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interview ISSN 2175-6708

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português
O português Manoel de Oliveira, o mais importante cineasta de seu país, fala de suas memórias, cinema e arquitetura em magnífica entrevista a Ana Sousa Dias

english
The Portuguese Manoel de Oliveira, the most important filmmaker of his country, speaks of his memories, film and architecture in a magnificent interview with Ana Sousa Dias

español
El portugués Manoel de Oliveira, el más importante cineasta de su país, habla de sus memorias, cine y arquitectura en la magnífica entrevista de Ana Sousa Dias

how to quote

SOUSA DIAS, Ana. Manoel de Oliveira. Entrevista, São Paulo, ano 05, n. 020.02, Vitruvius, out. 2004 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/05.020/3322>.


Manoel de Oliveira
Foto Pedro Ferreira / V.E.R

Ana Sousa Dias: Há bocado disse-me que gosta de arquitetura.

Manoel de Oliveira: Sempre gostei. Faço desenhos para casas. Enfim, não estudei para isso mas se tivesse estudado não sei se seria um bom arquitecto mas seria um apaixonado da arquitectura.

ASD: Gostaria de ter estudado arquitectura?

MO: Sim e não. Antes quero ser realizador de cinema. E de resto a coisa liga-se. Até há uma frase do [Jean-Luc] Godard que diz que o cinema nem é uma arte nem é a vida, é qualquer coisa entre as duas. Eu não estou completamente de acordo mas, de fato, nenhuma arte simula a vida como o cinema. Todavia, não é uma vida. Também não é propriamente uma arte. Porque é uma acumulação, uma síntese de todas as artes. O cinema não existia sem a pintura, sem a literatura, sem a dança, sem a música, sem o som, sem a imagem, tudo isto é um conjunto de todas as artes, de todas sem exceção. De resto, há coisas muito bonitas sobre esta idéia. Às vezes acusam-me de que meus os filmes são muito falados. Ora, falados são os filmes americanos, e falam sem dizer nada. Ao menos os meus filmes dizem alguma coisa porque eu escolho textos ricos, bons, profundos, mais difíceis naturalmente. Mas a imagem é formidável. O filósofo Deleuze escreveu dois livros sobre cinema. O primeiro chama-se A imagem movimento, o segundo A imagem tempo. E não fala da palavra. Porque não há outra coisa. Não há movimento sem tempo. Mesmo parado, o tempo passa, não é preciso que se mova, porque tudo se move, o tempo corre. O tempo é movimento em si. E a imagem… Um médico disse-me que gostava de saber o que é que vêem os cegos de nascença. Aristóteles dizia que não podemos ver sem uma imagem. É uma coisa extraordinária, e o Aristóteles já o dizia. E Molière dizia que a palavra serve para explicar o pensamento. Isto é muito bonito e ele disse-o há 300 anos. Mas a palavra é também o retrato das coisas e o retrato do pensamento. Portanto não é preciso pôr mais nada: imagem, tempo, está tudo.

ASD: Como é que imagina as cenas? Visualiza antes o espaço? Faz desenhos?

MO: Vamos aplicar a frase do Godard à arquitetura. Acho que encaixa lindamente: nem é uma arte nem é a vida, é qualquer coisa entre as duas. A arte não tem finalidade, a arquitetura tem uma finalidade. Faz-se uma casa para uma escola, uma igreja, uma universidade, uma vivenda, um hotel, uma estação. Tem um fim, e o fato de ter um fim retira-lhe a idéia de pureza como arte. Para que a arte tivesse uma finalidade, era preciso conhecer qual é a finalidade da vida. Sem isso, não podemos estar a anteceder. Toda a arte é um reflexo da vida. Se nós não sabemos a finalidade da vida, como é que vamos saber a finalidade da arte? É um segredo que nos é vedado. Mas vamos voltar ao cinema e à arquitetura. Um filme tem que principiar, uma casa tem que principiar, e principia por uma entrada. Escolhemos a entrada, depois um corredor, depois esta sala fica aqui, a outra deve ficar acolá. Transformamos isto em cenas para a organização dos planos. A aproximação, nesse sentido, entre arquitetura e cinema é perfeita. Simplesmente ali não tem finalidade se não a artística. Como dizia o José Régio, a flor é o fruto da arte.

ASD: Quando tem um décor, cada objeto tem um significado e uma intenção?

MO: Tudo é importante. Tem um significado e uma intenção que nos ultrapassa. Nós mesmos nos perdemos no sentido do que lá pomos, há um jogo muito forte do subconsciente. Sabemos que gostamos daquilo mas não pensamos porquê. Há uma razão recôndita, escondida, que justifica o gosto. Chamemos a isso intuição ou não, outra coisa não pode ser. Eu acho que no artista, e mesmo fora do artista, na vida, o subconsciente resolve muita coisa e trabalha tudo. E de vez em quando atira uma coisa para o consciente. Está tudo guardado nessa grande mala que herdamos, que vem no sangue.

ASD: Como é que escolhe o cenário de um filme?

MO: Primeiro, escolho um livro. Agora, por exemplo, estou a fazer o Quinto Império, baseado na peça de José Régio chamada El-Rei Sebastião. É o filme mais difícil que jamais fiz. O Sebastião era da casa de Áustria, neto do Carlos V, a avó dele era espanhola, é a única mulher que aparece no filme. Ela quer contrariá-lo, como de resto outros querem, e ele está obcecado por aquela idéia, impelido. O filósofo português Espinosa, que era judeu e fugiu para a Holanda, dizia: “Nós supomo-nos livres porque ignoramos as forças obscuras que nos impelem”. Eu acho que isto é muitíssimo bonito e muito certo. Nós somos impelidos por forças obscuras, não somos totalmente senhores de nós próprios.

ASD: Por que é que este é seu o filme mais difícil?

MO: Porque a peça de teatro dá um só décor para três atos. O mesmo décor, a mesma posição. E com a presença do rei em todos os três atos. Fazer isso em cinema é muito difícil. Tive a sorte de ir ao Convento de Tomar e ver a sala, que por acaso se chama Quinto Império, com aquela janela célebre. Filmei lá, tive essa sorte. De maneira que apanhei várias coisas. Mas não traí a peça, o filme segue o texto todo.

ASD: Chama a isso sorte?

MO: Não é sorte, é destino. Nunca tinha visto a sala. Era para se fazer o filme em estúdio mas depois arranjou-se maneira de fazer lá e então fui descobrindo, descobrindo, descobrindo. E a coisa foi andando. Escrevo uma primeira planificação. Entretanto amadureceu mais, escrevo segunda vez, escrevo terceira, quarta, quinta, às vezes seis vezes a mesma planificação. Quando vou filmar, faço outra coisa, não faço o que está exatamente. Porque uma coisa é estar a fazer a planificação num gabinete e outra coisa é estar frente ao décor, frente às coisas, frente aos atores e à espontaneidade deles, e então servimo-nos dessa riqueza que temos diante dos olhos. Quanto mais trabalho, mais penso nos découpages, mais integrado fico no contexto daquilo que estou a fazer. Posso ver uma coisa muito bonita que está fora do contexto. Mas se outra coisa está dentro do contexto, então sim. Essa sensibilidade é ganha com a força da penetração, à medida que nos vamos introduzindo na feitura dos découpages seguintes. Vejo outras coisas, estou diante de uma realidade, não estou a imaginar. E depois está-se naquele envolvimento. A feitoria é um estado tal que eu me esqueço de tudo o resto. Têm de dizer-me que são horas de parar. Depois o arrumo dessas cenas é quase arquitetura. Aqui fica esta cena, ali fica aqueloutra, depois fica esta, não, esta muda antes para aqui.

ASD: Aqui em casa tem um lugar especial para estar sentado?

MO: Aqui é para ver televisão, descansar um bocado. Mas tenho também nesta mesinha papéis, livros, jornais, e tomo apontamentos.

ASD: Está sempre a trabalhar?

MO: Nunca trabalhei tanto na minha vida. Mas também durmo. Durmo bem, embora me deite sempre tarde.

ASD: A cadeira em que se senta tem de ser especial? Confortável?

MO: A cadeira onde me sento normalmente foi desenhada pelo arquiteto Viana de Lima. É prática porque tem aqueles braços de madeira onde posso escrever mas é um bocado funda de mais. Ali está outra cadeira, também do Viana de Lima, foi reformada três vezes, é um monstro mas encaixava bem porque ainda era da Vilarinha, estava aos pés da nossa cama. O quarto era enorme e depois tinha um janelão virado para o mar. A gente sentava-se ali a olhar para o mar. Quer dizer, sentar-se-ia se tivesse tempo.

ASD: Ao longo da vida vamos acumulando objetos. Tem algum com um significado especial?

MO: Eu não me prendo aos objetos. Prendo-me mais às pessoas. Quando viajo levo só o computador, não tenho nenhum fetiche.

ASD: Há algum sítio de que goste especialmente, algum lugar que tenha que ver com o trabalho do arquiteto?

MO: Isso é muito complicado. Toca um ponto que é fundamental, o lugar. Imagine uma pessoa que não tem lugar. Anda perdido, desorientado. E imagine outra pessoa que é filho de família, tem os pais, os irmãos, a casa. A casa é muito importante. Vai sempre seguro de si porque tem um sítio de acolhimento se as coisas lhe falharem. Digamos a casa, digamos o lugar, digamos o sítio. Tal como o Ulisses volta a casa. Ele quer voltar ao recolhimento, à segurança, ao aconchego. O aconchego do ventre da mãe. A casa do homem é o ventre da mãe. Onde ele está e não precisa de fazer nada, tem tudo. E é feliz. E quando o Ulisses vem moribundo e fala na morte, surge a ideia de túnel que é o nascimento do feto, uma reminiscência. Por exemplo, o Filme falado termina com o comandante vê a casa a destruir-se, porque a casa dele é o navio. Mas há o lado ético: o capitão deve ser o último a deixar o barco, e ele tem um passageiro e não pode ir lá substitui-lo. Este é o grande drama. Ele vê arruinar todo o sistema, toda a sua vida, que está concentrada na sua casa. É essa a tragédia que o mundo sofre agora. É que a gente não dá conta, mas no fundo a Terra é a nossa casa. Portanto, já vê o mérito da arquitetura e a ligação que a casa tem ao ventre da mãe.

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