Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

interview ISSN 2175-6708

abstracts

português
O texto apresenta conversa com a arquiteta e professora Zaida Muxí Martínez e a pesquisadora Daniela Abritta Cota sobre a relação entre cidade, política e gênero. A entrevista ocorreu no mês de julho de 2018 em Santa Coloma de Gramenet e em Barcelona

english
This text presents a conversation with the architect and professor Zaida Muxí and the researcher Daniela Abritta Cota on the relation between city, politics and gender. The interview took place in July 2018 in Santa Coloma de Gramenet and in Barcelona

español
El texto presenta conversación con la arquitecta y profesora Zaida Muxí y la investigadora Daniela Abritta Cota sobre la relación entre ciudad, política y género. La entrevista ocurrió en el mes de julio de 2018 en Santa Coloma de Gramenet y en Barcelona

how to quote

COTA, Daniela Abritta. Entrevista com Zaida Muxí. Cidade, política e gênero. Entrevista, São Paulo, ano 19, n. 075.02, Vitruvius, set. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/19.075/7123>.


Diversidade e vitalidade no espaço público. Roquetes, Barcelona, 2018
Foto divulgação

DAC: Na interface entre arquitetura e política está a questão de gênero. Você pode nos dizer o que significa incorporar a perspectiva de gênero na arquitetura e no urbanismo contemporâneos? Por que e para que devemos incorporar esse olhar no projeto arquitetônico e urbano?

ZM: Há várias coisas... por um lado está a perspectiva de gênero no urbanismo. Entretanto, antes de falar sobre isso é preciso fazer uma reflexão sobre a presença ou ausência das mulheres na história da arquitetura e do urbanismo e, portanto, nas referências bibliográficas que utilizamos em nossas aulas e disciplinas lecionadas. Peço-lhe permissão para ampliar essa pergunta para questionar aos jovens, mulheres e homens, estudantes de arquitetura e urbanismo se acreditam que as companheiras de classe são mais idiotas que eles, de modo que, dentro de dez anos eles serão famosos e elas não. Não há nada que nos incomoda mais, tanto a mulheres quanto a homens, mas isso se reflete diretamente nas mulheres quando percebemos que quem se torna visível na profissão são, em sua maioria, homens, e especialmente aqueles que, em arquitetura, optam pela área de projetos. Em geral, arquitetxs reconhecidos na área de projetos são homens. Obviamente há algumas mulheres que também tiveram sucesso na área, mas são consideradas a exceção à regra.  Somos metade da população e não há nada que explique porque as mulheres não são famosas. Possivelmente isso já estaria ligado a uma questão de gênero: temos menos acesso ao poder.

Kazuyo Sejima, em uma entrevista, disse que não tinha grandes projetos em sua trajetória porque os grandes projetos no Japão – e também em muitos outros lugares – são decididos em ambientes e espaços sociais muito masculinizados. Então, no caso de projetos importantes, de obras de grandes dimensões, certamente menos mulheres serão autoras. Também teríamos que nos esforçar para incorporar diferentes valores ao selecionar as obras arquitetônicas e urbanas que escolhemos para mostrar e explicar aos estudantes para, na formação de nossxs alunxs, não continuarmos deixando de fora as mulheres. É um treinamento, não é uma questão de tempo, porque na América Latina, antes da Espanha – a primeira mulher se graduou na Escola de Arquitetura de Barcelona em de 1966 – já havia muitas arquitetas, mulheres, reconhecidas: em Buenos Aires e no Brasil por volta dos anos de 1930, no Uruguai um pouco mais cedo. As primeiras arquitetas mulheres foram amplamente reconhecidas em todos os lugares. Antes dos anos 1980 já havia muitas escolas e universidades de arquitetura e urbanismo na América Latina – mulheres que hoje estão com cinquenta, sessenta anos... então, não é só uma questão de tempo.

Entretanto, a incorporação da perspectiva de gênero na arquitetura e no urbanismo é contemporânea – trata-se de uma ideia desenvolvida a partir da década de 1970. A partir de então, consideramos que gênero não é sexo; é uma construção sociocultural e está relacionada às atribuições, aos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres em função da capacidade biológica – a de parir, de dar vida. Como nós, mulheres, somos capazes de dar a vida, nos foram destinadas, sócio historicamente, as tarefas de cuidado, os afazeres da casa e isso significa tarefas invisíveis e não remuneradas. Aos homens lhes foi designada a tarefa do público, do produtivo, do espaço público externo, o que é visível e remunerado. Não que as mulheres não tenham trabalhado de forma remunerada. Isso sempre aconteceu porque nem todas são burguesas, nem todas nasceram ricas, mas é verdade que, sempre que ocupam postos remunerados, a elas são destinadas as posições pior remuneradas; elas permanecem invisíveis. Então, aplicar a perspectiva de gênero significa entender, por um lado, que essas duas experiências de mundo são experiências de mundo diferentes, por obrigações, por tempos diferentes, o que contribui para que usemos a cidade de forma diferente, e que sejamos conscientes de outras necessidades, por exemplo, em relação a casa.

Quando se pensava na habitação mínima do século 20 na Europa, se falava em mínima, por um lado, porque se otimizava a cozinha e também porque havia muitos serviços comunitários em quase todos os conjuntos de habitação; algo que depois foi se perdendo. Mais recentemente, temos uma moradia mínima definida com 40 metros quadrados, o que não é adequado para uma família. E, certamente, uma mulher que pensa na perspectiva de gênero, com sua experiência de cuidar da casa, da alimentação da família, da limpeza da moradia, da lavagem de roupas, da educação das filhas e filhos, compreende que neste ambiente não pode realizar, de forma satisfatória, sua vida cotidiana. E devemos ressaltar que sem estes trabalhos relacionados aos cuidados e à reprodução, não existimos; sem isso não existe nada e ninguém, e mesmo assim, o tema é desprezado por nossa sociedade. É desprezado pela sociedade e também pela formação em arquitetura e urbanismo, porque fazer uma casa nunca parece ser suficiente. Fazer uma casa para uma família normal, para entender a vida normal não é suficiente. Sempre se espera que um arquiteto seja um artista, tenha reconhecimento por suas obras, seja não sei o que. Porque a vida cotidiana parece não ser suficiente para preencher o conteúdo de um programa arquitetônico. E assim nos deparamos com casas gigantes, mas que, na realidade, tem mal resolvidos os espaços de guardado; não há onde colocar os produtos de limpeza, não há espaço para passar a roupa, o espaço de lavar é insuficiente..., mas é uma casa grande, então, não há problema, pois você pode modificá-la. Entretanto, se é uma casa pequena, como é o caso das habitações sociais ou públicas, então é um problema que você tem.

Neste sentido, é importante incorporar a perspectiva de gênero, porque, primeiro, é a experiência de mais de metade da população e porque é uma experiência que nos faz estar vivo hoje, com um olhar diferente sobre as questões da vida. Então é importante aplicá-la na arquitetura e no urbanismo. E outra questão relativa ao gênero e ligada à construção da sociedade machista é que os corpos de homens e mulheres não são iguais e não são considerados iguais pela sociedade. O corpo da mulher é, de alguma forma, um bem disponível, um bem considerado um objeto que nunca pode estar no espaço público porque não lhe pertence; que os homens podem usá-lo de maneira “gentil”, dizendo-lhe “fiu-fiu” ou de maneira violenta, violando-o ou matando-o. Assim, os problemas de insegurança que sofrem as mulheres nos espaços públicos não sofrem os homens. Obviamente, o homem pode sofrer alguma forma de violência, ser atacado, ser morto, mas não por ser homem, em geral, por causa de seus pertences, o que também ocorre com a mulher. Entretanto é a mulher que morre de medo do outro. Neste sentido, é muito importante que a cidade tenha ruas seguras – e a rua segura está relacionada com a existência de diversidade de usos, de pessoas, com comércio e serviços em diferentes horários, com boa iluminação, com calçadas largas, dando prioridade às pessoas e não aos carros. E se olharmos para as cidades, há muitas que são totalmente o oposto. Então há muito que fazer.

DAC: O urbanismo com perspectiva de gênero é o mesmo que urbanismo feminista?

ZM: Eles se tocam, mas na minha interpretação, se diz urbanismo com perspectiva de gênero, por ser um termo mais neutro e, de certa forma, se desliga um pouco do feminismo, que poderia provocar rejeição por parte de certas pessoas. Isso porque o feminismo é um movimento internacional que luta pela igualdade dos direitos reais de todas as mulheres e de todos os homens e, às vezes é mal entendido. Podemos dizer que houve três ondas de movimentos feministas modernos: a primeira, derivada da Revolução Francesa até o final do século 19; a segunda, ocorrida na metade do século 20; e o movimento feminista dos anos 1980. Há também quem se refira aos diferentes movimentos feministas atuais como a quarta onda. Quase todos os movimentos feministas vêm dessas ondas, como momentos muito tranquilos, para explicar, para se fazer entender, para dizer o que buscam, mas chega um momento que cansam e podem tornar-se mais enfáticos na luta e, às vezes, estigmatizado. Então eu acho que quando passam a utilizar gênero, especialmente como termo político nos anos 1980 e 1990, para se desvincular do movimento feminista – que a partir daí estava sempre associado à reivindicação de uma mulher poder amar outra mulher (não que o movimento fosse somente isso, mas era visto assim pela sociedade). Isso gerou um estereótipo de mulher feminista, visão estereotipada carregada de uma série de preconceitos, o que fez com que usássemos o termo gênero. É algo delicado. Acredito que é por isso que tem sido mais aceito falar em urbanismo com perspectiva de gênero do que o urbanismo feminista. Neste sentido, o feminismo, ou o movimento feminista atual estaria destinado a buscar as condições para uma efetiva igualdade no acesso à cidade, a mulheres e homens, e, possivelmente viabilizar uma transformação urbana a partir da igualdade e, portanto, da experiência múltipla das mulheres, que está ligada à perspectiva de gênero. Um termo é mais uma filosofia, uma prática política, e o outro é uma ferramenta para incorporar essa perspectiva.

DAC: Desde quando essa perspectiva foi incorporada nos estudos e na prática da cidade?

ZM: Há um texto que não é de urbanismo, mas que, para mim, está ligado à origem da segunda onda do feminismo que é A mística feminina de Betty Friedan (2). Trata-se de um estudo sociológico, mas eu o considero urbanístico porque se relaciona com a forma de crescimento do subúrbio. Nos anos 1960 as mulheres que viviam nos subúrbios estavam deprimidas – a novela Revolutionary Road (3) e outras abordam isso. Elas estavam deprimidas e os médicos diziam que estavam doentes, mas a palavra deprimida não aparecia. Começam a verificar o que estava ocorrendo: isso se passava com mulheres que estudaram por direito já adquirido – não tiveram que lutar para estudar na universidade porque suas antecessoras já haviam conquistado o acesso. Entretanto, a Segunda Guerra Mundial fez com que elas, que tinham estudado e poderiam trabalhar, se voltassem para o interior doméstico, mas não um interior doméstico em uma área urbana movimentada, com muita gente; era o interior doméstico do subúrbio. Na casa a mensagem era: seu orgulho e felicidade por ter uma casa grande, bonita, marido bem-sucedido, as filhas ou filhos bem-sucedidos... Filhas ou filhos que com 18 anos saiam de casa porque assim foi definido o sistema. Então essa mulher com 38, 40, 42 anos ou mais jovem, tinha sua vida acabada, sem seus filhos e se sentindo mal porque a sociedade dizia que ela tinha que estar muito feliz com o que tinha sido alcançado, mas ela continuava se sentindo muito mal.

A novela Revolutionary Road retrata muito bem essa questão, na qual a mulher se sente presa em casa – então não pode estar feliz – enquanto o homem saía para trabalhar super relaxado e a ela cabia fazer o trabalho pesado da casa, e ainda estava grávida pela terceira vez e já não queria ter outro filho. Ela queria ficar livre das obrigações da casa e uma nova criança significava começar tudo de novo. A novela questiona a mensagem que é dada à mulher de que teria de se sentir super feliz com a situação – então, ninguém entendia sua depressão. Na história, a mulher é a louca. Neste momento, surge o livro de Betty Friedan, que relaciona o lugar da mulher e sua relação com a cidade e aborda o problema com o estilo de vida de uma forma urbana que é o subúrbio. Depois da Segunda Guerra, em 1946, foi publicado um artigo na Revista Life, sobre habitações coletivas em Estocolmo, com serviços de cuidados e cozinha compartilhada, e também com pequenos apartamentos destinados às mulheres que gostariam de continuar trabalhando (projeto de Sven Markelius y Alva Myrdal da década de 1930), em que foi recomendado às mulheres que quisessem continuar com o trabalho remunerado fora de casa que optassem por soluções similares e não ir para o subúrbio. Obviamente, prevaleceu a segunda opção.

A geógrafa Doreen Massey (4) foi uma das primeiras a fazer uma reflexão (a partir da geografia), sobre o uso do espaço e a desproporção entre os usos a que têm direito homens e mulheres. Ela aborda o fato a partir de uma experiência de sua infância: quando pequena, aos sábados, tinha que ir a Londres com sua mãe fazer as compras. Iam de trem e passavam por imensos campos, cheios de meninos e jovens como ela, mas homens, que estavam jogando bola, praticando esportes, e ela se perguntava: porque eu tenho que sair para fazer as compras da casa e eles estão jogando bola, e eu, se quiser jogar, tampouco tenho espaço para isso. Space, Place and Gender, de 1994, é um dos primeiros livros que aborda a desigualdade espacial em função das atividades que realizamos mulheres e homens.

DAC: Como a perspectiva de gênero pode ser incorporada no urbanismo?

ZM: A primeira coisa a fazer para incorporar a perspectiva de gênero no urbanismo é entender que devido aos papéis sociais e culturais os homens e as mulheres realizam tarefas diferentes e também temos acesso desigual às oportunidades existentes na cidade. Assim, temos que analisar de maneira diferenciada como homens e mulheres usam a cidade: porque nos movemos, para onde nos movemos, os horários nos quais nos movemos. temos, portanto, que estudar as necessidades que homens e mulheres têm na cidade. As mulheres têm necessidades diferentes devido ao papel de gênero, usamos a cidade de uma forma muito diferente do que foi relatado até hoje. Até o dia de hoje a cidade foi concebida a partir de um ponto de vista que se pretendia neutro, abstrato, mas que na verdade, reproduz o olhar de um homem, um homem com melhores condições sociais – porque também nem todos os homens têm acesso aos mesmos recursos – no geral, representante de um estrato de classe minoritário, de uma raça minoritária, com estudos e que, em sua vida pessoal, pode mover-se em carro particular. Então se organiza a cidade a partir dessa experiência, pensando que a cidade pode ser apropriada de uma maneira universal; e não é assim. Todas as outras experiências de apropriação não são incorporadas no fazer a cidade. Pouco a pouco começam a ser incorporadas as experiências das crianças, das pessoas com mobilidade reduzida, mas a perspectiva de gênero, além de incluir todas essas outras experiências, considera que as mulheres se movem de forma diferente. Por exemplo, as mulheres usam muito o transporte público e andam a pé, mais do que os homens, e temos menos acesso a recursos (como veículos particulares). Por outro lado, nós caminhamos mais pela cidade porque também precisamos realizar percursos mais próximos, ligados às tarefas de cuidado, além de nos movermos devido ao trabalho produtivo.

Devemos considerar também que a percepção de segurança é diferente de um homem e de uma mulher e devemos incorporar essa diferença na concepção de espaços públicos para que promovam uma maior sensação de segurança nas mulheres. Às vezes, se projeta um parque ou uma praça com espaços invisíveis e, portanto, mais perigosos. Logo, se não incorporamos a perspectiva de gênero, as cidades continuarão reproduzindo espaços monofuncionais, onde a habitação está em um lugar, os espaços educacionais em outro, o trabalho em outro, resultando em cidades fragmentadas, com funções separadas. E quando você percebe que uma pessoa tem que ir para o trabalho, levar o menino ou a menina para a escola, visitar uma pessoa doente, e ir às compras e tudo isso está dividido no território, então fazer tudo é praticamente impossível. A partir da perspectiva de gênero o que se busca são cidades ou bairros com distâncias mais próximas, de modo a possibilitar a realização das tarefas cotidianas em menos tempo e com mais qualidade, inclusive podendo ser realizadas a pé.

Intervenções urbanísticas sob a perspectiva de gênero, Praça das Mulheres de Nou Barris junto à habitação social coletiva
Foto divulgação

DAC: E na habitação?

ZM: Trata-se um pouco do mesmo critério, ou seja, é necessário analisar as contribuições das mulheres, reconhecer sua experiência enquanto mulher, observando como funcionam as coisas a partir da perspectiva das mulheres, as necessidades que têm em uma habitação para fazê-la funcionar, o que necessitam para cuidar das crianças, como deve ser a casa para que permita, à mulher, fazer várias coisas de uma só vez. Realmente a moradia seria muito diferente. Assim, incorporar a perspectiva de gênero na habitação é pensar em todas as tarefas realizadas na casa, em todas as atividades e ações e como dar-lhes o lugar melhor para que elas possam ser executadas. E não como aconteceu, muitas vezes. A cozinha, os trabalhos de limpeza, o lugar da máquina de lavar, o espaço para secar e para passar roupas, nem sempre são considerados. E as pessoas fazem como podem para realizar as tarefas de cuidado nas habitações. Isso seria uma coisa: reconhecer o trabalho da mulher na casa e suas necessidades. Outra coisa a se pensar é que a mulher não tem seu espaço próprio na habitação. Virginia Woolf escreveu em 1929 Una Habitación Propia, um breve texto em que dizia que a mulher, assim como os homens, precisa de um cômodo próprio para produzir, para ser criativa, o que é verdade. Os homens têm a sua cadeira ou sofá, seu lugar, se há um espaço reservado na casa, com certeza é do homem, porque a mulher tampouco tem espaço de descanso na casa. A casa, em muitas vinhetas, é o espaço de descanso do guerreiro, do homem que vive na casa. É também vista como o lugar para se esconder do mundo exterior, “ilha” das mulheres, onde todo mundo se esconde, mas como a mulher pode encontrar momentos de paz em um espaço que representa trabalho; todo o dia trabalho? E um trabalho invisível. Acredito que são coisas que têm a ver com melhor resolver as tarefas cotidianas e há uma tendência de incorporar essa experiência da mulher no design da casa para melhorar a sua apropriação.

DAC: A cozinha integrada é uma recomendação para a casa sem gênero?

ZM: Depende de cada grupo, de cada família. Não existe solução que seja única e boa para todxs. Nem todo mundo precisa das mesmas coisas, as etapas da vida são diferentes. A partir da experiência das mulheres, tem sido proposta: a) a construção de habitação sem cozinha particular, o que significa casa com cozinha compartilhada que têm muito sentido, em alguma etapa da vida, em alguns grupos, dependendo do tipo de trabalho que você executa; b) e também a proposta de cozinha integrada à sala, de uma forma que permite à mulher estar em dois lugares ao mesmo tempo, ou seja, a pessoa pode estar cozinhando e observando a criança brincar na sala ou pode conversar com outras pessoas que estão na sala; o homem também pode cozinhar e participar dos cuidados. Entretanto, a cozinha integrada à sala também tem que ser concebida com cuidado, já que se trata de um espaço sempre visível. É como fazer um projeto para uma revista: o problema que, em geral, as mulheres vivem é quando vai uma visita na casa, a mulher pede desculpas pelo espaço não estar super arrumado. O homem dificilmente vai fazer isso, pois dificilmente se ocupa das tarefas de organização da casa. Assim, ter a cozinha no meio da sala pode ser muito desconfortável porque ela precisará estar sempre em perfeitas condições de organização. Se você tem a cozinha visível, você tem que torná-la perfeita. Se está no centro, você deve projetá-la com cuidado, e pode torná-la escondida quando precisar. No caso de habitação pública, dentro da limitação de metros quadrados que sempre existe, a melhor solução vai depender dos arquitetxs porque trata-se de um detalhe, de uma opção projetual, que o profissional pode fazer ou não. Também é muito importante que os quartos sejam do mesmo tamanho, que não se estabeleça nenhuma hierarquia interna especialmente se é uma família que tem filhos ou se compartilha a casa com mais pessoas. Os espaços devem ser iguais, mas precisam de flexibilidade para permitir diferentes usos. E a cozinha se for integrada, tem de ser integrada com cuidado.

DAC: Você pode dar exemplos de aplicação dessa perspectiva no design de espaços urbanos?

ZM: O exemplo mais conhecido é o de Viena, mas há outros... Viena tem sido capaz de organizar e articular o discurso sobre essa temática, o que não é fácil, apesar de existir muitas ações isoladas com perspectiva de gênero. Em muitos lugares há mulheres que estão trabalhando neste sentido, mas não conseguem articular o discurso com o elo entre gênero e intervenções urbanísticas.

Em Girona, na Catalunha, há uma experiência coordenada por Isabel Salamaña – as ágoras cotidianas – embora não há artigo publicado sobre isso – que foi elaborada a partir da perspectiva de gênero. Há também uma política de espaço público – os lugares de jogo e espaços de socialização – de colocar bancos tanto para as pessoas idosas quanto para as mulheres com filhos ou carregadas de compras poderem descansar, algo que dá autonomia no caminhar pela cidade. Em Barcelona, o grupo Col.lectiu Punt 6 (5) tem feito um projeto de implantação de bancos na cidade. Há uma demanda de ampliação da quantidade de bancos e é feito um trabalho com a comunidade de cada lugar, especialmente com os idosos, para que eles definam onde colocar os bancos. No caso de Santa Coloma de Gramenet, cidade vizinha a Barcelona e integrante de sua área metropolitana, tiveram de levar em conta os bancos no espaço público porque há muitas pessoas idosas e a cidade é muito íngreme. Assim, incorporá-los no dia-a-dia é importante.

Em Viena foram realizadas muitas ações intimamente ligadas a uma política urbana, desenvolvida durante muitos anos. Eles começaram com a implantação de uma secretaria que unia a secretaria de mulheres e a de planejamento urbano, responsável pela elaboração dos projetos-piloto na cidade. Também nos primeiros anos 1990 fizeram um concurso de habitação coletiva por e para mulheres (6), em um bairro que não havia muito suporte para a vida cotidiana. Tal fato resultou em uma mudança de normativa, uma vez que para fazer quase 400 habitações, tinham que fazer alguns equipamentos mínimos de uso cotidiano porque não se poderia levar a vida naquele bairro. Seria muito complicado, especialmente porque quase todos no bairro eram novas famílias, famílias jovens, com filhos, que demandavam um suporte diário de equipamentos. Assim foram incorporados ao projeto uma creche de 0 a 3 anos, um posto médico de atenção primária, e uma polícia local, além de usos comerciais no térreo dos edifícios residenciais, o que não era permitido, até aquele momento, em conjuntos de habitação pública. Então mudar o regulamento para que se pudesse fazer isso foi algo muito importante.

Realizaram também um projeto piloto de melhoria de bairro – em Mariahilfer – a partir das necessidades das pessoas que utilizam o espaço público às 15h30, em um dia de semana. A partir dos percursos de diferentes pessoas, de diferentes idades e com diferentes necessidades, definiram medidas para corrigir problemas de travessia de pedestres, de visibilidade, de largura das calçadas e outras ações que, na verdade são pequenas ações, não são espetaculares, mas que significou muito para melhorar a qualidade de vida naquele bairro. Pode-se dizer que Viena é a cidade que mais tem realizado projetos neste sentido. Outra ação importante é trabalhar o uso de parcelas residuais de loteamento, de terrenos vazios e abandonados, limpá-los e apropriá-los como espaço para brincadeiras infantis. Dessa política foi pioneira Jakoba Mulder, como diretora de urbanismo de Amsterdam no pós-guerra, que junto a Aldo van Eyck, projetaram, em vinte anos, mais de 700 espaços temporários de brincadeiras infantis. Em relação ao transporte público, a incorporação da parada de demanda à noite, ou seja, em horário noturno, o ônibus pode parar onde você pede e não na parada regular, para andar menos à noite. Bem, são pequenas ações, mas que fazem uma grande diferença.

DAC: Quais são as referências bibliográficas mais importantes para se aplicar a perspectiva de gênero na cidade?

ZM: Jane Jacobs (7), com certeza é uma boa referência em todos os momentos, especialmente considerando a época em que foi escrita a obra. Também a obra de Dolores Hayden é uma referência, assim como a de Susana Torre. Há referências mais atuais, mas para trabalhar a perspectiva de gênero na cidade é importante considerar a experiência na cidade, não somente o conhecimento teórico, mas, fundamentalmente, a capacidade de observação, o dia-a-dia. Neste sentido sugiro a leitura da produção de Ana Falú, quem escreveu (em espanhol) sobre o cotidiano e sobre segurança e cidade. Outras duas referências importantes são Inés Sánchez de Madariaga – ela tem livros sobre urbanismo e gênero que são mais difíceis de obter, mas há muitos artigos disponíveis, também em espanhol – e Anna Bofill, com obras também publicadas em espanhol. No Brasil, há pouca publicação sobre a temática, mas há muitas profissionais que começaram a trabalhar o tema, a exemplo de Ana Gabriela Godinho Lima, de São Paulo, professora da área de história da arquitetura e do urbanismo.

Quando me perguntam sobre a obra de Simone de Bevauvoir (8) eu digo que é um clássico, uma leitura obrigatória, mas há outras publicações mais recentes que são mais fáceis de ler e mais aplicáveis. Seu trabalho é uma referência por considerar gênero uma construção – segundo ela, a mulher não nasce, a mulher se faz. Do ponto de vista teórico eu indico María Milagros Rivera Garretas (9) que tem um livro chamado Nombrar el mundo en femenino. Na Bolívia há uma associação chamada Mujeres Creando (10), muito atuante e combativa, em que há publicações interessantes. Além de toda a publicação do grupo Col.lectiu Punt6, já citado anteriormente. Há mais referências, mas em termos gerais essas são muito importantes.

notas

2
FRIEDAN, Betty. A mística feminina. Petrópolis, Vozes, 1971. Edição original: The feminine mystique. New York, WW Norton Company, 1963.

3
Revolutionary Road de Richard Yates foi lançado no Brasil em 2009 sob o título Foi apenas um Sonho: Rua da Revolução pela Alfaguara (um selo da editora Objetiva). Em Portugal, a Editora Civilização o publicou com o título original, também em 2009 (em inglês original 1961).

4
MASSEY, Doreen. Space, Place and Gender. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1994.

5
Col·lectiu Punt 6 é uma cooperativa de arquitetas, sociólogas e urbanistas de procedências diversas e que têm mais de 10 anos de experiência local, estatal e internacional. O nome do grupo nasceu de uma normativa catalã, a Lei de Bairros, aprovada em 2004, que propunha medidas urbanas de reabilitação baseadas em oito pontos, sendo que o ponto 6 era a igualdade de gênero no uso dos espaços e equipamentos urbanos <www.punt6.org>.

6
Trata-se do conjunto de habitação de interesse social construído na cidade de Viena chamado Frauen-Werk-Stadt I, atualmente Margarete Schutte Lihotzky Hof. Projeto urbano de Franziska Ullmann.

7
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2000.

8
BEAUVOIR, Simone de; MILLIET, Sergio. O segundo sexoSão Paulo, Difusão Européia do Livro, 1960.

9
RIVERA GARRETAS, Maria Milagros. Nombrar el mundo en femenino. Pensamiento de las mujeres y teoría feminista, Icaria, Barcelona, 2003.

10
Mujeres Creando é um movimento feminista anarquista boliviano, nascido em 1992, que tem a rua como palco principal de suas atividades, utilizando principalmente grafite e performance como expressão. O grupo é liderado por María Galindo <www.mujerescreando.org/index.html>.

comments

075.02
abstracts
how to quote

languages

original: português

share

075

075.01

Paulo Mendes da Rocha: sobre o edifício Sesc 24 de Maio

Giacomo Pirazzoli

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided