No dia 25 de outubro de 2006, foi montada uma sessão de cinema sob o Masp.

O filme se passava em 1942. O alemão Johann, que fugiu da guerra, se encontra com Ranulfo, sertanejo expulso de suas terras pela seca nordestina. Pelas cidades por onde passam, projetam em uma tela uma propaganda de aspirina. Ocasião em que muitos moradores assistem pela primeira vez na vida a uma sessão de cinema.

A italiana Lina Bo Bardi chegaria ao Brasil quatro anos depois, em 1946. "Chegada ao Rio de Janeiro, em outubro. [...] Deslumbramento pela simplicidade inteligente e capacidades pessoais. Deslumbramento por um país inimaginável, que não tinha classe média, mas somente duas grandes aristocracias: a das Terras, do Café, da Cana e... o povo" (2).

Em 2003, o ator Peter Ketnath, no papel de Johann, e João Miguel, no papel de Ranulfo, participam de filmagem na praça pública da pequena cidade de Picote, onde pela primeira vez os moradores tiveram contato com cinema (3).

Voltando ao filme. 1942. – Eu viajei, cheguei no Brasil. Aqui nada de guerra –, diz Johann. –Aqui no Brasil nem guerra chega –, responde Ranulfo.

Na Itália, Lina também vivia tempos de guerra. "Aqueles que deveriam ter sido anos de sol, de azul, de alegria, eu passei debaixo da terra correndo e descendo sob bombas e metralhadoras. O ‘amor’ para os ‘homens debaixo da terra’, chegou ao máximo em 1944, na ocupação nazi-fascista da Itália do norte. Os alemães (perfeitos urbanistas , de outro lado) lançaram o projeto de cidades subterrâneas (pensaram até a última hora em vencer a corrida da bomba atômica). Debaixo da terra os nazi-fascistas, os traidores da vida e da humanidade. Muito melhor enfrentar a sorte e a morte no terraço de um prédio olhando os ‘fogos’ dos holofotes e as metralhadores dos aviões. Um artigo que escrevi (artigo crítico de arquitetura-urbanismo) no editorial da revista Domus, mereceu atenção especial da Gestapo. Escapei por milagre... debaixo da terra" (4)

1957/1968. O Masp é construído. Lina Bo Bardi: "Uma premissa. Na projeção do Museu de Arte de São Paulo, na avenida Paulista, procurei uma arquitetura simples, uma arquitetura que pudesse comunicar de imediato aquilo que, no passado, se chamou de ‘monumental’, isto é, o sentido do ‘coletivo’, da Dignidade Cívica" (5).

Em 1994, na ocasião de outra Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Abbas Kiarostami passeia pela avenida Paulista, observando uma menina que caminhava em busca de comida nas lixeiras, e se detém em frente a uma vitrine de joalheria. "Quero olhar cada peça que ela olha ao mesmo tempo que ela, mas não consigo. Quero saber em que está pensando. O que ela gosta e o que desgosta na jóia. O fato é que ela está contemplando as jóias para contentar seu coração, e eu a contemplo para contentar o meu" (6).

Cinema, Aspirinas e Urubus foi transmitido em praça pública, sob a proteção de uma utopia de concreto aparente, feminina-européia-moderna-brasileira.

Deste evento foram feitas estas imagens que dialogam com o limite mesmo da fotografia: o fixar do movimento. Fotografia que fixa em uma imagem a própria imagem em movimento: cinema.

Nestas fotografias, o cinema impõe sua presença no contraste de sua luminosidade imaterial com o concreto bruto aparente. Contraste que faz vibrar em uníssono, no tátil e no fugidio, uma história de sonho pela paz e pela dignidade cívica, indubitavelmente ainda sonhada pelos espectadores sentados em plena avenida.

notas

1
Texto publicado originalmente em www.gruporisco.org/t5.html, website do Grupo Risco, do qual fazem parte o autor e o fotógrafo.

2
FERRAZ, Marcelo Carvalho (org). Lina Bo Bardi. 2ª ed. São Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1996, p. 11.

3
Site do filme: www2.uol.com.br/urubus.

4
FERRAZ, Marcelo Carvalho (org). Op. cit., p. 12.

5
FERRAZ, Marcelo Carvalho (org). Op. cit., p. 102.

6
KIAROSTAMI, Abbas; ISHAGHPOUR, Youssef. Abbas Kiarostami. São Paulo, Cosac Naify, 2004, p. 274.

Fotos: Eduardo Costa.

[publicação: agosto 2007]

sobre o autor

Flávio Higuchi Hirao, arquiteto, formado pela Unicamp (2005), membro do Grupo Risco

Flávio Higuchi Hirao, Campinas SP Brasil