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interview ISSN 2175-6708

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Sérgio Ferro comenta a complexidade da atuação de Flávio Império nos diversos campos artísticos ao tratar de sua formação, interlocuções e contribuições para as artes no Brasil.

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GUIMARAES, Andreas; CONTIER, Felipe de Araujo; LOUREIRO, Lívia. Flávio Império e as múltiplas facetas de um projeto brasileiro, por Sérgio Ferro. Entrevista, São Paulo, ano 13, n. 051.01, Vitruvius, jul. 2012 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/11.051/4405>.


Os Inimigos. Autor: Máximo Gorki. Direção: José Celso Martinez Corrêa. Produção: Joe Kantor Produções/Teatro Oficina, 1966. Local: Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Na foto: Célia Helena (Tatiana), Beatriz Segall (Kleopátra)
Foto: Benedito Lima de Toledo. Arquivo Sociedade Cultural Flávio Império [Katz; Hamburger]

Felipe Contier: Qual era o envolvimento do Flávio Império com a militância? A gente sabe mais de você e do Rodrigo, mas qual era a postura do Flávio Império?

Sérgio Ferro: Ele estava também. O Flávio não participava do mesmo grupo que nós. Era mais ligado aos trotskistas.

FC: Ele não era dos mesmos grupos? Não participou da ALN [Ação Libertadora Nacional] ou da VPR [Vanguarda Popular Revolucionária]?

SF: Não. Mas ele militava junto com os trotskistas. Atividade grande e militância mesmo, não. Era só adesão de simpatia. Ele pertencia à IV Internacional. Só que os trotskistas nessa altura não adotaram as mesmas posições que o grupo mais ligado ao pessoal que rompeu com o PC [Partido Comunista], do Marighela e os outros. Eles não eram pró luta armada. De jeito nenhum...

FC: Mas isso não causava um tensionamento entre você o Rodrigo e o Flávio?

SF: Não, não. Da mesma maneira que havia uma carta semelhança entre nós, que invertíamos o projeto em arquitetura, nós na política fizemos mais ou menos a mesma coisa. O mais importante não era a revolução futura, se era socialista partidária, se era anarquista redonda, não é o programa lá na frente. O fundamental é a atividade hoje. O que está precisando ser feito agora, etc., etc. Isso, em termos bem pedantes, representa uma passagem da moral kantiana para a dialética hegeliana. O Kant é o filósofo do “deve ser”. “Tal coisa deve ser assim”, e a gente pode passar a vida lutando para esse “dever ser”, sabendo que nunca vamos chegar lá. Isso o pessoal desenvolvimentista nunca conta. Eles ficam na moral do dever ser e esquecem de afirmar e dizer com Kant que nunca a gente vai chegar lá, que é uma tarefa infinita. No Hegel, a única maneira de avançar é pela negação. É pela negação determinada de alguma coisa, “eu não quero mais aquela coisa, eu a nego, eu a rejeito”, isso é que faz avançar. De uma certa maneira a gente anda de costas, sem predeterminar, sem preestabelecer a figura futura. O que vai construindo essa figura futura é a série das negações concretas do real na sua frente. Pode dar com os burros n’água? Muitas vezes pode. Mas ao mesmo tempo é a única maneira deixar o futuro para o futuro – um futuro aberto, não um futuro congelado por um projeto. O método do Hegel é isso. Chega lá, mas não por projeto – projeto sartriano –, chega lá por rejeição, por rejecto. São duas atitudes bem diferentes, com consequências metodológicas, práticas, morais bem diferentes.

Roda Viva. Autor:Chico Buarque. Direção:José Celso Martinês Corrêa. Produção: Roberto Collossi Promoções Artísticas, 1968. Na foto: Flávio São Thiago (Capeta), Paulo César Pareio (Mane) e Coro. Arquivo Sociedade Cultural Flávio Império.
Foto divulgação [Katz; Hamburger]

FC: E como o Flávio lidava com o movimento Tropicalista? Ele tinha uma simpatia maior do que você?

SF: Tinha.

FC: Por causa da abertura de novos meios de expressão?

SF: Sim. O Flávio trabalhou com eles. Fez vários shows com os Doces Bárbaros 

Estudo. Descrição: Gilberto Gil. Técnica: Grafite s/ papel. Dimensão: 26 x 20,1cm. Sem data. Coleção: Sociedade Cultural Flávio ImpérioGilberto Gil (estudo), grafite s/ papel, 26x20,1cm, s/d. Coleção Sociedade Cultural Flávio Império
Obra de Flávio Império [Katz; Hamburger]

“Carcará”, etc. Hoje o Tropicalismo também foi reconstruído. O tropicalismo tinha esse lado “sem nada no bolso”, “sem lenço e sem documento”, mas tinha também um lado agressivo, um lado político muito grande. O que eu falei ainda há pouco sobre o Departamento de Estado na política, depois que deu muito certo com os Estados Unidos, todos os países ocidentais adotaram a mesma linha, inclusive o Brasil. Inclusive a França. Oficialmente, pouco a pouco, no conjunto da cultura, vai havendo despolitização. O momento de despolitização da arte foi muito intenso. A política está voltando agora, com as novas gerações, com as novas manifestações de arte, mais marginais. Mas durante muito tempo foi se apagando, foi se retirando, aquilo que na verdade era o sangue da coisa, o nervo da coisa – essa participação na realidade política e social.

LL: E a Lina você observa que influenciou o trabalho do Flávio em que aspecto?

Exposição Repassos (1975-76), de Lina Bo Bardi. Império documenta através do filme Colhe, Carda, Fia, Urde Tece (1975/76) momentos de uma indústria caseira de subsistência de tecelagem
Foto da exposição [Ferraz, 1993, p. 201]

SF: Flávio trabalhou com a Lina em diversas ocasiões. Havia entre eles muita coisa em comum. Por exemplo, uma atitude semelhante diante da cultura popular – que ela e o Pietro Maria Bardi resumiram na belíssima exposição sobre a mão do povo brasileiro. Não uma fascinação pela pobreza ou coisa do gênero, mas atenção e respeito pelas criações populares. Na casa dela um Goya coabitava com uma carranca do Rio São Francisco. Quando Lina veio para o Brasil, no fim dos anos 1950, já tinha um envolvimento na Itália com uma espécie de regionalismo cultural popular, com valorização do modo de fazer do povo de determinada região. Isto, deturpado, desemboca no mur diplomatique do Le Corbusier – uma das táticas que ele tinha para ser aceito com sua arquitetura agressiva era procurar um elemento bem característico do local e por no meio do projeto. Quando chegou aqui Lina radicalizou sua atitude. Daí seu design híbrido, fortíssimo. Por exemplo, uma cadeira com estrutura atual, bem concebida segundo o conhecimento técnico mais desenvolvido e assento de chitinha de mercado em vez de plástico ou couro.

Nesse tempo, todos éramos marcados também pelo CPCs [Centros Populares de Cultura], um forte movimento que procurava aliar o pensamento político progressista de esquerda com a cultura popular. Uma aproximação dos intelectuais com o povo,que recorria à linguagem visual e literária híbrida, semelhante à proposta pela Lina.

LL: Mas vocês participaram diretamente dos CPCs?

SF: Não. Diretamente não, mas tava ali. Nós nos embrenhávamos no meio disso nesse período. O Flávio eu não sei. Só o conheci quando entrei na faculdade de arquitetura. Ele estava um ano na frente, mas por causa do teatro, do cenário, ele perdeu um ano e ai veio pra nossa turma. Não porque era mau aluno não. Ele era tão solicitado pelos cenários que não teve tempo de fazer o curso normal.

FC: Vocês fizeram disciplinas juntos?

SF: A partir do segundo ano, eu acho, nós éramos da mesma classe, fizemos todas as disciplinas juntos.

FC: Os trabalhos?

SF: Tudo. Tudo juntos. Ficou uma relação realmente muito estreita. Nem ele, nem o Rodrigo, nem eu tínhamos ideia de quem tinha feito o que. Isso nunca nos preocupou.

LL: Isso na arquitetura?

SF: Na arquitetura.

LL: Vocês pintaram juntos?

SF: Não. Fiz obras em comum com o Flávio Motta, à quatro mãos. Mas com o Flávio não. Se bem que ele estava pintando ali e eu aqui. Fatalmente passava alguma coisa para o outro. Nunca chegamos a fazer obras juntos.

LL: E a Renina Katz? Como era esse convívio?

SF: A Renina era excelente. Sempre havia muito respeito, porque ela era professora nossa. Não havia a mesma espontaneidade, a mesma liberdade, mas a Renina era um encanto, aberta. Ela vinha de um período muito difícil, porque ela era ligada ao partido e o partido criticava as gravuras dela na ponta do lápis. Era um horror: “isso está errado”, “isso não pode”, “modifica isso”, etc. E quando ela via os alunos dela, mais abertos, o Flávio, um provocador, ela adorava. Era tudo que ela queria era ser e tinha sido de uma certa maneira castrado por essa participação no partidão.

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