituídas com o condomínio de lotes e que já existem, por exemplo, no caso das vias internas de um clube de campo ou de lazer ou, ainda, nas tradicionais “vilas residenciais”, definidas pela recente legislação paulistana como “conjunto de lotes destinados exclusivamente à habitação, cujo acesso se dá por meio de única via de circulação de veículos, a qual deve articular-se em único ponto com uma única via oficial de circulação existente” (art. 2º/I da Lei nº 16.439/16). A via de circulação será, por certo, privada.

Em 2019, o novo Código de Obras e Edificações Simplificado do Rio de Janeiro (Lei Complementar nº 198/19) instituiu aquilo que chama de “grupamento tipo vila”, formada por, no máximo, 36 unidades residenciais justapostas ou sobrepostas, dotadas de acessos independentes através de área comum descoberta. A lei estipula, neste caso, a largura mínima da via privada de circulação interna do grupamento (6m, quando permitido tráfego de veículos, ou com dimensão menor quando for destinada apenas a pedestres – cf. 2º/§ 4º). Determina ainda que “a conservação de uma rua de vila, sua entrada e serviços comuns constituem obrigação dos seus proprietários condôminos” (art. 2º/§ 5º).

A partir da Lei nº 13.465/17, porém, foi inserido no Código Civil o art. 1.358-A dispondo que pode haver, em glebas urbanizadas, “partes designadas de lotes que são de propriedade exclusiva e partes que são de propriedade comum dos condôminos”. É uma nova modalidade de propriedade condominial que amplia, atualiza e transforma a ideia da “vila” porque serão muitas as vias internas, seja de acesso ao condomínio, seja de acesso às unidades. Seu modelo original é o condomínio de casas térreas ou assobradadas (tradução jurídica atual das conhecidas “vilas”), previsto na Lei nº 4.591/64 (lei do condomínio em edificações, art. 8º) (18). Porém, a proposta parece que será outra: será a de criar, à semelhança dos loteamentos de acesso controlado, espaços urbanos totalmente privados, embora com áreas comuns e áreas privativas.

A diferença em relação ao parcelamento do solo é evidente porque o condomínio de lotes seguirá o modelo do condomínio edilício, como expressamente dispõe o § 2º daquele dispositivo da lei civil, não havendo que se falar em áreas públicas, ou seja, pertencentes ao Poder Público. Nada será público ali. Em edifícios, há áreas privativas e áreas comuns (entrada ou, como diz a lei, “acesso ao logradouro público”, corredores, telhado etc.), mas comuns aos condôminos, que terão sobre elas apenas direito de uso. Do mesmo modo, e seguindo o mesmo modelo, no condomínio de lotes não haverá a constituição de espaços públicos a serem doados como ocorre, necessariamente, no parcelamento do solo.

Mas aquele mesmo § 2º diz que deve ser respeitada a legislação urbanística. Isto significa, a meu juízo, que as vias internas do condomínio de lotes, embora privadas, devem ter a mesma estrutura das vias do sistema viário urbano. Não há que se falar em vias de menor largura, por exemplo, pelo fato de serem privadas: o Poder Público há de refrear a tendência do empreendedor de maximizar o seu lucro aumentando a quantidade de unidades imobiliárias postas no mercado. Além disso, os condomínios terão de pagar IPTU sobre a área destinada às vias privadas, o que poderia conduzir a uma diminuição delas.

Nos Municípios, integrada ou não à lei de parcelamento do solo, sempre há normas disciplinadoras da constituição e manutenção sistema viário – estabelecendo a estrutura das vias, declividade máxima longitudinal e transversal, componentes, a questão tormentosa da manutenção das calçadas etc. – e entendo que tal padrão aplica-se, por certo, tanto ao parcelamento do solo quanto ao condomínio de lotes, ainda que o espaço viário deste seja privado. Deve-se pensar na ordenação do sistema viário com uma abrangência maior para garantir a qualidade de vida de todos, inclusive dos moradores desses novos empreendimentos, que preferiram a “autossegregação” total.

De outro lado, cumpre questionar se, nessas vias privadas e de uso privado, caberá fiscalização da autoridade pública de trânsito. Pode-se pensar em aplicação do disposto, expressamente, no art. 2º/Parágrafo único do Código Brasileiro de Trânsito, segundo o qual “para efeito deste código, são consideradas vias terrestres as praias abertas à circulação pública, as vias internas pertences aos condomínios constituídos por unidades autônomas e as vias e áreas de estacionamento de estabelecimentos privados de uso coletivo” (com a redação de 2015). Estes últimos serão, por exemplo, os estacionamentos dos shoppings, elemento estrutural deles como centro de compras.

Veja-se aqui, claramente, que a lei pretendeu dizer outra coisa. Ela pretendeu dizer que as vias dos “loteamentos fechados” (vias públicas de uso privado) estavam inseridas no âmbito da fiscalização da autoridade de trânsito. Porém, o texto se refere aos “condomínios constituídos por unidades autônomas”, o que se aplica perfeitamente ao condomínio de lotes, é mesmo a sua melhor explicação. Portanto, na defesa da vida, da saúde e do meio ambiente (“polícia dos logradouros”), resulta que diretamente pelo texto legal a autoridade de trânsito tem o dever de fiscalizar os condutores, interpretação a que se pode chegar, também, por analogia.

Ao resolver antiga polêmica, a referida Lei paulistana nº 16.439/16, dispondo exatamente sobre a restrição à circulação em vilas, ruas sem saída e ruas sem impacto no trânsito local (19) estabelece que elas serão “passíveis de restrição à circulação nas hipóteses em que sirvam de acesso a imóveis residencial e de uso não residencial” (art. 3º), desde que a Prefeitura assim o autorize mediante diversas contrapartidas de natureza ambiental (plantio de árvores, reuso da água etc.). Logo em seguida a norma diz que “a restrição à circulação consistirá em fechamento do espaço correspondente ao leito carroçável e à calçada, o que poderá ser realizado por intermédio de portão, cancela ou equipamento similar” (art. 5º). No entanto, trata-se de situação precária porque a lei diz que se forem alteradas as condições viárias do entorno, a Prefeitura poderá retirar o fechamento a qualquer momento.

O fechamento, entretanto, não poderá impedir a visualização do interior da “vila, da rua sem saída ou da rua sem impacto no trânsito local”. Não será difícil concluir que, nestas hipóteses, as vias terão diferente classificação: no caso das “vilas”, sua única via de circulação interna é privada e de uso privado, e nos outros casos, elas serão públicas mas de uso privado concedido em caráter precário, ou seja, revogável a qualquer tempo. Assim, por exemplo, a Prefeitura autorizou, em 2018, o fechamento de via, com grades, no bairro de Pinheiros apenas no período noturno, por causa do barulho (20).

Conclusão

De tudo o que foi acima exposto, na dupla perspectiva do direito e da história, a primeira conclusão a que se chega é a de que parece necessário reconhecer a existência de vias privadas – ao lado das públicas –, que aparecem no espaço urbano em todas as hipóteses levantadas acima, que não são nada excepcionais ou extraordinárias. A distinção entre vias públicas/privadas será, dessa forma, importante para compreensão da ordenação do sistema de circulação.

Além disso, penso que se podem extrair algumas outras conclusões, a saber: (a) a distinção das vias entre públicas e privadas é procedente mas insuficiente para caracterizar a realidade delas na cidade. Deve-se acrescentar, tal como foi feito, a utilização delas, se pública ou privada, o que potencializa ou aprofunda a análise; (b) o condomínio de lotes e o loteamento de acesso controlado colocaram novas questões, ainda não devidamente investigadas, a respeito das vias de circulação nesses empreendimentos criados a partir de 2017; (c) a existência de vias privadas era quase desconhecida ou desconsiderada entre nós mesmo em razão das “vilas” onde elas existiam, é certo, mas eram de pouca extensão e, portanto, de pouca importância no sistema (tanto que podiam ser fechadas).

Mas, a partir daquela data, é preciso se reestudar o fenômeno porque as vias internas dos condomínios de lotes – de modo semelhante aos condomínios de casas – serão tanto privadas quanto ao seu domínio quanto de uso privado. Mas isto não quer dizer que possam ser “ínfimas e acanhadas” tal como o personagem sertanejo de Coelho Neto dizia da rua do Ouvidor, no Rio, em prejuízo da cidade e dos cidadãos. E cumpre ainda destacar que a disciplina do ente local a respeito desses novos arranjos territoriais é incipiente.

Mesmo a recente legislação paulistana sobre aproveitamento urbanístico do solo (uso, ocupação e parcelamento) está já ultrapassada ou desatualizada na medida em que não contempla as figuras que passaram a ser permitidas na lei de 2017 (refiro-me, em especial, ao art. 49 da Lei nº 16.402/16). E nem disciplinou ainda as vias privadas dos condomínios de lotes, empreendimentos que já nascem fechados desde a origem mesmo se protegida a paisagem (logo, a vista) que se logra dele a partir do espaço público, sendo interditado o trânsito de pedestres ou veículos estranhos aos condôminos. No Rio, igualmente, o Código de Obras de 2019 não cuidou dessa modalidade condominial ao regular o “grupamento tipo vila”, que é um arranjo tradicional de zonas residenciais com casas justapostas ou sobrepostas.

De fato, parece inconteste que a pedra de toque desses novos arranjos territoriais urbanos são os espaços viários – se públicos ou privados – e a função que exercem no sistema urbano. Isto porque eles não podem se converter em “quistos” isolados como acontecia no modelo do “loteamento fechado”, que ainda se concentravam em certas regiões da cidade (as mais valorizadas no mercado imobiliário), criando espaços onde a cidade perdia toda a vitalidade e a multiplicidade que a caracteriza.

Assim, o texto pretendeu apenas chamar a atenção para esta nova realidade do regime das vias, que está desafiando o estudo de urbanistas, tomando-se a expressão no sentido amplo: todos aqueles que pensam ou atuam no tema da ordenação do espaço urbano considerando o princípio básico da função social da cidade e a garantia do bem estar de seus habitantes, como estabelecido no art. 182 da Constituição Federal.

notas

1
COLLADO, Pedro Escribano. Las vias urbanas: concepto y régimen de uso. Madri, Montecorvo, 1973, p. 203.

2
Em referência a Le Corbusier.

3
Prefiro falar em “uso geral” a “uso comum”, como fazem os autores. Isto porque o uso comum pode se referir a todas as pessoas ou ser apenas o uso comum a um grupo restrito como são as áreas comuns dos condomínios edilícios (art. 1.331/§ 2º do Código Civil). Quando se usa o termo “comum”, deve-se perguntar: comum a quem?

4
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 15ª edição. São Paulo, RT, 1989.

5
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 3ª edição. São Paulo, Malheiros, 2000.

6
Lei nº 16.439, de 12 de maio de 2016. Dispõe sobre a restrição à circulação em vilas, ruas sem saída e ruas sem impacto no trânsito local. São Paulo, Câmara Municipal de São Paulo, 2016.

7
Grifo o termo “vila” entre aspas porque é termo plurívoco: de acordo com o Decreto-lei nº 311/38, as sedes dos distritos também são vilas.

8
BONDUK, Nabil. Os pioneiros da habitação social. Volume 1: Cem anos de política pública no Brasil. São Paulo, Unesp/Sesc, 2014, p. 26.

9
CHOAY, Françoise; MERLIN, Pierre (Orgs.). Dictionnaire de l’urbanisme et de l’aménagement. 3ª edição. Paris, PUF, 2000.

10
Nem todos os Municípios brasileiros admitiram o “loteamento fechado”, antes de 2017. É o caso do Município de Rio Claro (SP) que o proibiu expressamente na Lei nº 81/13 (art. 4º/§ 3º: “Não será permitida a implantação de loteamento fechado no Município de Rio Claro”). Mas, em 2017, institucionalizou o loteamento de acesso controlado (v. AI 2123230-21.2018.8.26.0000, j. em julho/18).

11
COLLADO, Pedro Escribano. Las vias urbanas: concepto y régimen de uso. Madri, Montecorvo, 1973, p. 120.

12
Os exemplos são muitos: vou referir apenas o Ato nº 1.373/1919, do Município de São Paulo, que diz em artigo único: “Fica aceita a rua que, nos terrenos de propriedade do dr. José Gonzaga Franco Filho, no bairro da Mooca, liga as ruas Pascoal Moreira e Pires de Campos, e declara-a aberta ao público, com a denominação de Marquez de Valença”. V. acima na “Planta Guia”, de 1913, as ruas “ponteadas”.

13
PINTO, Manoel de Souza. Terra moça – impressões brasileiras. Porto, Chardron, 1910.

14
Fiz a ressalva porque o Código Civil refere-se, expressamente à servidão de trânsito entre particulares, no art. 1358/§ 2º. No caso da servidão urbanística, objetiva-se sempre o benefício da ordem urbana. É, assim, o caso das passagens de pedestres nos pavimentos térreos dos prédios levantados sobre pilotis, incentivadas pelo Poder Público. São as chamadas galeria de pedestres que consistem em “servidão pública de passagem coberta ao nível do passeio, constituída por faixa formada a partir do alinhamento do lote com dimensões e modulação determinadas por Projeto Aprovado de Alinhamento ou Plano de Urbanização” (projeto de Código de Obras e Edificações do Rio de Janeiro, de 2013).

15
SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 390.

16
MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit, p. 525.

17
Deve-se destacar este ponto: como a via de acesso não faz parte do loteamento, ela não precisa ser necessariamente pública, como serão as vias internas do futuro empreendimento. Admite-se, então, a servidão como forma jurídica para enquadrar o tema.

18
O art. 8º/”d” desta lei diz que devem ser discriminadas no projeto “as áreas que se constituírem em passagem comum para as vias públicas ou para as unidades entre si”.

19
A lei define: “rua sem saída: rua oficial que se articula, em uma de suas extremidades, com via oficial e cujo traçado original não tem continuidade com a malha viária na outra extremidade”; e “rua sem impacto no trânsito local: via cujas extremidades tenham articulação com uma ou mais vias oficiais, desde que situadas dentro da mesma quadra fiscal” (art. 2º/II e III). As ruas sem saída, hoje, ou são impedidas pela legislação urbanística local ou são permitidas desde que seja aberto o “cul-de-sac”.

20
“Na guerra ao barulho, vizinhos miram parklets e até fecham rua em Pinheiros”, jornal OESP, 21.6.2019, p. A9. A rua chama-se Ministro Costa e Silva que fica cercada, todo dia, das 22 horas às 5 horas.

sobre o autor

José Roberto Fernandes Castilho é professor de direito urbanístico e de direito da arquitetura na Faculdade de Ciência e tecnologia da Unesp.

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